Belluzzo: “A regra da economia de hoje é ‘o povo que se lixe’”
Portal FÓRUM, janeiro 21, 2015 16:19
Para o
professor titular da Unicamp, a crença na “auto-organização” do mercado,
sustentada por defensores de “dogmas”como o tripé macroeconômico, não encontra
correspondência na realidade. “Acho que os economistas em geral têm um déficit
intelectual decorrente da ignorância histórica”
Por Anna
Beatriz Anjos e Glauco Faria
Luiz
Gonzaga Belluzzo não hesita em dizer o que pensa sobre os atuais rumos da economia
brasileira, que estariam pautados hoje, sobretudo, pelo princípio que ele
considera ser uma espécie de “Santíssima Trindade” da “teologia” de
economistas: o tripé macroeconômico. “Qual é a lógica do ajuste fiscal? Se a
gente prometer ajuste fiscal, certamente o setor privado vai ganhar mais
confiança, vai investir, e aí a economia se reequilibra – é o que eles pensam.
Só que essa suposição é falsa”, afirma.
O
economista e professor titular do Instituto de Economia (IE) da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp) ressalta ainda o papel da mídia tradicional na
defesa do receituário neoliberal e não poupa críticas à parte dos
macroeconomistas brasileiros. “Acho que os economistas em geral têm um déficit
intelectual decorrente da ignorância histórica, ficam falando abstrações”,
coloca.
Confira
na íntegra a entrevista que Belluzzo concedeu à Fórum:
Fórum – O
que podemos esperar do ministro Joaquim Levy e da equipe econômica brasileira
para os próximos quatro anos?
Luiz
Gonzaga Belluzzo – A minha
modesta opinião é a de que não devemos personalizar. O Joaquim Levy, na
verdade, representa um conjunto de interesses, que acabou se impondo durante as
eleições e logo depois delas. Disse, em uma entrevista recente, que não é que a
Dilma cometeu uma traição, porque esta é uma palavra imprópria. Ela, diante da
desigualdade da correlação de forças, capitulou diante do projeto dos mercados
financeiros.
O que
aconteceu? Exageraram no cenário de precariedade da situação fiscal. O Brasil
não está à beira de um colapso, nem pelo critério da dívida pública, que está
em 63% do PIB, nem pelo critério do déficit nominal, que é bastante aceitável,
sem, claro, que a gente tenha que se conformar com isso. Essas situações se
agravaram, sobretudo, depois de 2011, 2012, quando a economia começou a perder
fôlego. O consenso do mercado, então, era de que havia alguma espécie de
violação das regras de administração do tripé [macroeconômico]. O tripé,
na “teologia” econômica, é uma espécie de substituto da Santíssima Trindade –
eu, pessoalmente, prefiro a Santíssima Trindade, seu mistério é mais
interessante. Já o mistério do tripé tem uma vida recente, está apoiado sobre
uma certa concepção da economia, uma certa formulação dos modelos
macroeconômicos, e, em geral, esses modelos são curiosos, porque cuidam das
políticas fiscal, monetária e cambial, indiretamente, a partir de um modelo que
não tem banco e nem dinheiro.
É um
capitalismo estranho, que não tem banco nem dinheiro. Se você dissesse isso
para um economista conservador, no início do século XX, final do século XIX,
ele acharia que você deveria ser enviado a um hospício. Mas, de qualquer
maneira, eles têm a necessidade de formular uma regra, ou regras que valem o
tempo inteiro, independentemente do período histórico e da conjuntura que a
economia esteja vivendo. Se olharmos a ideia do ajuste fiscal, estão dizendo
que, na verdade, só podem surgir os desequilíbrios macroeconômicos por conta
dos equívocos da política econômica. Se a economia for deixada a ela mesma, tem
capacidade de se reequilibrar automaticamente, pelas suas próprias forças, e,
ao mesmo tempo, claro que apresenta flutuações, mas são autocorrigíveis. Os
desequilíbrios e as flutuações só poderiam vir da tentativa do Estado de
intervir.
Tome-se
como exemplo o que o Joaquim Levy falou: “precisamos acabar com o
patrimonialismo”. O que é o patrimonialismo? A tentativa do Estado de intervir
para estimular um ou outro setor. Isso é uma visão – eu diria, para ser gentil
– pobre, do que é o patrimonialismo. Se você considera isso uma impropriedade
em uma economia de mercado, é porque acha que o mercado é capaz de fornecer
seus próprios incentivos, e que o Estado tem de ficar ausente, porque o mercado
se auto-organiza e produz um resultado mais eficiente. Isso é uma falácia. É preciso
não ter nenhuma noção da história do capitalismo, desde a Revolução Industrial
– quando nasce o mercantilismo dos privilégios – até as industrializações dos
EUA e da Inglaterra. Acho que os economistas em geral têm um déficit
intelectual decorrente da ignorância histórica, ficam falando abstrações.
