O medo de ousar e a submissão ao capital
A política de rendição aos
interesses do capital tem dominado a agenda do governo. Esse comportamento vem
ainda antes da eclosão da crise internacional em 2008, na época em que
prevalecia a tentativa de vender a imagem do bom-mocismo e quando se aplicavam,
de forma mais realista que o rei, as recomendações da ortodoxia do financismo.
Paulo Kliass
A continuidade da política de ampliação da base parlamentar
do governo no Congresso Nacional parece não ter limites. Para quem não
acompanha a política brasileira em seu cotidiano, a situação pode parecer
fantasmagórica. Imagine-se um indivíduo que tenha passado uns 12 anos fora do
circuito e retornou apenas anteontem à superfície. Soube que Lula finalmente
conseguiu ser eleito Presidente da República em outubro de 2002. E que, além de
vencer a recondução para um segundo mandato, ainda logrou eleger sua sucessora.
Ou seja, nosso personagem se surpreende com a notícia: mais de 10 anos de PT no
poder!
Mas aos poucos, à medida que vai se inteirando dos detalhes
da política tupiniquim, a pessoa fica sabendo que a coisa é mais complicada do
que parecia à primeira vista. A antiga prática condenada do “fisiologismo”
passou a ser gentilmente qualificado de “garantia da governabilidade”. Percebe
que figuras como José Sarney, Fernando Collor, Paulo Maluf, Delfim Netto, Kátia
Abreu, Henrique Meirelles, Guilherme Afif, Gilberto Kassab, Blairo Maggi e
tantos outros são ou foram entusiastas apoiadores dos governos ao longo desse
período. Ou seja, todos aqueles personagens da vida política nacional que eram
marcados pelo anti-petismo radical, passaram rapidamente a fazer parte da base
de sustentação política e eleitoral do governo do PT.
Mudança de prioridade na agenda do governo
Não é intenção do artigo discutir aqui os limites da
articulação parlamentar ou a necessidade de alianças para qualquer governo no
nosso regime chamado de presidencialismo de coalizão. O aspecto mais importante
a reter é a forma como o governo se comporta frente aos representantes das
classes e frações de classes sociais no que se refere ao atendimento de seus
interesses no interior do aparelho de Estado. Há muito tempo que os projetos de
transformação social foram sendo abandonados, em nome de uma suposta
impossibilidade de fazer andar a roda da História. Restou uma agenda reduzida
da pequena política para os chamados setores populares, destinada a fazer valer
algumas solicitações de determinados grupos sociais que estariam na origem da
base do governo. A busca por projetos que pudessem se caracterizar como
mudanças derivadas da vitória eleitoral foi cautelosamente abandonada. O
pragmatismo para evitar derrotas passou a ser a bússola que orienta a ação dos
dirigentes políticos.
O fato é que o núcleo duro dos sucessivos governos deixou
de ousar na formulação - e, principalmente, na implementação - dos elementos
essenciais de políticas públicas alternativas ao ideário que sempre havia sido
encaminhado pelo Estado brasileiro até então. O receio de buscar o novo levou à
paralisia dos caminhos traçados na época da oposição e à frustração de amplos
setores que não viram a transformação das propostas existentes em políticas de
governo. O bordão da primeira campanha vitoriosa de Lula dizia que a sua
eleição seria a prova de que “a esperança venceu o medo”. Mas, na direção
contrária do desejo popular que ousou votar pela mudança, os governos recuaram.
Muito provavelmente por estarem premidos pelo temor das conseqüências políticas
de atos mais efetivos – processo, aliás, que está na base de qualquer processo
que envolve um mínimo de elemento transformador. Ora - e já que Marx está em
alta novamente - não custa lembrar que se trata tão somente da inescapável
dinâmica da luta de classes. Simples assim: não há como fugir da contradição e
do conflito de interesses.
Primeiros sinais na “Carta ao Povo Brasileiro”
As mensagens telegráficas e sub-reptícias já constavam da
tristemente famosa “Carta ao Povo Brasileiro”, de julho de 2002, quando foram
aventadas as primeiras manifestações de uma possível guinada programática a ser
encaminhada após a vitória eleitoral. A nomeação dos responsáveis pela política
econômica - Antonio Palocci e Henrique Meirelles - só veio a confirmar tal
opção. A hegemonia da ortodoxia monetarista no comando da economia converteu-se
na sinalização cristalina dirigida ao grande capital de que não havia nada a
temer, pois nada seria mudado em termos da essência das diretrizes dos governos
anteriores. E vejam que não se trata apenas da garantia de que os grandes
conglomerados não seriam prejudicados. A estratégia implicava a continuidade da
hegemonia dos interesses do setor financeiro no bloco dominante, em prejuízo
das demais frações, em especial as vinculadas ao capital industrial e
produtivo.
