Atravessando o planalto do Tibete,
cinco grandes rios – Indus, Brahmaputra, Irrawaddy, Salween e Mekong – carregam
a água das geleiras dos Himalaias e das monções que abastece 1,3 bilhão de
pessoas em vários países do Sudeste da Ásia. Agora, no entanto, este
fornecimento está ameaçado pelos planos da China e de outros países da região
de construir usinas, barragens e desvios em seu curso, o que pode gerar o
primeiro grande conflito mundial em torno deste recurso cada vez mais escasso.
A luta pelo controle desta verdadeira
“caixa d’água” continental teve seu primeiro contragolpe desferido pela Índia,
onde a Suprema Corte do país ordenou no mês passado o início dos trabalhos para
a construção de canais que vão interligar os principais rios indianos. No
centro do projeto está uma estrutura de 400 quilômetros de extensão que vai
desviar a água do Brahmaputra para o Ganges, visando a irrigar terras
cultiváveis sedentas a cerca de mil quilômetros ao Sul.
A decisão indiana é uma reação aos
planos chineses de construir barragens e desviar o Brahmaputra, um dos últimos
grandes rios do mundo ainda sem modificações no seu trajeto pelo homem, mais
acima no seu curso, no Tibete. No Cânion de Tsangpo, o governo da China
pretende levantar duas gigantescas hidrelétricas, cada uma gerando mais do
dobro da energia da usina de Três Gargantas, no Yangtsé, atualmente a maior do
mundo. Além disso, ainda mais alto no curso do Brahmaputra, os chineses querem
criar um desvio que levaria até 40% de seu fluxo para as planícies do Norte do
país.
O choque entre os projetos de China e
Índia – duas potências nucleares -, no entanto, deve fazer uma vítima ainda
mais vulnerável: Bangladesh. O país depende do Brahmaputra para conseguir dois
terços de toda água que consome, grande parte usada para a irrigação dos campos
de arroz durante a longa estação seca da região. Com o fluxo do rio desviado e
reduzido, cerca de 20 milhões de agricultores de Bangladesh podem ver suas
plantações, e eles próprios, morrerem de sede.
“No caso do Ganges-Brahmaputra, já
existem barragens como a de Farakka, construída pela Índia, que trouxe impactos
reduzindo áreas úmidas [pântanos] em Bangladesh”, lembra Benedito Braga,
professor de Engenharia Civil e Ambiental da USP e vice-presidente do Conselho
Mundial de Água. “Mas não acredito que veremos um choque armado entre países
por causa disso. Iniciativas como a comissão multilateral para gestão da bacia
do Rio Mekong e a South Asian Association of Regional Cooperation (Saarc),
fundada em 1985 com representantes do Butão, Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh
e Sri Lanka, mas infelizmente sem a presença da China, mostram que há maior
potencial para colaboração do que para conflito no caso da gestão das águas.”
Controle chinês – Até recentemente, a
China havia focado a construção de suas usinas em rios que correm dentro do
país. Mas, diante da explosão na demanda por eletricidade devido ao forte
crescimento econômico, os chineses começaram a se voltar para os rios
transnacionais. Nos últimos anos, o país já construiu uma série de barragens em
afluentes do Brahmaputra e a primeira no curso principal do rio, a Usina de
Zangmu, orçada em US$ 1 bilhão, deverá estar pronta em 2014. Depois, será a vez
das obras no Cânion de Tsangpo, onde seriam instaladas as usinas gigantes de
Motuo (38 gigawatts) e Daduqia (42 gigawatts). Para ser ter uma ideia do
tamanho destas barragens, a usina das Três Gargantas, atualmente a maior do
mundo, tem capacidade instalada de 22,5 gigawatts, enquanto Itaipu pode gerar
até 14 gigawatts.
Mas a China não está de olho só na
água dos rios tibetanos que fluem para Índia e Bangladesh. Suas ambições também
preocupam outros países vizinhos. Outro atrito recente envolve a barragem de
Myitsone, que os chineses estão construindo no Rio Irrawaddy, no Norte de
Mianmar. Há três anos, a junta militar que governava o país aprovou a
construção, embora 90% da energia que vai ser gerada na usina de 6 gigawatts
será exportada para a China. No fim do ano passado, porém, o governo militar de
Mianmar suspendeu as obras depois que dezenas de pessoas morreram em choques
entre a polícia e moradores locais, cujas vilas serão inundadas pelo
reservatório.
