Enem: educação para quê e para quem
por Raquel
Júnia – Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)
MEC afirma que média geral dos alunos no Enem
melhorou. Professores e pesquisadores discutem o que deve ser a qualidade
buscada na escola pública.
A educação de qualidade é uma bandeira que
mesmo pessoas que não fazem parte de nenhum movimento organizado levantam.
Nesta semana, foram divulgados os resultados do Exame Nacional do Ensino Médio
(Enem) e, no ranking de desempenho das escolas feito pela mídia, nos primeiros
lugares estão instituições particulares e, nos últimos, públicas. Pesquisadores
entrevistados pela EPSJV/Fiocruz alertam sobre os riscos dessa comparação e
discutem: afinal, o que é uma formação de qualidade no ensino médio?
Em coletiva de imprensa logo após a divulgação
dos resultados do Enem, o ministro da Educação, Fernando Haddad, afirmou que
houve um aumento de dez pontos na média geral dos estudantes do Enem, o que
para o ministro, é um indicativo de melhora. Apesar disso, em todos os
noticiários foi manchete o fraco desempenho das escolas públicas em comparação
às privadas, apesar de o MEC afirmar que o Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais (Inep) não concluiu os estudos que permitirão avaliar se
a desigualdade entre as públicas e particulares diminuiu. O professor do
Cefet-Rio e ex diretor de concepções e orientações curriculares para a educação
básica do MEC, Carlos Artexes, avalia que é um equívoco comparar o desempenho
das instituições. “A avaliação dos resultados de um exame sem considerar outras
variáveis é um equívoco pedagógico. Não estamos avaliando as condições da
própria escola, a melhora que essas escolas tiveram, nem o perfil dos
estudantes que as escolas atendem”, alerta. Para Artexes, é preciso levar em
consideração, por exemplo, que a grande maioria dos estudantes de ensino médio
estudam em instituições públicas. “Das mil escolas com piores resultados, 30%
são particulares e 70% são públicas. Nós sabemos que no Brasil temos mais de
85% das matrículas nas escolas públicas. É inegável que existe um conjunto de
escolas que obtiveram bom desempenho, por várias razões, inclusive históricas.
Seria um equívoco dizer que isso não é importante, porque essa é uma das
funções centrais da escola, mas não é a única variável que pode ser
considerada”, completa.
O professor da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (Uerj) e do Programa de Pós-graduação da Escola Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz), Gaudêncio Frigotto, afirma que um elemento
importante na discussão é considerar as diferentes condições de investimento
nas escolas particulares e nas públicas. “Isso não tem a ver com a inteligência
das crianças, mas com as condições materiais objetivas, de tempo na escola, de
acompanhamento da família, de tempo do professor. Outra questão é que as
escolas particulares trabalham no sentido de ter notas altas porque elas fazem
disso um marketing“, analisa.
No Enem de 2010, cujos resultados foram
divulgados agora, o MEC adotou uma metodologia diferente para considerar o
desempenho das escolas. As instituições foram separadas de acordo com o número
de alunos que participaram do Exame. Assim, foram divulgados quatro grupos
distintos de resultados – o das escolas que tiveram participação de mais de 75%
dos estudantes, das escolas com participação entre 50% e 75%, um terceiro grupo
com participação de 25% a 50%, e o último com instituições nas quais houve
menos de 25% de taxa de participação. Frigotto considera positiva essa
iniciativa do MEC para tentar impedir o marketing das escolas particulares com os
resultados obtidos. “O MEC tenta com isso evitar esse tipo de manipulação por
parte das escolas, porque algumas instituições incentivam apenas os melhores
alunos a fazerem o Enem”, afirma. Artexes concorda: “Isso é um avanço, porque
assim se faz o ranqueamento, sobretudo, das escolas que participam com mais de
75% de seus estudantes”. O professor pondera, entretanto, que a medida é insuficiente
devido ao número crescente de estudantes que têm feito o Enem. “A tendência é
ampliar esse número. Hoje, de um milhão e 800 mil alunos que concluem o ensino
médio, mais de um milhão estão fazendo o exame. É importante mostrar também o
perfil das escolas. O Inep tem inúmeros dados sobre as condições básicas das
escolas e seria preciso dar visibilidade a algumas dessas características. É
importante entender, por exemplo, que há escolas que fazem seleção para o
acesso. Então, evidentemente, ela é diferente de outras. Há escolas em
localizações territoriais diferenciadas. Então, quanto mais relacionarmos o
resultado do exame com outros perfis das unidades escolares, mais avançaremos
nas propostas de políticas públicas”, sugere.
Condições materiais da qualidade
Em greve há mais de cem dias, os professores de
Minas Gerais afirmam que o baixo desempenho das escolas públicas no Enem não é
nenhuma surpresa. “Quando ficamos 100 dias em greve é sinal de que a
escola pública não tem valor para ninguém. Quando o governador oferece R$ 712
de salário – não é nem de piso salarial -, é sinal de que os professores não
representam nada”, desabafa a professora Monica de Souza, diretora estadual do Sindicato Único dos Trabalhadores em Educação de Minas
Gerais (SindUTE). Apesar do apoio de diversos movimentos sociais e
outras categorias de trabalhadores, o governo do estado de Minas cortou
salários dos professores grevistas e demitiu contratados. As assembléias
realizadas durante a greve chegam a reunir 9 mil professores e funcionários das
escolas públicas estaduais.
