É a ideologia, imbecil.
Assisti Andor, uma série baseada na trilogia Star Wars, está no aplicativo da Disney. Uma das histórias, que como outras contadas em outras séries tiradas do conflito entre o Império e a rede dos rebeldes leais à resistência dos jedis, são insurreições latentes, paralelas ao mal trazido pelo regime opressor do Dart Vader e seguidores dos sits.
Destaquei uma cena onde ocorre um encontro entre um agente espião dos rebeldes, infiltrado no alto comando do Império, e um aristocrata de status relevante na sociedade dominada por uma casta leal aos dominantes, ele também é um colecionador renomado de peças artísticas valiosas, relíquias históricas e artefatos de guerra de povos do passado, e um líder maior da rede dos rebeldes.
Nessa cena, pude observar a riqueza da trama desenvolvida no episódio, a complexidade das relações através das quais acontece uma ação dramática emocionante, e as reviravoltas de forças em confronto, que os rebeldes uma dada hora se dão bem, às vezes, pela violência da perseguição dos comandantes das tropas imperiais converte-se em inevitáveis perdas com eliminação de habitantes da comunidade aliados dos rebeldes, alguns timidamente envolvidos no desconhecido plano contra o império.
Aqui, em alguns minutos, pude entrar subitamente por uma área da minha imaginação que me levou a um instante do passado, nem tão distante, porque ainda guardo na memória como se fosse ontem, está presente em minha lupa de observador, fiel aos fatos, naquela época um participante ativo.
Os sentimentos de quem viveu de forma consciente, no mundo do final dos anos sessenta e a década de setenta, foram levados ao extremo da natureza humana, íamos em frente por mudanças internas e exteriores. Um dos aspectos disso foi o dia a dia de reflexão sobre as questões das liberdades, elaborada, escrita por pensadores e a importância do trabalho voltado para a formação de grupos de ação contra o regime militar, as coisas eram muito difíceis, conflitantes até internamente ao debatermos, era uma intensa busca por conhecimentos atualizados entregues por uma elite intelectual do movimento da esquerda, com o foco nas análises de conjuntura e nos horizontes que devíamos agir, com rara cautela pela restrita vida em um regime de exceção, que tínhamos de driblar da repressão, nos obrigando a temer mesmo as nossas paranóias, nos protegendo na clandestinidade e agir nas várias frentes de operação que construíssemos, nas universidades, nas fábricas, bancos e empresas nas quais fosse possível cooptar e treinar voluntários, novas células, organizadores profissionais da classe, que seriam futuros líderes de uma organização internacional.
Para não me alongar nesse capítulo da formação de militantes e líderes vou contar como esse comprometimento se encaixa e se dava para aqueles que em sua dedicação à luta de classes estava entregando seu futuro e sua consciência, sem volta, para onde todos os aspectos da vida lhes eram tomados. E assim a cada tarefa o militante não deveria mais pensar, ter dúvidas, quanto ao processo iniciado e sua dimensão, a importância do seu esforço em contribuição à revolução vindoura se dava, verdade absoluta, em favor da sonhada ditadura do proletariado.
É claro que houveram mudanças com a absorção da teoria, um roteiro de educação, gramsciana por grande parte do movimento da esquerda, e mais para frente por suas ramificações e grupelhos dissidentes. Embora desconheça o que a doutrinação silenciosa e seus mentores tenham sido obrigado a tratar, se adequar e se fragilizar para obter o apoio de inúmeros segmentos da sociedade, da classe média, a que tanto desprezava, logo se veria hordas nas ruas e seitas de parcelas desse status social a apoiar palavras de ordem da esquerda radical, o que trouxe como resultado a expansão e penetração da ideologia anticapitalista nos vários setores da cultura, da mídia do jornalismo e do mundo acadêmico, também fazendo das universidades uma colônia de animais a serem preparados para tornarem-se analfabetos funcionais e só pensar conforme as linhas escritas por um restrito grupo de pensadores e referências do universo marxista.
O porém dessa armadilha distópica e sinistra, é que, quando um militante da esquerda passando por mudanças de vida, seja pessoal, de trabalho desgarrado da atividade sindical ou acadêmica independente, não ligado ao compromisso da luta de classes, passa a ser cancelado, perseguido, expulso, diante da influência das ideias, do controle delas por uma organização, e logo teria que optar por se desligar da militância para se dedicar e defender a sua vida cada vez mais complicada. E o pai atento às necessidades imediatas, as suas, mais que a do próprio caos ideal de militante, o herói, agora conservador, teria que pegar a realidade objetiva sem perder tempo e voltar-se para o cuidado com os filhos que cresciam, o leite do que acabara de nascer, ajustar a relação fragmentada há tempo com a família desestruturada.