Estamos
nos referindo a uma abstração, que é um modelo competitivo, dinâmico, de
equilíbrio geral. Se você toma essa construção abstrata como uma espécie de
retrato adequado de como funciona o capitalismo, pode chegar à conclusão de
que, em uma economia que tem ciclos, dinheiro, créditos, crises financeiras, o
Estado deve deixar que isso ocorra naturalmente. É claro que quando ocorre uma
crise como a de 2008, eles não têm a capacidade de se autorregular, então
chamam o Estado. Não fossem os bancos centrais, teríamos entrado em uma
depressão de grandes proporções. Mas isso passa batido, porque quando a
intervenção é a favor deles, não tocam no assunto – melhor nem falar. É como
algumas históricas familiares: é melhor não falar do tio bêbado nas reuniões de
família.
Fórum –
Ou seja, um modelo que não corresponde à realidade…
Belluzzo
– Escrevi
um artigo na Carta Capital, falando “ah, é, patrimonialismo?”. Então
vamos ver quem aumenta seu patrimônio com a estrutura tributária e a lei fiscal
brasileiras, tanto pelo lado da tributação e da receita, como pelo lado da
despesa. É uma das coisas mais escandalosas do mundo, porque quem paga imposto
mesmo são os assalariados. O rico e o pobre compram a geladeira com a mesma
alíquota, mas quem é que paga proporcionalmente mais? E quem é que recebe o
grosso dos juros? Não é que não exista o trabalhador que tenha sua poupança e
receba seus “jurinhos”, mas o grosso mesmo quem recebe são os grandes
poupadores. Aí eles vêm com a história de que precisa aumentar a poupança
pública. Eu me pergunto: como é que você pode aumentar a poupança, concebida
como uma renúncia ao gasto corrente – você recebe a renda, decide entre poupar
e consumir?
Se você
não tem renda, não decide nada. Se a renda cai, também vai poupar menos. O
Keynes, sobre quem estou escrevendo um livro, já explorou essa ideia, que é
super ideológica, porque justifica o enriquecimento pelo esforço: “eu poupei,
sacrifiquei meu consumo presente para ter o consumo no futuro, então produzi um
benefício social”. O Keynes diz: não senhor, você, na verdade, tomou uma
decisão de acumular a riqueza para si mesmo. Como empreendedor e produtor de
riquezas, alguém só é útil socialmente quando investe, gera renda adicional,
emprega mais gente, gera mais imposto. Quando poupa, está fazendo uma
subtração. E aquilo fica lá perturbando o tempo inteiro, afinal, como você vai
adquirir renda, receita, basicamente pela sua riqueza poupada? Aplica, digamos,
num CDB, em uma poupança, e aí fica um parceiro do juro alto.
Quando
ela [Dilma] baixou a taxa de juros, recebi uma quantidade de
telefonemas, inclusive de vários jornalistas, indignados: “onde já se viu,
estou perdendo dinheiro!”. Porque ele não faz nada, é um poupador, um parasita
da sociedade, todos nós a parasitamos um pouco quando aplicamos nosso dinheiro.
Não estou fazendo uma condenação moral, estou fazendo uma observação do papel
social disso. Não é que a poupança seja ruim, ela faz parte do jogo econômico,
o problema é que a avaliação da riqueza acumulada ao longo do tempo é que vai
determinar o custo do dinheiro para quem vai investir. Não é difícil entender
isso.
Então,
essa defesa da poupança é uma mistura de picaretagem com safadeza [risos],
porque é preciso conhecer o conceito, uma coisa é a palavra, outra é o conceito
que está por trás dela. A poupança é algo que parece virtuoso, mas essa
economia capitalista de mercado funciona ao contrário. Há um sistema de
coordenação da riqueza chamado sistema bancário. O que ele faz: transfere o
dinheiro de um para outro? Não, cria moeda. Quando faz um empréstimo, cria um
ativo para ele e um passivo, que é o depósito à vista. Ele adianta dinheiro
para quem quer investir, gastar – claro que isso supõe o crescimento da renda e
a capacidade de pagar de volta. Mas o banco funciona assim, por isso há, na
economia, expansões muito virtuosas e, ao mesmo tempo, crises.
Como os
modelos deles não têm bancos, ficam falando de montar poupança – poupança
externa, da família, do governo. É uma trapalhada. E acham que políticas para o
desenvolvimento, keynesianas, são para fazer déficit. Não é nada disso! Isso é
uma falsificação absurda do Keynes. Ele disse uma vez, para seu companheiro:
vocês se preocupam demais com a cura e não com a prevenção, é preciso haver um
processo de socialização do investimento, ou seja, o Estado precisa estar
permanentemente apetrechado para manter a taxa de investimento a um nível
razoável, nem muito exagerada e nem muito baixa. Outra coisa que ele dizia é
que é possível ter um sistema fiscal progressivo, que estimule o consumo de
quem tem renda menor, é necessário fazer distribuição de renda.
