Economia verde e financeirização da natureza
Transformar a atmosfera, o oxigênio, os rios, os oceanos,
as florestas, os subsolos em mercadorias já é movimento bastante problemático.
Permanecer aceitando que os rumos desse tipo de atividade sejam determinados
apenas pelo ritmo da especulação financeira é colocar uma verdadeira pá de cal
na já exígua credibilidade do conceito de economia verde.
Paulo Kliass
Às vésperas de completarmos um ano da organização da tão badalada “Rio +
20” ,
realizada em meados de junho de 2012, muito pouco temos a comemorar no campo
das mudanças efetivas no modelo que determina, de forma hegemônica, as relações
econômicas no mundo globalizado.
O clima de grandes expectativas criadas em torno do evento,
que deveria propiciar um balanço de 2 décadas após a realização da Conferência
da ONU de 1992, foi por demais otimista. Estava claro que tal animação não
correspondia à realidade da crise econômica internacional e da quase impossibilidade
de que os países mais importantes do mundo avançassem alguns milímetros na
direção de um sistema menos comprometedor do futuro da Humanidade.
“Rio + 20”
e a economia verde
A polêmica toda se deu em torno da avaliação de supostos
avanços ou recuos que poderiam estar contidos nos termos da declaração final do
encontro. O famoso documento “O futuro que queremos” sintetizava os limites da
costura possível entre as proposições das delegações oficiais e das
representações das associações e entidades da sociedade civil organizada. Ora,
como toda peça resultante de evento de natureza multilateral, o documento
procurava expressar algum grau de consenso, a ser obtido entre as
representações diplomáticas participantes, a respeito dos temas em questão. Assim , o
fato de incorporar o conceito de “economia verde” foi muito criticado por
correntes vinculadas ao movimento ambientalista, ao passo que o fato do termo
sempre estar acompanhado da expressão “no contexto do desenvolvimento
sustentável e da erradicação da pobreza” era saudado por outros grupos como
sinalização de um avanço importante.
O fato concreto é que a Rio + 20 deu-se num contexto de
dominação política, social e econômica dos valores associados a um modelo que
privilegia a exploração descontrolada e desregulada dos recursos naturais e da
força de trabalho, na perspectiva da geração e da apropriação privada dos
lucros de tais empreendimentos. Some-se a esse quadro a crença de que a solução
do ainda tão idolatrado “mercado” seja sempre o mecanismo mais “eficiente” para
a busca das soluções de equilíbrio entre os diversos fatores e atores
envolvidos no complexo jogo de interesses do mundo globalizado.
Toda e qualquer avaliação mais realista e dotada de bom
senso deveria levar em consideração os limites de tal conjuntura. Infelizmente,
havia - como ainda continua a haver - pouco espaço para avanços expressivos no
campo dos consensos diplomáticos. Afinal, nem mesmo os Estados Unidos aceitaram
assinar o já antigo Protocolo de Kyoto (já referendado por mais de 170 países),
a respeito de um compromisso para redução da emissão de gases comprometedores
do efeito estufa. De outra parte, é necessário recordar que a maioria dos
países se volta atualmente para a China, na esperança de que o ritmo de
crescimento do gigante asiático seja o elemento de salvação para a recuperação
da economia internacional.
As diferentes interpretações da economia verde
O termo “economia verde” vem sendo utilizado há mais tempo
em vários circuitos: ambientalista, empresarial, governamental, organismos
multilaterais, meios de comunicação, entre outros. Como toda novidade que ainda
não foi devidamente digerida e serve para cobrir um nível de ansiedade social a
respeito de tema que não apresenta soluções fáceis a curto prazo, ele ocupa o
vácuo e preenche a carência. Assim a expressão é muitas vezes apresentada com
uma verdadeira panacéia para todos os malefícios que o capitalismo tem
proporcionado para o meio ambiente em escala planetária. No entanto, os
problemas associados ao processo de degradação ambiental são muito mais
complexos do que aparentam numa abordagem superficial. Não basta apenas
adjetivar a dinâmica econômica de “verde” para que tudo se resolva, como num
passe de mágica.
Exatamente por isso ainda existem diversas acepções do conceito
circulando pelos circuitos que tratam do tema. De um lado, permanecem algumas
interpretações ainda bem intencionadas no campo dos que estão sinceramente
preocupados com a deterioração do sistema ambiental. De outro lado, porém,
estão aquelas proposições que estão mais preocupadas em oferecer uma
alternativa estratégica de sobrevivência para as grandes corporações
multinacionais. Assim, a economia verde se amplia no largo espectro que vai
desde os ambientalistas mais ingênuos até aqueles que defendem os interesses do
grande capital em seu permanente processo de acumulação e reprodução.
Mecanismos de financiamento: do Protocolo de Kyoto aos dias
de hoje
A realidade do sistema capitalista apresenta uma
característica essencial: sua tendência a universalizar o conjunto dos
processos sociais e transformá-los em relações mercantis. Com isso, o sistema
econômico nos tempos mais modernos passou a incorporar a dimensão do
“meio-ambiente” também como mecanismo de acumulação e de dinamização do
mercado. As primeiras tentativas concentraram-se no espaço da emissão de gases
do efeito estufa (GEE). Tendo por base as alternativas previstas no Protocolo
de Kyoto, começaram a aparecer os “créditos de carbono”, que se converteram aos
poucos em mecanismo de transação no interior do mercado financeiro. De acordo
com as normas previstas, as empresas que diminuíssem sua quantidade de emissão
de GEE teriam direito a lançar tais títulos de crédito de carbono. Estas novas
modalidades de papéis passaram a ter seus preços cotados e negociados no
mercado. Segundo os padrões atuais, um crédito de carbono seria equivalente à
redução da emissão de 1 tonelada de dióxido de carbono (CO2). Portanto, em
tese, a cotação de crédito de carbono deveria ser correspondente ao custo
monetário do investimento necessário para obter tal redução de gases poluentes.
