Os olhos dos capitais no mercado da água
Afranio Campos - 26/04/2009
O fato da crise financeira mundial se dá em uma dimensão nunca antes vista, numa dinâmica extremamente rápida, se tornou preocupante, tanto para grandes investidores privados, via setor financeiro-bancário, como para o mercado real ou produtivo; o que diferencia a situação atual da crise de 1929. Com a globalização tudo se interliga, de forma integrada e aceleradamente, o que “empurrou” os Estados nacionais e seus governos a colaborar entre si, através de um processo de discussão no tratamento das grandes questões econômicas e financeiras sob pressão da sociedade forçando a abrir espaços para o conhecimento do mundo e a intervenção concreta em problemas que antes não eram vistos ou eram relegados ao segundo plano, ou sem se dar a devida importância; abriu-se a caixa preta da "questão ambiental" para quem quer que seja, em sua grave situação.
Os recursos hídricos, que há algum tempo já faz parte da agenda dos governos enquanto bem econômico, antes, um direito da humanidade, bem de uso comum, bem ambiental, bem essencial à vida; esse recursos, estão no centro das discussões sobre dominialidade, precificação, onde a sua tutela por parte do Estado se configurou como essencial na confiabilidade do modelo. A definição de instrumentos de gestão passa a sustentar-se sobre a teoria econômica tradicional e a valoração do tipo de uso, consumo e poluição dos recursos hídricos vem objetivando a sua preservação e formas de uso racionalmente sustentável que estabeleçam uma possível harmonia e eficiência do emprego desses recursos com o meio ambiente. O quadro que se firma torna-se cada vez mais favorável a consolidação desse mercado ainda que efetivamente não se enquadre nos padrões da economia de mercado.
A busca de mercados rentáveis e seguros a médio-longo prazos despertaram o interesse dos investidores especulativos em tempos de crise financeira. E o que parece obvio, não só para os mortais, mas fica patente para os “capitais à deriva” no mundo, é que eles partiram em busca de um outro tesouro no fim do arco-íris: os recursos hídricos, ou melhor, a água. Os olhos de cifrões estão voltados para o recente e imberbe mercado da água. Água, bem já escasso na maioria dos paises, em conseqüência do modelo de desenvolvimento e consumo excessivo adotados na extração dos recursos naturais, que foram utilizados em demasia, e inadequadamente, até a completa exaustão, diferentemente dos países que naturalmente possuem recursos hídricos ainda abundantes. Particularmente, no caso de países como o Brasil, só na última década vem empregando esforços na regulamentação da exploração do meio ambiente e dos usos múltiplos dos seus recursos hídricos: através da criação de leis, da ação das agências reguladoras ou na aplicação de investimentos vultosos na formação do mercado da água.
Destarte, esse é justamente o tipo de mercado que parece contrariar os pressupostos da teoria econômica, apesar do Estado proporcionar legal e financeiramente sua ordenação, seja como gestor de políticas públicas e na implantação de projetos em tecnologias limpas para o setor, seja através das outorgas (concessões, permissões etc), delegatários agindo em parceria, usuários, representantes da comunidade das bacias (Parlamento das Águas). Entretanto, o que no mercado tradicional, o preço, se constitui como o termometro das preferências dos consumidores, e o fator importante na equação da valoração econômica dos recursos hídricos, nesse caso, se torna mais uma variável do modelo, embora sem o destaque costumeiro dos fundamentos da teoria neclássica:
"Está fora do interesse dos investidores assumir diretamente a responsabilidade por entregar a água e taxar o consumidor final. Isso porque, em geral, os governos subsidiam as tarifas, já que a água é um bem vital. 'O governo precisa da água, então pagará qualquer valor para quem a tornar disponível', avalia Tara[1]. 'Porém, a água em si continuará sob controle do governo. Então, o preço da água em si não é o melhor investimento'.
Aqui, corre-se o grande risco desse empenho social e do Estado cair na desmoralização, ou até na grande perda dos frutos oriundos do processo de criação do mercado da água, representado por uma possível corrupção dos princípios originais, ou com a captura dessa estrutura por parte do lobby “privativista” dos grandes capitais, sobretudo sustentados pelos conhecidos fundamentos das leis de mercado de produtos e serviços.
O Estado ao criar as agências de água balizadas por regras pré-estabelecidas em critérios da economia de mercado, para o setor, tem buscado há mais de uma década (Política de Meio Ambiente e Política dos Recursos Hídricos) a obtenção de resultados que assegurem seu papel na estruturação do mercado da água, mercado esse, reconhecidamente singular diante das leis econômicas tradicionais; até então, as Agências de Água não tem demonstrado a eficiência esperada na consecução de seus objetivos: apresentam-se deficitárias diante da necessidade dos vultosos investimentos exigidos, bem como no controle efetivo dos conflitos sócio-ambientais entre os usuários dos recursos hídricos, o que ocorre em função da sua natureza de bem difuso, bem de múltiplo uso, etc.
Aparentemente, reconhece-se que o momento é bastante propício para capitais aventureiros se voltarem para o mercado da água, afinal, ao se criar a experiência de um “mercado misto” da água, isto é, nem privado nem público, sob a égide dos fundamentos das leis econômicas do mercado privado, e por outro lado tutelado pelo Estado através de leis específicas que dão credibilidade ao seu funcionamento, abriu-se um laboratório para o ensaio de algo inovador, sendo operacionalizado sobre princípios claros da preservação ambiental por intermédio das agencias reguladoras; a diferença para nós, é que talvez possa funcionar por mais algum tempo com seus objetivos ético-sócio-ambientais historicamente distintos dos mercados lucrativos, agora transacionando os recursos hídricos através de preços públicos; e que ainda logramos pensar, continuar intocado pelo inevitável "toque de midas" capitalista.
Uma questão fica para o debate: o que poderá evitar a socialização das externalidades negativas ou prejuízos sócio-ambientais, sem privatizar totalmente os benefícios?
[1] Kimberly Tara, da empresa que gerencia investimentos FourWinds Capital Management.
[2] Ciência e saúde, Planeta. Investidores já estão de olho no mercado da água. Veja On-line. 19 de março de 2008. http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia-saude/investidores-ja-estao-olho-mercado-agua-333262.shtml