A
terceira coisa é sobre a “eutanásia do rentista”. Ele [Keynes] falava
sobre a renda, palavra que vem do inglês rent, derivado, por sua vez, dos
proprietários da terra, aquilo que recebiam por sua propriedade. Assim também a
taxa de juros é uma renda decorrente da propriedade do dinheiro, ou do controle
do dinheiro. Só que, no caso da terra, esse fenômeno pode ser atribuído a
causas naturais. No caso do dinheiro, não, porque os bancos criam moeda,
portanto, a escassez de capital não se compara à escassez da terra. Finalmente,
a quarta coisa dita por ele era que o sistema monetário internacional e o
movimento de capitais acaba por destruir as economias, sobretudo aquelas que
têm a moeda menos forte. Por isso, defendia um sistema que impedisse que as
economias fossem devastadas por esse movimento de capitais. O que acontece com
esses “caras do ajuste”? Acham que isso é natural. Como é isso mesmo, são os
países que têm de fazer ajustamento nas suas economias, não o sistema monetário
internacional – que é uma maluquice, para dizer o mínimo.
Fórum – O
senhor tem falado muito também da fragilidade da indústria brasileira.
Belluzzo
– O Brasil
vem perdendo capacidade industrial desde a dívida externa, que é o maior
exemplo da inadequação de se recorrer ao que eles chamam de poupança externa
para financiar seu desenvolvimento. Isso nos atrasou dez anos, o que aconteceu
depois foi uma tragédia econômica, tanto do ponto de vista fiscal como do ponto
de vista monetário, a adoção da generalização da indexação, a perda de
competitividade da indústria brasileira começou aí. E prosseguiu, porque,
depois da estabilização, durante o governo FHC, usou-se o câmbio valorizado
para segurar a inflação, o que destruiu a indústria.
Sempre
digo ao presidente Lula que você falava sobre câmbio para ele e ele olhava para
o outro lado. Tenho a maior admiração por Lula porque puxou o pessoal de baixo
para cima. Aproveitou o ciclo e fez o que deveria ter feito, cumpriu o que
disse que faria. Mas, por outro lado, como as coisas não são unívocas, deixou o
câmbio valorizar e foi empurrando a indústria para baixo. A Dilma, coitada,
tentou fazer uma redução da taxa de juros mas teve que voltar para trás, porque
um país como o Brasil, sozinho, não tem força para fazer isso. Não é por acaso
que fizemos esse acordo com os BRICS. Ele é importante se o Brasil souber usar
o banco e o contingente de reservas, porque aí ajuda a proteger o país de uma
turbulência antiga, da qual nos protegemos muito mais agora do que nos
protegemos lá atrás, por conta das reservas que temos.
Fórum – O
senhor mencionou esse momento do primeiro governo Dilma, em que houve uma
tentativa de abaixar os juros, e houve quedas sistemáticas, uma atrás da outra
– o que, a certa altura, levou o juro real a quase 2%, pouco mais que isso.
Àquela época, inclusive, cogitou-se que essa poderia ser uma marca da gestão
Dilma. O senhor citou a questão cambial, que teria prejudicado essa queda, que
outros fatores fizeram com que isso não desse certo?
Belluzzo
– Ela
tinha noção de que isso seria prejudicial, mas foi derrotada inclusive porque
os supostos beneficiários de uma redução, que seriam os industriais, estavam em
menor número. Houve uma mudança na composição do empresariado brasileiro. Não
há mais aqueles empresários comprometidos com sua indústria, como o Antônio
Ermírio de Moraes, [Antonio] Bardella, Villares, que, junto com o Estado
brasileiro, foram responsáveis [pelo crescimento da economia]. Os
militares, nesse aspecto, tirando o endividamento externo, que foi um desastre
– e foi o [Mário Henrique] Simonsen que fez, essa coisa de segurar a
tarifa das empresas públicas, empurrá-las para tomar dinheiro fora – e essa foi
uma das razões das privatizações, porque as empresas chegaram lá fragilizadas.
Isso também desarticulou muito as empresas brasileiras, porque as estatais
tinham um papel importante de investir na frente, na infraestrutura – energia,
transporte, telefonia –, criavam um horizonte para o setor privado, era uma
articulação muito virtuosa. O que desarranjou isso foi a privatização, que
decorre da política anterior.
As
estatais foram transformadas em instrumentos de captação do recurso externo,
foram endividadas e, depois da crise da dívida externa, realmente elas ficaram
imanejáveis. Em seguida, se privatizou. Perdeu-se, então, um instrumento de
política industrial, de crescimento. Agora só tem a Petrobras.