No Rio de Janeiro, os trabalhadores da educação
também recentemente estavam em greve e inclusive acamparam durante quase um mês
na porta da Secretaria Estadual de Educação exigindo 26% de perdas salariais em
caráter emergencial, já que, na realidade, a defasagem nos salários é de 80%.
Para o professor Adriano Santos, diretor da Secretaria de Assuntos Educacionais
e de Formação do Sindicato
dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro (Sepe) e diretor da coordenação nacional da
Intersindical, também não é novidade o desempenho melhor das escolas
particulares no Enem. “A lógica é que aqueles que têm melhores condições de
aprendizado irão aprender mais”, salienta. Adriano ressalta que, sem prover as
condições materiais e humanas, é impossível avançar na melhoria do ensino
público. “Isso significa escolas com infraestrutura, professores e funcionários
bem pagos e com planos de carreira, além de diversidade e profundidade
curricular. Ainda não temos nem as condições básicas e por isso temos vários
problemas na rede pública que vão desde falta de material, prédios ruins, até a
qualidade no sentido mais amplo, que está relacionada com a concepção de
educação que queremos”, afirma.
O professor lembra que em 2011 já ocorreram 20
greves de profissionais da educação, algumas simultaneamente, em todo o país.
“A pauta é praticamente a mesma. Aqui no Rio, dos 26% que exigimos de reposição
de perda salarial, o estado concedeu apenas 5%”, relata.
Gaudêncio Frigotto ressalta que o próprio
ministro da educação, Fernando Haddad reconheceu durante a divulgação dos dados
do Enem que o Brasil está longe de ter o investimento necessário em educação. O
professor destaca uma pesquisa divulgada recentemente pela Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que situa o Brasil no contexto
da educação mundial como um país que tem poucos jovens na universidade. “Há um
dado nessa pesquisa que mostra a diferença de materialidade que tem um aluno de
escola privada, especialmente de classe média, e um aluno de escola pública. O
Brasil gasta em torno de R$ 3 mil por aluno ao ano na rede pública. O padrão de
gasto dos países da OCDE é de R$ 13 mil. Portanto, estamos quatro vezes abaixo.
Isso revela que de fato nenhum professor ou diretor faz milagre com escolas tão
mal estruturadas”, diz.
O MEC afirma que o investimento na educação tem
crescido. De acordo com o ministério, em 2000, o gasto em educação por aluno a
cada ano no ensino médio, era de R$ 770. Em 2009, esse valor subiu para R$
2.373. Frigotto destaca, entretanto, o quanto esses valores ainda estão muito
distantes do ideal. Ele compara: “Nas escolas da rede privada, sobretudo
aquelas que aparecem nos primeiros lugares do Enem, o custo direto por aluno é
de R$ 8 mil a R$ 10 mil reais ao ano. Basta somar as mensalidades pagas”,
reforça.
Para Artexes, de fato o custo por aluno ao ano
no Brasil é um dos menores do mundo, particularmente no ensino médio.
“Precisamos valorizar esse crescimento que houve. Mas ele não é suficiente, não
podemos ficar satisfeitos. Comparado com países até vizinhos nossos, que têm um
investimento médio no ensino médio em torno de R$ 6 mil, o Brasil está distante
de uma média razoável, e por isso que é importante a luta pela ampliação dos
recursos para a educação”, diz. O professor completa que as iniciativas de
descentralização dos recursos para a educação ajudaram no crescimento obtido.
“O Brasil tem uma estrutura tão burocrática e uma centralização de recursos tão
significativa, que comemoramos quando criamos mecanismos de fazer com que esses
recursos sejam aplicados diretamente na educação e nos lugares onde devem
chegar, seja na unidade escolar, seja no pagamento de salário dos professores.
O Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb) ajudou nisso, assim como
o repasse voluntário, e as iniciativas de cada vez mais exigir que se cumpra a
legislação no que diz respeito ao investimento dos estados e municípios. Quanto
mais monitoramos, mais os recursos vão sendo destinados e o investimento no
aluno vai aumentando”, observa.
10% do PIB para a educação
A campanha ‘PNE
pra Valer’ ,
organizada por vários movimentos sociais, quer que no novo Plano Nacional de
Educação (PNE) fique garantida a destinação de 10% do Produto Interno Bruto
(PIB) para a educação. De acordo com o MEC, o Brasil investe hoje cerca de 5,3%
do PIB. O ministro da Educação já deu declarações sinalizando a posição do
governo de investir no mínimo 7% do PIB, entretanto, os movimentos argumentam
que ainda é muito pouco. Frigotto concorda. “É unânime do ponto de vista das
organizações científicas, culturais, sindicatos e até já é uma tendência dentro
do próprio Congresso que 7% é absolutamente insuficiente, significa manter as
coisas como estão. Nós continuaremos tendo escolas sem professores nas
condições ideais, porque eles vão trabalhar em três, quatro escolas. O PNE
postula que o professor trabalhe em uma escola apenas, com metade do tempo em
sala de aula e metade tendo formação e apoiando o aluno. E, para isso, o piso
salarial tem que subir no mínimo até a mesma base que se paga aos profissionais
liberais, administradores, engenheiros, advogados, algo em torno de R$ 3 mil”,
explica. Segundo o professor, com o aumento de 7% só seria possível pagar o
piso atual aos professores.
