Educação e Saúde: do discurso ao projeto concreto
A Presidenta Dilma apresentou uma lista cinco pactos, como forma de tentar
pacificar o movimento que ganhou as ruas do País. Nesse conjunto há dois temas
que merecem ocupar posição de destaque em qualquer projeto sério de
desenvolvimento nacional de longo prazo: saúde e educação.
Paulo Kliass
A Presidenta Dilma apresentou uma lista cinco pactos, como
forma de tentar pacificar o movimento que ganhou as ruas do País nas últimas
semanas. Nesse conjunto havia dois temas que merecem ocupar posição de destaque
em qualquer projeto sério de desenvolvimento nacional de longo prazo. Refiro-me
aqui à saúde e à educação.
A tradição histórica do Brasil republicano sempre
apresentou um modelo de organização social onde tais funções deveriam ser
asseguradas pelo Estado.
No entanto, o processo político experimentado sob a
ditadura militar provocou um fenômeno que muitos classificaram como sendo de
uma “modernização conservadora”. Ainda que os governos que se sucederam a 1964
não tenham colocado explicitamente em marcha um projeto de “privatização
radical” da saúde e da educação, o fato é que foi aberta uma larga avenida para
que o setor privado passasse a operar com muita mais liberdade nesses dois
domínios.
O avanço das empresas na oferta desse tipo de serviço dava
início ao processo de mercantilização da saúde e da educação, em meio a
processo semelhante ocorrido junto a outras categorias de serviços públicos. O
ensino básico e médio foi sendo paulatinamente tomado por escolas privadas, ao
passo em que a rede pública ia sendo também sucateada e desmantelada. Falta de
verbas, baixo investimento em equipamento e estrutura, redução relativa dos
salários de professores, enfim muitas foram as causas do redirecionamento das
camadas médias urbanas em busca de um ensino supostamente de melhor qualidade.
No ensino superior, o processo foi mais lento, mas também ali foi aberto um
universo enorme para a acumulação de capital com a negociação da nova
mercadoria, a chamada “educação universitária”.
Na área da saúde deu-se fenômeno semelhante. O processo de
deterioração das condições de serviços públicos oferecidos à população
combinou-se ao incremento da participação de empresas privadas na criação e na
gestão de hospitais, laboratórios, clínicas, maternidades e toda a sorte de
serviços associados ao setor. A contrapartida desse movimento inovador foi a
consolidação de um ramo de grupos gerenciando as atividades de planos de saúde
e de seguros de saúde, todos privados. Antes ocupado basicamente pelas
instituições filantrópicas, o espaço privado passou a operar segundo a lógica
explícita do capitalismo: geração de lucro como prioridade essencial.
O processo político da transição democrática, porém, veio a
oferecer uma alternativa a essa tendência mercantilizante. O desenho final do
modelo votado pela Assembleia Constituinte em 1988 consolidou um modelo de
organização do País, onde saúde e educação ganham destaque especial, junto com
outros serviços públicos. Passam a ser reconhecidas como direito de cidadania e
uma obrigação do Estado perante a população.
O Título VIII da CF trata do conjunto dos dispositivos da
Ordem Social. Dentre os inúmeros capítulos, seções e artigos, cabe destacar
aqui os mais significativos a respeito desses itens que constam do pacto
proposto por Dilma. O artigo 196 dá os contornos gerais da abordagem sobre a
saúde, enquanto os seguintes tratam do sistema Único de Saúde, das
responsabilidades compartilhadas entre União, Estados e Municípios e demais
temas.
“Art. 196.
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido
mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença
e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
para sua promoção, proteção e recuperação.”
Já a educação é definida no artigo 205, enquanto os demais
itens dessa seção definem atribuições dos entes federados segundo o tipo de
ensino considerado, a gratuidade no âmbito do ensino público, a natureza do
ensino universitário e outros aspectos do sistema educacional.
“Art.205. A
educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da
pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho.”
“Art.
A caracterização do modelo em termos políticos e
institucionais é muito importante, mas não é condição suficiente para seu
funcionamento. Outro aspecto essencial é o relativo à atribuição de fontes de
recursos para a operação dos sistemas da saúde e da educação. E, desse ponto de
vista, o Brasil conheceu um enorme retrocesso no período que se seguiu logo
após a promulgação na Constituição cidadã. A partir de 1990, combinando com a
eleição de Collor para a Presidência da República, consolidou-se o processo de
liberalização e desregulamentação generalizadas. Era uma tentativa de desmonte
do ente público – a implementação dos ajustes macroeconômicos impostos pelo FMI
e aceitos pelos responsáveis pela política econômica dos sucessivos governos desde
então.
Com isso, o Estado não apenas deixou de investir de forma
adequada nas áreas que o texto constitucional considerava como obrigatoriedade,
como também passou a organizar e estimular o ingresso da iniciativa nas mesmas:
saúde e educação. Assim, a tensão pela disputa de dois projetos nacionais
opostos se fazia presente a cada momento na dinâmica governamental e
parlamentar, secundada pelo movimento social e suas entidades representativas.