Mas eu
dizia que a política econômica do regime militar foi de avanço industrial. O [Ernesto]
Geisel, em seu período, tentou dar um salto, mas caiu no lugar errado: escolheu
os setores tradicionais quando já estava ocorrendo a terceira revolução
industrial, da informática, microeletrônica, farmacêutica, nanotecnologia etc,
e nós perdemos esse bonde. Aí, a economia ficou toda voltada para a estabilização
dos preços. Em 1994, fizemos um dano. Não estou dizendo que não havia
problemas, que era fácil, mas a insistência em manter o plano valorizado era
uma coisa tão tragicamente visível que nem mesmo gente do PSDB [concordava],
como o [José] Serra, por exemplo – que nem sei o que está fazendo no
PSDB, porque não pensa igual a eles, e já disse isso para ele, que está
perdendo tempo. Eles falavam “vamos abrir a economia”, mas fazer isso com o
câmbio valorizado, deu no que deu… É difícil entender isso?
Quando
discutimos a economia brasileira hoje, noto que há um descompasso entre o que
os macroeconomistas pensam e os reais problemas da economia, que são
estruturais e estão localizados na perda de importância da indústria
brasileira, na determinação da forma como funciona e seu dinamismo. Estamos, na
verdade, regredindo. Brinco que estamos flertando com a série C da economia,
não é nem com a série B, e olha que Série B é algo em que tenho experiência [risos].
Fórum –
Mas, no primeiro governo Dilma, além da questão cambial, o que mais não deu
certo nessa trajetória de queda dos juros?
Belluzzo
– Em 2010,
tivemos uma recuperação muito rápida da crise de 2009. Em 2009, o PIB caiu
0,3%; em 2010, cresceu 7,5% – ano de eleição, foi um crescimento espetacular,
uma recuperação quase chinesa. Queria até deixar isso registrado, e não é
porque ele é meu amigo – é por isso, mas não só –, mas que foi feita uma
injustiça muito grande com o Guido [Mantega]. Ele tirou, com grande habilidade,
a economia da recessão. Depois, e eu disse isso para ele, o governo deixou de
lado a coordenação do investimento. Aí sim vem a questão da intervenção, a boa
e a má. Em vez dela [Dilma] coordenar o investimento privado, chamar os
empresários, discutir com eles as melhores condições para deslanchar um
programa de investimentos, tabelou a taxa interna de retorno, o que é um
equívoco, porque não deixou o mercado fazer isso. Tem umas coisas que o mercado
pode fazer e outras que não pode. Ter deixado o mercado fazer isso teria sido
melhor.
[Em 2011]
Não só eu percebi, como outras pessoas – o Delfim, o próprio Lula percebeu –
que ali precisava de uma aproximação entre o governo e o setor privado. Não é
nem um pecado isso, nenhuma promiscuidade, tem que se evitar coisas que
acontecem e são graves. Mas, enfim, esse foi o divisor de águas: a demora. Se
ela tivesse deslanchado o programa, talvez pudesse ter tido um espaço maior
para fazer a desvalorização cambial. Os programas, tanto o do pré-sal, como o
da infraestrutura [PAC] tinham um impacto na economia doméstica. No caso
do pré-sal, tinha cláusula de encomendas domésticas, que é importante, apesar
de todo mundo ficar combatendo, mas é que não têm noção de como foram feitas as
políticas industriais na industrialização americana, alemã e mesmo na francesa.
Ou seja, ficam falando banalidades.
A outra
coisa é que, juntamente com esse equívoco de querer tabelar a taxa de retorno
dos empreendimentos, não se considerou a iliquidez dos empreendimentos. Você
não vende uma estrada como vende uma ação. Pode até vender a ação da empresa
que faz a estrada, mas se a empresa não vai bem, sua ação também não vai. O
terceiro ponto foi a demora no reajuste do preço da gasolina. Não havia razão
para subsidiar a massa de consumidores que tem capacidade para gastar. Em um
certo momento, era possível reajustar sem causar um grande efeito sobre a
inflação. Foi um erro, podia ter deixado a Petrobras em uma situação muito mais
favorável para acelerar os investimentos. Não acho que a Petrobras vá falir, é
preciso resolver, sim, sua relação com os fornecedores e com o pessoal das
empreiteiras que trabalham para ela. Não pode ser feita a confusão de se punir
rigorosamente quem cometeu malfeitorias e destruir esse complexo de empresas
que está relacionado à Petrobras. Tenho insistido muito nisso porque noto
alguma movimentação da CGU, no próprio governo, mas não se pode confundir as
coisas.