Os sindicatos dos professores e trabalhadores
da educação de Minas Gerais (SindUTE) e do Rio de Janeiro (Sepe), além de
vários outros sindicatos do país, também estão na campanha pelos 10% do PIB.
“Esses 10% do PIB garantem o que queremos: respeito às condições de trabalho
dentro da escola, salário decente, inclusive para no futuro termos professores.
Além disso, que de fato tenhamos condições para atendermos à multiplicidade e
pluralidade de alunos que temos na escola hoje. Isso seria um salto de
qualidade”, afirma a diretora do Sind UTE, Mônica de Souza.
Carlos Artexes concorda com a campanha.
Entretanto, para ele, garantir 7% do PIB para a educação é uma meta realista.
“Sabemos que quando falamos em 7% é uma meta realista, mas lutar por 10% também
é uma meta extremamente bem posicionada politicamente. Seria ingênuo acharmos
que poderemos chegar a 10% do PIB na correlação de forças que está posta. Mas
passarmos de cerca de 5% para 7% é um crescimento extraordinário, embora não
suficiente para a tarefa e a dívida que nós temos. Lutar pelos 10%, pode nos
ajudar a garantir 7% ou um pouco mais”, observa. Artexes reforça que,
além de aumentar os recursos, também é preciso garantir formas de corrigir
outros problemas, como o não cumprimento da legislação por parte dos municípios
e estados.
Concepção de educação
Além das condições materiais, discutir
qualidade significa também debater a concepção da educação. Esta é a opinião de
todos os entrevistados desta reportagem. “A maioria da classe trabalhadora se
forma nas escolas públicas, então, precisamos saber que tipo de educação
interessa para nós enquanto classe. Precisamos discutir se o que se pretende da
educação é que ela seja apenas uma reprodutora dos mecanismos de opressão,
exploração, preconceito e hierarquização da sociedade, ou uma educação que quer
a libertação e a construção do projeto de uma nova sociedade”, reflete o
diretor do Sepe, Adriano Santos.
Para Artexes, além da referência material, a
definição de qualidade na educação tem pelo menos mais outras três dimensões.
Todas elas, segundo o professor, se articulam. “Há uma dimensão organizativa.
As escolas podem ter a mesma base material, mas um processo de organização e
procedimentos que favoreçam o desempenho. Outra dimensão está nas relações.
Quando se estabelece uma relação mais democrática, um processo que respeita o
estudante e cria diálogos entre os professores, direção e estudantes,
alcança-se um nível de qualidade. E a dimensão mais ampla está na identidade da
escola, no projeto pedagógico com seus valores. Pode haver escolas com
excelente desempenho no Enem e isso tem que ser valorizado, mas não é tudo.
Muitas sociedades têm altos níveis de educação, mas não são capazes de
estabelecer valores humanos dentro do processo social. Isso também é
educação e também é tarefa da escola compartilhar esse processo formativo dos valores
humanos, daquilo que concebemos como avanço dos sujeitos, e seu
desenvolvimento”, detalha.
Gaudêncio Frigotto destaca que a qualidade é um
conceito extremamente disputado ideologicamente, e que a iniciativa de ranquear
as instituições está dentro de uma perspectiva de qualidade mercantil, de
entender a educação como uma mercadoria. “Para os filhos da classe
trabalhadora, uma educação de qualidade é ter uma educação básica que lhes
permita articular conhecimento, cultura, trabalho e vida. Portanto, o critério
definidor da qualidade não pode ser o mercado de trabalho, ainda que seja
importante esse jovem entender a base científica, tecnológica, política e
cultural que rege o mundo da produção. É uma educação que está voltada ao
sujeito educando, de forma que ele possa se apropriar dos conhecimentos da
ciência humana e da natureza, para interpretar e analisar a realidade, para
tornar-se não um sujeito alienado, manipulado, colonizado, mas um sujeito que
analise, se posicione e tenha condições de interferir na realidade”, define. O
professor analisa que a visão produtivista e mercantil de educação é,
infelizmente, dominante hoje. “O indicador disso é que grande parte das escolas
de ensino fundamental e médio são públicas, mas começam a ser administradas e
dirigidas pelo setor privado. A tese dos empresários e da imprensa dominante é
que as escolas só serão boas quando tiverem os critérios das escolas privadas.
Hoje, no município do Rio, por exemplo, quem dirige o processo e a gestão
pedagógica das escolas, é o Instituto Ayrton Senna”, exemplifica.
Fonte: EcoDebate, 21/09/2011