De um lado, os que pautam sua ação pela crença de que os
serviços públicos deveriam ser tratados como simples mercadorias, propugnando
pela retirada do Estado da condição de agente oferecedor desse tipo de bens. No
lado oposto, aqueles que defendem a particularidade dos direitos listados na
Constituição e a necessidade imperiosa da administração pública estar bem
aparelhada para oferecer esse tipo de serviço à população.
E assim, a disputa política se ampliou e se generalizou. De
maneira que sempre estava pautada na agenda política nacional alguma ameaça aos
sistemas ou alguma reivindicação a respeito do desenho do modelo e da origem
das verbas para sua oferta pela estrutura do Estado. Avançar ou recuar quanto
às diretrizes colocadas na Constituição passou a ser a regra das divergências.
Os governantes de plantão sempre tentam alguma manobra para
evitar o chamado “engessamento” do orçamento. Para tanto costumam lançar mão de
expedientes como contingenciamento de recursos, cortes horizontais na
atribuição das verbas, atraso na liberação das dotações para Estados e Municípios,
dentre tantas outras esperteza no manejo da contabilidade pública. Como não
havia definições explícitas ou quantitativas de como obter recursos para
cumprir o que determina a Constituição, a lógica fiscalista acaba prevalecendo
sobre as necessidades políticas e sobre a ordem social.
Os defensores de uma administração pública em condições de
cumprir com suas atribuições constitucionais operam no sentido de estabelecer
nos textos legais os limites mínimos para assegurar verbas para saúde e
educação. É daí que surgem, portanto, as soluções do tipo “10% do PIB para
educação” ou “regulamentação da Emenda 29” . Mas nem sempre esses movimentos obtêm
êxito em suas movimentações. Pelo contrário, chegam a perder espaços
importantes, como foi o caso da extinção da Contribuição Provisória para a
Movimentação Financeira (CPMF), que servia como importante fonte de recursos
para o sistema de saúde pública.
A polêmica na área da saúde foi parcialmente resolvida pela
aprovação da lei Complementar n° 141, ainda no ano passado. Apesar do texto
final estar muito distante das reais necessidades do setor, pelo menos o vácuo
jurídico criado pela chamada Emenda Constitucional n° 29 foi preenchido. Essa
emenda foi concebida em 2000 para dar uma solução provisória até 2004 - mas a coisa
foi sendo empurrada com a barriga até a sanção da lei regulamentadora em
janeiro de 2012. O fato mais decepcionante é que a regulamentação estabelece
apenas os mínimos obrigatórios para Estados e Municípios, deixando a União com
os percentuais do PIB dos anos anteriores.
Por outro lado, a conjuntura atual oferece também
perspectivas mais otimistas para os defensores de um modelo fundado na oferta
desses serviços pelo próprio setor público. A bandeira de “10% do PIB para
educação” pode se transformar em realidade por meio da tramitação Plano
Nacional de Educação (PNE) no Congresso Nacional. Aprovado pela Câmara dos
Deputados, o texto se encontra em fase final de votação no Senado Federal.
Finalmente, os olhos todos se voltam para a votação do
projeto de lei que destina os “royalties” do petróleo para a saúde e a
educação, na proporção de 25% e 75%, respectivamente. Contra a orientação
restritiva do Executivo, os parlamentares adotaram critérios mais amplos para a
constituição dos recursos para esse fim. Como o projeto ainda depende de
acertos em sua versão final nas votações entre Câmara e Senado, não se pode
afirmar de forma definitiva os valores envolvidos.
Mas de qualquer maneira, isso significa um avanço em
relação ao modelo estratégico de utilizar os recursos do pré-sal para um fundo
que contribuirá para as futuras gerações de nosso País. É a possibilidade de
sair do discurso para o projeto concreto. Agora, cabe muita atenção e
sensibilidade para escapar das malandragens e encomendas de última hora, para
fins de cálculo dos valores. Por exemplo, é necessário evitar que sejam
incorporadas manobras como a de considerar os recursos transferidos paras
empresas privadas de ensino superior (bolsas do Prouni) ou as despesas
realizadas com planos e seguros de saúde privados no cômputo mais geral de
gastos orçamentários com educação e saúde públicas.
Uma vez assegurados os recursos, deve-se dar continuidade
ao processo de melhoria da gestão e maior eficiência na prestação dos serviços
públicos. Afinal, ninguém é ingênuo a ponto de achar que são razoáveis os
níveis de qualidade da saúde e da educação tal como oferecidas atualmente pelo
Estado à sociedade brasileira. Os desafios são muitos e as tarefas são enormes.
Mas aí já se trata de tema para outro artigo.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas
e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela
Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta Maior | Colunistas | Debate
Aberto, 04/07/2013.
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