Veja os
americanos: quando ocorreu a crise, uma série de crimes financeiros cometidos
pelos bancos foram punidos mais ou menos – não se tem notícia de grandes
figurões que foram em cana, lá é uma farsa. Estou lendo um livro agora, Too
big too jail, em que o autor conta como as coisas são feitas lá. Mas,
retornando: é preciso proteger esse complexo porque todas as empresas estão
financiadas pelos bancos, o que afeta, consequentemente, o sistema bancário. Há
um estoque de dívida nos bancos que são de empréstimos feitos a essas empresas.
Então, não se pode agir, nesse caso, simplesmente com o ânimo de punir, tem que
pensar nas empresas, que são enormes. Pode-se até propor a mudança de
propriedade, fusões e aquisições, mudanças de controle, fazer o que quiser. Mas
não se pode esquecer que são estruturas enormes, que têm peões de obra,
engenheiros, funcionários. O que vai se fazer com essa gente, mandar todo mundo
embora, só porque você é uma espécie de Torquemada. É preciso pensar nas
pessoas que estão lá.
Fórum –
Qual o efeito da financeirização das empresas para a economia brasileira?
Belluzzo
– Esse é
um ponto fundamental. O modelo elétrico brasileiro é todo financeirizado. Há
preço do mercado livre, que de vez em quando bate 800 kw, isso é uma anomalia.
O sistema norte-americano já fracassou na Califórnia por isso, e aqui também.
Vamos olhar o que está acontecendo com São Paulo. A situação me lembra uma
marchinha de Carnaval dos anos 1950: “Rio de Janeiro, cidade que me seduz, de
dia falta água, de noite falta luz”. Vi aqui, na região da minha casa,
restaurantes que precisaram jogar toda a comida fora. O que está na raiz disso?
Uma privatização mal feita, porque os contratos, se exigem, não obrigam as
empresas a fazer o que têm de fazer.
Não quero
usar esse exemplo, porque é meio pedante, mas vou ter que usar: já foram a Nova
Iorque, Paris, Roma? Se sim, viram postes na rua? Poste só tem aqui e em países
mais atrasados do Terceiro Mundo. Então chove e árvore cai em cima do fio, que
não deveria estar no poste, deveria estar enterrado. Eles enterraram? Fui do
conselho da Eletropaulo, e gentilmente falei para o presidente que não ficaria,
porque não concordo com isso, tinha que enterrar. Precisa cobrar mais uma
tarifa? Cobra, explicando que é o que corresponde ao serviço, mas não deixa a
cidade à mercê das chuvas.
Assim
como a Sabesp. A lógica dessas empresas, quando colocam ações em Nova Iorque, é
que elas têm de pagar dividendos. A Sabesp pagou 4 bilhões de reais em
dividendos e não investiu coisa nenhuma, e a Eletropaulo idem – manda dividendo
adoidado para a tal da AES. E o povo que se lixe. Aliás, essa é a regra na
economia de hoje. Eles vão fazer o ajuste fiscal e o povo que se lixe
Fórum –
Falando nisso, o ajuste fiscal tem sido muito criticado por conta dos efeitos
recessivos que ele pode causar. Quais seriam medidas alternativas a ele na
situação atual?
Belluzzo
– Vamos
fugir um pouco do espírito de que a economia é uma máquina que precisa ser
consertada, em que você mexe um parafuso aqui para ter um resultado ali. Eu
disse que acho que o mercado exagerou em relação à situação fiscal. Boa parte do
que piorou se deve a um fenômeno como aquilo que estávamos discutindo em
relação à poupança – como a renda caiu, a situação fiscal piorou. É só olhar as
notícias de jornal: “arrecadação cai para os níveis mais baixos desde 1900 e
não sei quanto”. Por quê? A situação fiscal tem a ver com o crescimento. Por
isso Keynes dizia que é preciso estabilizar o investimento para estabilizar o
comportamento da renda. Se deixamos a própria economia fazer isso, flutua o
tempo inteiro, e o ajuste fiscal será feito em cima de uma economia que está em
recessão? Vai se afundar, empurrar para baixo. Qual é a lógica do ajuste
fiscal? Se a gente prometer ajuste fiscal, certamente o setor privado vai
ganhar mais confiança, vai investir, e aí a economia se reequilibra – é o que
eles pensam. Só que essa suposição é falsa.
Quando o
ajuste fiscal é feito em recessão, o cara da empresa que produz, digamos,
equipamentos mecânicos para outra indústria que está perdendo receita, mandando
os empregados embora, vai comprar equipamento da última? Vai gastar mais,
investir, olhando que está tudo caindo? O que se observa hoje é isso. Não
importa que os empresários digam que é bom o ajuste fiscal, porque, como dizia
um tal de Karl Marx, “eles não sabem mas fazem”. As pessoas não têm noção dos
seus próprios interesses, elas atiram contra seu próprio pé. Apoiam, porque a
ideologia tem um papel muito importante na vida social. Não fosse isso, se os
homens fossem capazes de investigar suas próprias convicções, pouca gente
aderiria ao Bispo Macedo. Fazem isso porque faz parte da construção da
consciência coletiva. Os empresários não são diferentes, nós todos não somos.