Daí em diante, o que se verificou foi uma sequência
coerente e permanente de ações dos governos em busca de sua legitimação junto
aos representantes do capital. Ocorre que a postura adotada no perigoso jogo de
equilíbrio terminou por se caracterizar como uma verdadeira fase de submissão
dos principais dirigentes políticos aos interesses do grande empresariado.
Muito tem sido produzido e discutido a respeito do fenômeno qualificado como
“lulismo”. Na verdade, trata-se justamente dessa capacidade de oferecer tudo ao
capital, mas mantendo um discurso de convencimento político junto aos
trabalhadores e a maioria da população pobre de nosso País. É óbvio, além
disso, que as políticas de transferência como o programa Bolsa Família, os
ganhos reais oferecidos ao salário mínimo e a ampliação dos benefícios
previdenciários contribuíram para cimentar tal situação, aparentemente
paradoxal. Mas tais melhorias ocorreram sem alteração na ordem anterior. Com
isso, os governos conseguiram, na verdade, maior legitimidade para avançar na
implementação da pauta empresarial.
Valores no orçamento refletem os setores mais beneficiados
Os valores do orçamento público destinados às políticas
sociais são incomparavelmente diminutos quando comparados ao volume e à
extensão dos favorecimentos e das benesses dirigidas ao capital. No caso das
atividades agrícolas, por exemplo, os valores atribuídos ao Ministério do
Desenvolvimento Agrário (MDA – reforma agrária e agricultura familiar)
equivalem à metade dos recursos para os grandes proprietários, que são
atendidos pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). A
educação superior privada conta com todo estímulo público por meio das bolsas
concedidas às universidades privadas (PROUNI). No caso da saúde, o sucateamento
do Sistema Único de Saúde (SUS) beneficia os planos de saúde privados e
incentiva a transformação da gestão da rede pública por meio de mecanismos de
privatização, como a concessão de hospitais e demais serviços para empresas e
organizações sociais.
A política de rendição aos interesses do capital tem
dominado a agenda do governo. Esse comportamento vem ainda antes da eclosão da
crise internacional em 2008, na época em que prevalecia a tentativa de vender a
imagem do bom-mocismo e quando se aplicavam, de forma mais realista que o rei,
as recomendações da ortodoxia do financismo. No momento atual, o governo aceita
a chantagem do grande empresariado e se torna refém da baixa resposta que o
setor privado está oferecendo aos novos investimentos necessários. Apesar de
manter a políticas de distribuição de renda em favor dos mais pobres, sua
dimensão e seus efeitos não são comparáveis aos ganhos proporcionados às
empresas.
Exemplos de opção pelo favorecimento do capital
Se é verdade que os governos pós 2003 não podem ser
classificados como neoliberais em sentido estrito, o fato é que não se
utilizaram de sua base de ampla popularidade para promover mudanças mais
efetivas. Os exemplos são inúmeros a refletir essa incapacidade de escapar da
conhecida postura de submissão. Se partirmos da análise de que toda decisão
política tem lado, o governo tem adotado de forma sistemática e unilateral a
opção pelo lado do capital. Senão, vejamos alguns casos mais emblemáticos:
1. extensão
paulatina e irresponsável da desoneração da folha de salários das empresas para
inúmeros setores. A contribuição previdenciária patronal passa a ter como fonte
uma alíquota entre 1% e 2% a incidir sobre o faturamento das empresas. O novo
modelo arrecada valores menores de receita e isso deverá provocar desajustes no
futuro de uma previdência social atualmente equilibrada.
2. ampliação do regime de concessão para as atividades econômicas consideradas como de responsabilidade do Estado - os bens e serviços públicos. Os contratos para os diversos setores da infra-estrutura englobam rodovias, ferrovias, portos, aeroportos, energia elétrica, saneamento, comunicações, exploração de petróleo, entre outros. As regras variam, mas em geral são condições de extremo favorecimento do capital, com prazos de 30 anos de exploração, recursos subsidiados do BNDES para os investimentos e nenhuma menção quanto a exigências de contrapartidas ou penalidades para o descumprimento das cláusulas. Na verdade, trata-se de uma ação do Estado criando um novo espaço de acumulação para essas empresas, onde fica assegurado o famoso modelo do “capitalismo sem risco”.