A hora da verdade chegara, terá que decidir e optar por qual tipo de caminho seguirá, o que terá de levantar as bandeiras pelo ideal de esquerda, pelo futuro que terá de sair todos os dias com a preocupação de se ocupar do mundo, mudar o mundo, chegando até esquecer de coisas básicas para atender aos seus; ou por outro lado, noutra direção, ser leal ao trabalho, a sua profissão, contribuindo com seu papel de chefe de família, pai, educador, mantenedor do padrão de vida, companheiro da mulher que está do seu lado, trabalhadora, e mãe de seus filhos.
O diálogo do encontro entre agente e líder reúne os sentimentos e a entrega que se faz necessária, imposta, pelos que se tornam revolucionários ao se dispor ao infortúnio da atividade de agir ao comando direto, planejar ataques de propaganda ou físicos ao adversário, são como uma peça na complexa engrenagem da pretensiosa ideologia de luta em nome dos oprimidos, portadora de um ideal revolucionário que tem a falsa virtude do mais completo senso de humanidade, mas em sua busca de soluções imediatistas se vêem obrigados a serem feras caçadoras, ferramentas cruéis ignorando os meios pelos fins, e acabando por utilizar os mesmos métodos do piores humanos que fizeram do totalitarismo os capítulos mais terríveis da nossa história.
Esse diálogo é impactante, e abre o corpo contaminado por uma ideologia com propósito e divisão de de todos em guerra permanente, apresenta com todas as letras os sentimentos humanos já marcados por grandes escritores clássicos em cada detalhe o que parece natural mas também visceral, matéria de condenação à uma prisão em liberdade, um destino de cada pessoa que assume ser um militante fiel a uma ideologia de pensamento limitante, de moral miserável quando aplicada à vida social e prática política. Na realidade, o comportamento de um simpático ou soldado da esquerda faz parte de um mundo que poucos se põe a enxergar na sua essência, refletir sobre sua origem, e que por uma razão imprecisa terá de abandonar, esquecer, calar ou exterminar seus oponentes, para continuar sua jornada inglória, e tudo por uma crença em um tempo que o mundo imaginado por eles será por força conquistado.
Independente do custo, que isso trará no presente e no futuro, o qual sempre se mostrou e ainda nos traz duradouras consequências econômicas, sociais e desastrosa moralmente, sem exceção, para as imensas populações que passaram a obedecer e são controladas, subjugadas, por esses títeres da desonesta cegueira intelectual que insiste em se autodenominar heróis.
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O diálogo entre o agente desistente e o líder da organização
Agente: Eu não posso mais fazer isso. Sou pai agora. Eu não sabia como seria.
Líder: Você fez um juramento.
Agente: Estou dando a Dedra Meero. Estou dando Spellhaus. Estou honrando meu juramento. Trabalhando lá há seis anos. Subindo na hierarquia. Sozinho.
Líder: Então, qua é o seu plano? Me dar uma cesta de guloseimas como um presente de despedida? O que planeja alegar ao BSI?
Agente: A minha saúde. A família da minha esposa tem um negócio de importação.
Líder: Mesmo quando diz as palavras, sabe que é impossível. Você não pode ir, Lonni. Não podemos dispensá-lo. Estamos preparando você há muito tempo. E sim, você esteve sozinho, mas sua carreira cresceu muito com as informações que fornecemos. Informações que me custaram caro. Você ama sua filha. Os homens de Kreegyr vão morrer (trinta homens e o líder - nota minha) para garantir que ela tenha um pai. Você não tem saída Lonni. Não gosto de dizer isso, mas você não vai a lugar nenhum.
Agente: Meu sacrifício… não significa nada para você, não é?
Líder: Eu disse que penso em você constantemente, e é verdade. Sua Rebelião é extraordinária. Uma vida dupla? Todo dia uma representação? O estresse disso? Precisamos de heróis, Lonni, e você é um deles.
Agente: O que você sacrifica?
Líder: Calma. Gentileza. Parentesco. Amor. Desisti de ter paz interior. Fiz da minha mente um espaço sem sol. Eu compartilho meus sonhos com fantasmas. Eu acordo todos os dias com uma equação que escrevi 15 anos atrás, da qual só há uma conclusão. Estou condenado pelo que faço. Minha raiva, meu ego, minha falta de vontade de ceder, minha ânsia de lutar, me colocaram em um caminho do qual não há escapatória. Eu ansiava por ser um salvador contra a injustiça sem contemplar o custo, e, quando olhei para baixo, não havia mais chão sob meus pés. Qual é o meu sacrifício? Estou condenado a usar as ferramentas do meu inimigo para derrotá-lo. Destruo minha decência pelo futuro de outra pessoa. Eu destruo minha vida para criar um nascer do sol que sei que nunca verei. E o ego que deu início a essa luta nunca terá um espelho, uma plateia ou a luz da gratidão. Então o que eu sacrifico? Tudo! Você vai ficar comigo, Lonni. Preciso de todos os heróis que eu conseguir.