Querem acreditar no que para eles é correto, que é ter ajuste fiscal, porque o
ajuste fiscal corresponde a uma convicção profunda individual das pessoas. Se
estou em uma situação difícil, o que faço? Reduzo meu gasto e, com uma parte da
minha renda, tento liquidar minhas dívidas. Reduzo a dívida como proporção da
minha renda e do meu patrimônio e assim recrio minha situação, e tudo corre da
melhor maneira. Só há uma falácia de composição aí, não se pode transpor isso,
o que uma família ou um indivíduo podem fazer, para o conjunto da economia,
porque o Estado e as empresas formam um conjunto de relações, no qual o Estado
tem a função de gastar e arrecadar. Se a carga tributária é de 35%, o que o
Estado gasta, na margem de 35% volta para ele. Se ele não gasta, não volta. É
difícil entender isso?
Fórum –
Vimos recentemente o anúncio de demissões na indústria automobilística. Em
outras situações, o governo chegava, tentava conversar ou intervir de alguma
forma, foram feitos diversos regimes de redução/isenção tributária para o
setor, e agora não houve nenhuma dessas medidas. Isso já é uma amostra,
digamos, do conceito de patrimonialismo de Joaquim Levy aplicado na prática? O
senhor acha que existe um risco concreto do governo Dilma, neste segundo
mandado, perder uma das marcas que garantiu, inclusive, sua reeleição – a
manutenção dos baixos níveis de desemprego?
Belluzzo
– Isso
está no escopo da guerra patrimonialista. Cerca de 50% dos empregados da
Mercedes e da Volks que foram demitidos não têm ainda condições de adquirir o
seguro-desemprego porque estão há menos tempo empregados. Estes vão para casa e
dizem o que? Vou assaltar na rua, ou vender alguma coisa nas esquinas, por que
vai sobreviver como? Essas questões não entram no debate. Se um programa para
proteger essas pessoas é criado, vai contra o ajuste fiscal. Outro dia, o Elio
Gaspari escreveu na Folha [de S. Paulo] que se estava criando “a
bolsa metalúrgico”. Isso é porque ele não é metalúrgico. Ele ganha dinheiro da Folha
de S. Paulo, deve ganhar um bom salário, então é fácil, de cima, falar
isso. Como ele gosta muito dos Estados Unidos, fico surpreso dele não saber que
o Obama fez um programa para proteger a GM e a Ford – na verdade, estatizou as
duas. Lá tem “bolsa automóvel”. Me dou bem com ele, gosto dele, mas é preciso
ter cuidado com as coisas que a gente fala para não simplificar.
Aliás, a
imprensa tem esse vício de simplificar e querer respostas inequívocas, basta
ver o caso da Charlie Hebdou. Muito se falou que foi um atentado à liberdade de
expressão, mas acho que isso e uma simplificação que pode nos conduzir a
decisões equivocadas. É uma coisa muito mais complicada, e até mesmo os
franceses, em sua maioria, compreenderam que é algo mais complexo – à exceção
da extrema-direita.
Fórum –
Falando ainda sobre o papel da imprensa, como o senhor avalia que ela colabora
com a manutenção dos “dogmas da teologia econômica” que o senhor mencionou no
começo da entrevista?
Belluzzo
– Ela é
fundamental na sociedade de massas, porque como é que as pessoas se informam e
criam convicções? Quando se entra na internet, percebe-se claramente que, em
vez de contrabalançar isso, agrava, porque há uma repetição, os comentários são
sempre os mesmos – assustadores. Mais do que isso, imaginou-se que se criaria a
Ágora, mas se criou a Cruz Gamada, o fascismo. O fascismo não é um fenômeno de
Estado, mas sim da sociedade. Uma de suas características é o imediatismo – é
isso ou aquilo. Foi isso que aconteceu na França, o maniqueísmo, os bons contra
os maus.
Fórum –
Seguindo nessa discussão sobre a mídia, como o senhor vê essa separação
reforçada por ela da economia da política, como se fosse algo técnico, quase
puro, não influenciado pela ideologia ou por orientações externas a si?