A intenção subjacente é que estaria em marcha um mecanismo
para estimular, inclusive em termos de ganhos econômicos, a substituição de
processos de produção considerados “sujos” por novos sistemas produtivos
“limpos”. Esse tipo de ação passou a ficar conhecido como “mecanismo de
desenvolvimento limpo” (MDL) e deveria contar com apoio da ONU para fins de
regulação e fiscalização, com o objetivo de evitar que os títulos de crédito de
carbono pudessem ser fonte de ações fraudulentas e sem nenhum tipo descontrole.
O aumento da quantidade de títulos emitidos e a ampliação da escala de sua
negociação terminaram por consolidar um verdadeiro mercado, com uma série de
produtos financeiros associados. Os créditos de carbono passaram a ser cotados
nas Bolsas de Mercadorias, com preços no mercado diário, no mercado futuro e
demais características do mercado financeiro em geral. Em conseqüência,
a exemplo do que ocorre com outros títulos similares, eles estão também
bastante sujeitos a muita especulação.
A partir dessa experiência inicial, novos títulos de
natureza financeira foram sendo incorporados pelas empresas multinacionais, mas
ainda não contam com mecanismos de controle ou regulamentação. Trata-se dos
papéis de “redução de emissão por desmatamento e degradação evitados” (REED),
por meio do qual os conglomerados e seus empreendimentos de larga escala buscam
obter retornos financeiros a partir de iniciativas que podem reduzir o ritmo de
destruição ambiental. É o caso da diminuição de áreas de floresta ou de regiões
com atividades de extração mineral. Os mercados financeiros podem facilitar a
realização dos negócios e a obtenção de recursos para os projetos, pois todo o
processo ocorre por meio de emissões de títulos que têm um valor definido e que
são transacionados nos balcões de negócios em todas as principais praças do
mundo. No entanto, o problema é que esses papéis – em tese, associados a
atividades de “economia verde” - são operados também com base na especulação, a
exemplo dos demais títulos financeiros. Ou seja, trata-se um nicho voltado para
o meio-ambiente, mas sem quase nenhum lastro no setor real da economia.
Os riscos da financeirização sem regulação
Em termos mais gerais, o processo de financeirização pode
ser compreendido como uma etapa de aprofundamento do processo de
mercantilização. Assim, em uma primeira fase, observa-se a transformação
generalizada dos recursos naturais, bens, serviços e relações sociais em mercadorias. Tudo
passa a ser sintetizado e tratado sob a forma de preços e quantidades, tudo
passa a ser analisado segundo a ótica da oferta e da demanda. A mercantilização
em larga escala abre novas oportunidades à produção nos moldes capitalistas,
ampliando os espaços para os mecanismos de acumulação de capital.
Em um momento posterior, não apenas a transformação em
mercadorias se consolida pelo conjunto de setores e áreas da economia e da
sociedade, mas também os instrumentos financeiros associados a elas se espraiam
pelos mercados. Um dos aspectos que fascina e intriga no processo de
financeirização é sua dupla face. De um lado, a capacidade de criar as
condições de geração de recursos para as atividades onde esteja envolvido.
De outro lado, a sua capacidade de se tornar autônomo em
relação ao próprio objeto que foi a razão de seu surgimento. E assim, ele ganha
vida independente nos circuitos e searas dos mercados financeiros primários,
secundários, terciários e por aí vai. Nos mercados especulativos espalhados
pelo mundo, por exemplo, as cotações dos papéis de carbono caíram mais de 90%
entre as vésperas da crise de 2008 e os dias de hoje. Ou seja, um movimento no
circuito financeiro que tem muito pouco a ver com a realidade concreta dos
setores da economia verde.
A resistência dos interesses do financismo em aceitar
critérios mais sérios de regulamentação, fiscalização e controle das operações
dos mercados de títulos converte-se em um grande obstáculo. As catástrofes
observadas a partir da crise financeira não foram suficiente para tanto. Uma
das causas foi, sem dúvida, o exagerado grau de financeirização e o descontrole
sobre os mercados especulativos. Assim, a insistência na ilusória “liberdade de
ação das forças dos mercados” termina por comprometer qualquer busca mais
responsável para criação de mecanismos de financiamento de uma economia verde,
que seja sustentável em termos econômicos, sociais e ambientais.
Transformar a atmosfera, o oxigênio, o gás carbônico, os
rios, os oceanos, as florestas, os subsolos, enfim a natureza, em mercadorias
já é movimento bastante problemático. Permanecer aceitando que os rumos de
empreendimentos nesse tipo de atividade sejam determinados apenas pelo ritmo da
especulação na esfera puramente financeira é colocar uma verdadeira pá de cal
na já exígua credibilidade do conceito de economia verde.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas
e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela
Universidade de Paris 10.