A confusa situação política em
Mianmar deixa em dúvidas o destino das usinas de Myitsone e 12 outras
planejadas pelos chineses na região – seis no Rio Irrawaddy e seis no Rio
Salween. Muitas das barragens estão em áreas remotas designadas Patrimônio
Mundial pela Organização das Nações Unidas por seus ecossistemas únicos de
florestas e água doce. Depois que a construção da usina Myitsone foi
paralisada, veio a público um relatório ambiental de 900 páginas encomendado
pela própria China desaconselhando as obras da barragem pelo perigo de
inundação dos ecossistemas listados pela ONU.
Já o impacto do projeto indiano de
desviar o Brahmaputra para alimentar o Ganges foi avaliado por Edward Barbier,
da Universidade do Wyoming, nos EUA, e Anik Bhaduri, do Instituto Internacional
de Gerenciamento de Água em Nova Déli. Eles alertam que uma redução de 10% a
20% no fluxo do rio poderia deixar secas grandes áreas em Bangladesh. Além
disso, com um fluxo menor de água doce, a água salgada da Baía de Bengala
invadiria boa parte do delta do rio, causando uma verdadeira catástrofe
ambiental.
A melhor prova de que as usinas podem
provocar danos ecológicos graves está ali perto, no Rio Mekong, onde a
construção de barragens pela China está mais adiantada. Até agora, o país já
levantou quatro das oito hidrelétricas que pretende instalar no rio. Estas
barragens capturam o fluxo de água das monções e o liberam durante a estação
seca. O governo chinês argumenta que, ao regular o fluxo do rio, elas são
benéficas, mas há três anos o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente
(Pnuma) alertou que o fim do pulso natural de inundação e seca é uma “ameaça
considerável” aos ecossistemas na parte baixa do rio. No estudo para o Pnuma,
Ky Quang Vinh, do Centro Vietnamita de Observação dos recursos Naturais e Meio
Ambiente, mostrou que um pulso mais fraco faria a água salgada do Mar do Sul da
China invadir mais de 70 quilômetros adentro do delta do Mekong, destruindo
grandes extensões de plantações de arroz na principal região de produção do
segundo maior exportador mundial do cereal.
A luta pela água dos Himalaias está
acirrada, mas muitos especialistas argumentam que o aproveitamento do potencial
hidrelétrico da região é fundamental se o mundo quiser que países como a China
e a Índia alimentem suas crescentes economias com fontes de energia de baixa
emissão de carbono. Numa região onde o abastecimento de água já está no limite,
no entanto, a disputa pelo recurso pode acirrar os ânimos. A China foi um dos
países que votou contra proposta de tratado da ONU para regulamentar o
aproveitamento de rios transnacionais, deixando seus vizinhos praticamente como
reféns de seus projetos.
“Na verdade, esta resolução sobre
usos não navegáveis de rios transfronteiriços está para ser ratificada desde
1997″, lembra Benedito Braga. “Há 15 anos, portanto, o sistema das Nações
Unidas não consegue colocar em prática esta proposta de regular o
aproveitamento pelos países dos rios que correm além das suas fronteiras
políticas”.
Braga destaca ainda que o próprio
Brasil, Turquia, EUA, Israel e Áustria, entre outros países, são contra os
termos da proposta da ONU por entenderem que ela interfere com o princípio da
soberania dos Estados.
“A perspectiva para solução desta
questão seria o conceito moderno de compartilhar os benefícios advindos da
gestão racional e integrada dos recursos hídricos das bacias transfronteiriças
e não simplesmente compartilhar a água”, defende. “Um exemplo típico disso é o
aproveitamento hidrelétrico de Itaipu, onde Brasil e Paraguai dividem a energia
gerada na bacia do Rio Paraná”.
Matéria em O Globo,
socializada pelo Jornal da
Ciência / SBPC, JC e-mail 4497.
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