Belluzzo
– Para
simplificar, eu diria que, se a “velhinha de Taubaté” fosse dar um curso de Economia,
diria essas coisas. Há muita velhinha de Taubaté dando curso de economia, como
se fosse uma ciência, que tem leis de funcionamento típicas etc. Agora, temos
que entender que esse tipo de abstração é importante para retirar do cidadão a
ideia de que ele pode contestar, questionar o que está sendo dito pelos
especialistas. “Cidadão não pode, porque não tem formação” – é isso o que eles
estão querendo dizer. Cidadão está impedido de se manifestar porque não conhece
as verdadeiras leis de funcionamento. Como as verdadeiras leis de funcionamento
que formulam são fajutas, é um mecanismo de dominação e de controle.
Se
houvesse outra correlação de forças no Brasil, outro arranjo social, se os
trabalhadores brasileiros e sindicatos tivessem participação mais efetiva na
discussão, teriam outra proposta. Mas não têm, quem as tem são os rentistas,
pessoal do mercado financeiro, os proprietários e controladores da riqueza. Não
adianta nada votar na Dilma – e temos que reconhecer que ela está ilhada – se
você depois não cobra que ela faça a política econômica que prometeu. Não é que
é uma traição, mas acharam que bastava votar e não participar ativamente da
discussão. Sempre dou o exemplo da Alemanha e da economia social de mercado.
Ela nasce do ordoliberalismo, liberalismo na ordem, que supõe que os atores
sociais importantes têm de participar da discussão – não só dos salários, da
política monetária, mas de tudo. O Bundesbank [banco central da Alemanha]
sempre foi submisso à questão maior, que é a relação entre trabalhadores e
empresários. Os trabalhadores têm ainda representação nas empresas. E a
negociação salarial, de preço de salários, além das condições de trabalho,
treinamento dos trabalhadores, tudo é discutido. Por isso a Alemanha saiu muito
bem depois da guerra, conseguiu preservar sua estrutura industrial, avançada em
relação a outros países da Europa. Seu mecanismo de coordenação é mais
adequado.
Falei
para o Lula: “Presidente, era preciso que fizéssemos um acordo social para
impedir que, na instabilidade da economia, se sacrificassem os trabalhadores”.
Negocia, há várias formas de fazer isso. Mas o que acontece é que a economia
vista dessa forma, fetichista, tem uma função. Marx já tinha dito: produzir a
ilusão de que você está submetido a um sistema inexorável, natural, do qual não
se pode fugir. Na verdade, não há nada de natural, é tudo uma coisa construída
pelo homem. Aliás, o capitalismo não é natural, é antinatural, sob vários
pontos de vista. Ele tirou o homem da dependência da natureza mas, ao mesmo
tempo, cometeu ofensas brutais a ela.
Fórum –
Em uma entrevista recente, o senhor disse que o
Aécio Neves não ganhou as eleições, mas que governaria pelos próximos quatro
anos. Mantém essa opinião, sobretudo agora, que a política econômica do segundo
mandato começa a ser desenhada?
Belluzzo
– A
política econômica que está sendo negociada é a política do Aécio. É como se
diz nos estádios de futebol: sai Armínio [Fraga, anunciado por Aécio Neves
como seu eventual ministro da Fazenda], entra Levy. É a mesma coisa que
trocar seis por meia dúzia. O Armínio até que é um pouco mais moderado, eu
diria. Ele tem dúvidas, o Levy não. Como disse o Luiz Carlos [Mendonça de
Barros, economista], em entrevista ao Estadão, ele é um
ponto fora da curva, um ortodoxo impenitente, porque não cede. Em uma palestra
que o Keynes foi fazer na Alemanha – em uma época em que o país estava
submetido às reparações de guerra –, um sujeito da plateia levantou a mão e
disse: “mas o senhor veio aqui outra vez e disse outra coisa”. Keynes disse:
“é, mas mudei de opinião. As circunstâncias mudam e eu mudo de opinião”. Acho
que esse não é o caso.
Fórum – O
senhor mencionou a Petrobras em outra parte da conversa. Que tipo de medidas o
governo tem que tomar, além dessas saneadoras, e que tipo de papel a estatal
pode desempenhar em uma recuperação econômica do Brasil?
Belluzzo
– Se
juntar a Petrobras e as grandes construtoras, devem representar uns dez pontos
percentuais da taxa de investimento. Se deixarmos isso colapsar, trava o
sistema. O governo precisa ajudar a Petrobras usando os bancos públicos,
ajudá-la a se recuperar financeiramente, a não atrasar o pagamento dos
fornecedores, o que é muito grave – ela está fazendo isso, muitos estão com a
corda no pescoço, sendo que nada têm a ver com a corrupção. Isso bate em
pequenas e médias empresas subcontratadas dos fornecedores. Há um risco
sistêmico, que reverbera nos bancos. É necessário fazer isso com muito método,
cuidado. Teria que chamar os procuradores, os promotores, e avisá-los que não
podem ser imprudentes. Afinal, é uma questão social, a empresa é uma
organização social, tanto que os estudos de microeconomia que valem a pena são
sobre organização industrial e empresarial. Por isso, não se pode entrar de
sola, é preciso prestar atenção, porque se pode destruir vidas de pessoas que
não têm nada a ver com isso e causar um grande prejuízo para a economia.
