A mão pesada da diplomacia de negócios da China
* Por Sérgio Abranches
A visita do primeiro-ministro chinês Li Keqiang ao Brasil e outros países vizinhos é parte de uma estratégia diplomática de projeção dos interesses econômicos chineses na África e na América do Sul, regiões de grande interesse por causa de seus recursos naturais e capacidade agrícola. A maior parte dos investimentos e financiamentos chineses nessas regiões têm por trás commodities metálicas e petróleo. Uma outra parte está associada a commodities agrícolas, principalmente carne e soja. Quem fica imaginando que a ascensão chinesa no cenário global é uma alternativa aos esquemas colonialistas, imperialistas e à dependência que caracterizou as relações desses continentes com a Europa e o EUA pode estar enganado. Como os colonialistas e imperialistas, a China não entra em relação ganha-ganha. Sua entrada nessas regiões é estrategicamente desenhada de tal forma que ela sempre saia ganhando e os custos fiquem por conta dos outros.
A maioria dos especialistas chineses ligados à formulação e avaliação da política externa do país diz que a estratégia diplomática chinesa se baseia na acumulação de “soft power”, baseada no potencial de sua cultura tradicional, que promove, entre outros, valores como o da harmonia. Um exemplo seria a convicção de que o importante, agora, é influenciar a decisão sobre regras e normas e por isso a China quer reformar as instituições financeiras internacionais. Mas, na realidade, as relações diplomáticas chinesas não são harmônicas, nem buscam uma nova ordem mundial mais equilibrada. A China não tem uma visão cosmopolita do mundo. Vê o mundo do ângulo estrito de seus interesses nacionais.
Na sua região geopolítica, vive tumultuosas relações de conflito com os vizinhos. As relações com o Japão são arestosas, para dizer o mínimo. Com Taiwan tem um contencioso permanente, ancorado na demanda por integração de seu território à nação chinesa. Suas demandas territoriais no Mar da China do Sul, onde constrói ilhas artificiais para garantir a ocupação, geram conflitos com Vietnã, Filipinas, Malásia e Brunei, além de protestos internacionais. A China considera que essas demandas são justificadas porque é parte de seu território nacional amplo e um direito histórico sobre os recursos naturais marítimos, como petróleo, gás e pesca, dentro da chamada 'linha de nove traços’. Esta linha é considerada pela maioria dos especialistas como incompatível com a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982, argumenta o analista do Instituto de Estudos do Sudeste Asiático em Cingapura, Ian Storey. Ela foi definida originalmente em 1947, como de a “linha de onze traços”, demarcando a reivindicação do “território marítimo” chinês no Mar Meridional da China, pelo governo do Kuomintang, de Chiang Kai-shek, derrubado pela revolução liderada por Mao Tsé-Tung. Em 1953, o governo comunista chinês definiu a “linha de nove traços” eliminando dois dos pontos de restrição que causavam mais conflito com o Vietnã. A reivindicação territorial baseada em uma demanda de uma época renegada desde 1949 soa hipócrita e se sustenta menos em argumentos bem fundamentados e muito mais no poderio naval chinês.
A tenacidade com que a China defende esse território de fronteiras difusas, definidas por uma linha imaginária cujo contorno e significado reais não estão claros, tem uma explicação bem mais terrena. As novas tecnologias que permitem a identificação e exploração de recursos naturais marinhos, minérios e petróleo, além da pesca, tornaram essa parte sul do Mar Meridional da China crítica para os interesses de uma economia em expansão acelerada (7% ao ano agora que reduziu a velocidade de crescimento), com um megaterritório e uma megapopulação e pobre em recursos naturais. É a avidez por recursos naturais que também a leva a buscar relacionamento preferencial com a África, que hoje domina de ponta a ponta, e com a América do Sul.
Não há diplomacia, nem muito cálculo geopolítico, estrito senso, nesse movimento. Seu fundamento é quase exclusivamente econômico e nada tem de leve. A China pega pesado. Na África, por exemplo, da qual já é o principal parceiro comercial, conseguiu deixar todo mundo desconfortável, como escreveu Alexis Okeowo para a revista New Yorker. O EUA está preocupado com a rápida expansão chinesa na economia africana, com a qual não consegue competir e com a influência política associada à dependência econômica em um continente conflagrado. A União Europeia perdeu sua posição privilegiada no mercado africano, baseada em suas relações coloniais. Os africanos estão infelizes com as relações nada harmônicas ou equilibradas, nas quais a China assume a propriedade dos recursos naturais, usando tecnologia e mão de obra chinesas, sem transferir qualificações ou tecnologia. Okeowo lembra que Lamido Sanusi, presidente do Banco Central da Nigéria, publicou artigo no Financial Times no qual diz que a China leva os recursos naturais e vende produtos manufaturados. “Esta também era a essência do colonialismo”.
Há estimativas de que já estão acomodados na África mais de um milhão de chineses, a maioria ocupando cargos gerenciais e executivos. O sócio de um dos poucos bancos de investimento totalmente africano, moçambicano radicado na Namíbia, me disse que a “África está sendo dominada pela China, que é voraz e predatória”. Segundo ele, como a China está principalmente interessada em recursos minerais de todo tipo, tem visão curta e reduz as chances de desenvolvimento na África. Os governos, diz, têm grande interesse nos investimentos em mineração. Geram alta receita para eles, sem custo. Alimentam, também, muita corrupção.
Muitos países hoje são totalmente dependentes da China. Compram celulares em lojas chinesas de eletrônicos, comida em mercados chineses e tratam-se com médicos chineses. Em países como o Congo, Zimbábue, Guiné e Angola, a China tem construído ou reconstruído infraestrutura de boa qualidade, para poder escoar os minerais que extrai. Os trabalhadores africanos, que trabalham nas atividades mais duras da mineração, reclamam que não recebem equipamentos básicos de segurança, como capacetes e luvas. Os proprietários das minas de cobre em Zâmbia não dão aos trabalhadores locais equipamentos de segurança e os fazem trabalhar em condições de muito baixa segurança, informou um relatório da ONG Human Rights Watch. Nem tudo é assim, porém. Algumas empresas chinesas, na África e na América do Sul, trabalham com a comunidade local, atendem às suas necessidades e estabelecessem uma relação participativa. Mas a maior parte não faz isso. Desde os tempos coloniais, umas empresas são melhores que as outras. Nem todo o interesse chinês se concentra mais nos recursos naturais.
Há novas áreas de interesse de companhias que operam com energia renovável e telecomunicações. Empresas de celulares como a Tecno e de celulares e infraestrutura como a ZTE usam a África como plataforma de lançamento global de parte de seus produtos.
Nada disso é “soft power”. O uso de seu poderio econômico, baseado na escala sem precedentes de sua economia e seu mercado interno de consumo em expansão e nas reservas cambiais e papéis da dívida europeia e do EUA, é puro “hard power”. A projeção chinesa em sua área de inserção geopolítica está lastreada em seu poderio militar, o segundo do mundo hoje, depois do EUA. A China não tem demonstrado grande traquejo diplomático. Não raro envia negociadores que só falam mandarim ou se recusam a falar inglês ou francês. Não abrem mão de seus padrões culturais e não raro impõem sua visão hierárquica, mesmo quando a relação se dá entre mandatários.
* Sérgio Abranches é cientista político, escritor e comentarista da CBN. É colaborador do blog com análises do cenário político internacional
Nenhum comentário:
Postar um comentário