3. política explícita e louvada pelo governo de apoio ao agronegócio, com oferecimento de todos os tipos de facilidades para os grandes empreendedores do campo. Inexistência de políticas públicas para regulamentar o uso descontrolado de sementes e plantas transgênicas, o mesmo ocorrendo quanto ao uso indiscriminado e venenoso de agrotóxicos e fertilizantes. No que se refere à reforma agrária, observa-se uma contenção no ritmo de reconhecimento de novos assentamentos, com índices abaixo até dos governos de FHC.
4. inexistência de contrapartidas das grandes empresas em busca de recursos públicos e outras benesses junto ao Tesouro Nacional ou ao BNDES. Há inúmeros casos de empresas com “ficha suja” no quesito social e/ou ambiental - denúncias de trabalho escravo ou irregularidades junto ao IBAMA - que continuam a receber tais favorecimentos. O mesmo ocorre quanto aos compromissos de não demissão de trabalhadores, uso de componentes de fabricação nacional ou outros elementos de política pública considerada estratégica.
5. comprometimento de parcelas expressivas dos recursos do BNDES para estimular a formação das chamadas “gigantes brasileiras”, sem que o governo exija como contrapartida a sua participação nos conselhos diretivos desses novos mega-grupos.
6. concessão de todo o tipo de facilidades às grandes empresas da construção civil, em especial essa autorização recente para permitir a elevação dos valores licitados de grandes obras em até 17% em relação aos preços previamente acordados.
2. ampliação do regime de concessão para as atividades econômicas consideradas como de responsabilidade do Estado - os bens e serviços públicos. Os contratos para os diversos setores da infra-estrutura englobam rodovias, ferrovias, portos, aeroportos, energia elétrica, saneamento, comunicações, exploração de petróleo, entre outros. As regras variam, mas em geral são condições de extremo favorecimento do capital, com prazos de 30 anos de exploração, recursos subsidiados do BNDES para os investimentos e nenhuma menção quanto a exigências de contrapartidas ou penalidades para o descumprimento das cláusulas. Na verdade, trata-se de uma ação do Estado criando um novo espaço de acumulação para essas empresas, onde fica assegurado o famoso modelo do “capitalismo sem risco”.
3. política explícita e louvada pelo governo de apoio ao agronegócio, com oferecimento de todos os tipos de facilidades para os grandes empreendedores do campo. Inexistência de políticas públicas para regulamentar o uso descontrolado de sementes e plantas transgênicas, o mesmo ocorrendo quanto ao uso indiscriminado e venenoso de agrotóxicos e fertilizantes. No que se refere à reforma agrária, observa-se uma contenção no ritmo de reconhecimento de novos assentamentos, com índices abaixo até dos governos de FHC.
4. inexistência de contrapartidas das grandes empresas em busca de recursos públicos e outras benesses junto ao Tesouro Nacional ou ao BNDES. Há inúmeros casos de empresas com “ficha suja” no quesito social e/ou ambiental - denúncias de trabalho escravo ou irregularidades junto ao IBAMA - que continuam a receber tais favorecimentos. O mesmo ocorre quanto aos compromissos de não demissão de trabalhadores, uso de componentes de fabricação nacional ou outros elementos de política pública considerada estratégica.
5. comprometimento de parcelas expressivas dos recursos do BNDES para estimular a formação das chamadas “gigantes brasileiras”, sem que o governo exija como contrapartida a sua participação nos conselhos diretivos desses novos mega-grupos.
6. concessão de todo o tipo de facilidades às grandes empresas da construção civil, em especial essa autorização recente para permitir a elevação dos valores licitados de grandes obras em até 17% em relação aos preços previamente acordados.
Ao que tudo indica, o governo permanece com
todos os seus sentidos desligados do mundo real, externo ao ambiente dos
negócios. Tal postura opera bem em momentos de crescimento da economia, mas
pode apresentar dificuldade quando houver sinalização contrária. As sucessivas
tentativas e os equívocos cometidos já deveriam ter operado como alerta para
uma mudança de conduta e de orientação. E vejam que nem se trata de optar por
uma mudança radical na transformação da base de nosso modo capitalista de
convivência social e econômica. O ponto é simplesmente o de ampliar o leque de
alternativas a cada opção de política pública e não apenas continuar cedendo de
forma constante e monotônica às demandas do capital. A sociedade brasileira é
plural e há outras classes que merecem um tratamento também especial por parte
de seus governantes. Uma atenção que vá muito além da simples distribuição das
migalhas das políticas de transferência de renda e incorpore, de fato, a
construção de um verdadeiro projeto de nação voltado para as necessidades da
maioria de seu povo.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas
e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela
Universidade de Paris 10.
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