Pode-se
criar, por exemplo, um programa de mudança de controle das empresas, limpar o
terreno, mas deixar que as empresas sobrevivam. Não é essa história de “vou
trazer uma empresa estrangeira para operar no Brasil”. Isso tem memória,
experiência e memória técnica. Fico impressionado com as simplificações. Sei
bem, meu pai foi juiz, estudei Direito, mas eles [membros do Judiciário]
não têm formação sobre essas coisas, infelizmente. Noto que, no desempenho do
juiz, falta um pouco de formação. Outro diz dei uma entrevista sobre isso e as
pessoas disseram que queria “proteger”, aí entra a simplificação. Proteger o
que? Não tenho interesse nenhum. Fico com medo de que isso agrave a recessão e,
na verdade, destrua o patrimônio brasileiro.
Fórum –
No final do ano passado, o economista Thomas Piketty concedeu entrevista à Fórum e falou muito sobre taxação das
grandes fortunas para redução de desigualdades, além de auditoria cidadã da
dívida pública. O que o senhor pensa sobre estes dois conceitos? Sua aplicação
no Brasil é viável?
Belluzzo
– O Brasil
tem uma das menores taxações sobre patrimônio, é quase desprezível.
Recentemente, li um estudo de um professor do Rio Grande do Sul sobre isso, com
dados da Receita Federal. O Piketty era, não sei se é mais, assessor do Partido
Socialista francês. É um social-democrata, formado nessa escola francesa, e não
é marxista, é um economista convencional, mas tem essa preocupação com a
igualdade. Acho o livro [O Capital no século XXI] muito interessante. As
pessoas ficaram criticando a teoria – e ela pode sim receber críticas – a
fórmula do r>g [renda/capital sendo maior do que a taxa de crescimento da
economia], mas ela exprime, na verdade, um avanço dos ganhos patrimoniais,
sejam eles do capital produtivo ou do capital financeiro, em relação à taxa de
crescimento, e isso é um fator que, para ele, simplificadamente, amplia a
desigualdade. Ele é muito bom economista no manejo dos dados, foi perfeito.
Tentaram desmoralizá-lo, mas se deram mal, porque fez tudo direito. Mostra que,
na época de guerras, a desigualdade diminui, porque há destruição de
patrimônio, e que, durante um período longo, da grande depressão até meados dos
anos 1970, a desigualdade cai, mas aí por conta das polícias econômicas.
Veja os
Estados Unidos, o [Franklin] Roosevelt, para mim, o maior estadista do
século XX, foi corajoso para enfrentar as questões: sindicalizou, garantiu
aumento de salário, fez programas sociais de proteção aos mais pobres, e isso
foi replicado no Pós-Guerra pelo Estado de bem estar social. O que ele [Piketty]
revela é que se pode fazer arranjos de política econômica que favoreçam
crescimento, aumento da igualdade e o bem-estar da população em geral. Em
meados de 1980, 1990, isso se reverte com as políticas liberais, e aí a
economia virou esse fetiche.
Fórum – O
senhor citou algumas vezes conversas com o ex-presidente Lula. Tem a mesma
abertura que tinha com ele em relação à presidenta Dilma?
Belluzzo
– É bom
você ter perguntado isso. Cada um tem o seu estilo. Conheço o Lula desde os
anos 1970, temos uma trajetória juntos, sei como ele é. Ele gosta de ouvir,
mesmo que não concorde com você. Fui professor da Dilma no mestrado e no
doutorado, e ela sempre foi uma aluna muito aplicada, muito respeitosa. Não é
por isso que me darei ao direito de dar lições a ela. Quem foi eleita foi ela,
com 54 milhões de votos. Não vou ficar querendo dar pitaco. Se me perguntar
alguma coisa, eu falo.
Tenho
grande carinho por ela, gosto dela, mas acho que está em uma situação muito
difícil. Mas torço muito. Me convidou para ir à posse, não pude comparecer, mas
mandei a ela um e-mail, que ainda não respondeu [risos]. Torço muito
para que dê certo. Quando falo sobre a recessão e as dificuldades, não estou
torcendo contra. No Palmeiras, por exemplo, tem gente que torce contra. Mas
pode aparecer o diabo lá que torço a favor. Não me interessa quem é o
presidente, quero que o time ganhe. Vou torcer para que dê errado, as pessoas
sofram, ela se dê mal? Até porque, mal ou bem, nos últimos 50 anos, quem tentou
promover a ascensão dos debaixo foi o PT, com todos os seus erros – e erros enormes
–, mas foi o PT que fez. É o progressismo que nós temos.