Homo oeconomicus, de Foucault, e animal laborans, de Arendt: conceitos
para pensar o tempo presente
A progressiva subjugação da
política pela economia é preocupação central da filósofa alemã ao cunhar essa
ideia, enquanto que para o pensador francês trata-se de alguém que é sujeito ou
o objeto do laissez-faire, “eminentemente governável”, aponta Adriano Correia
Por: Márcia Junges e Leslie Chaves
Mesmo não tendo centralizado suas pesquisas acerca
da temática da financeirização da vida, Michel Foucault e Hannah Arendt podem
oferecer “intuições iluminadoras para a configuração mais geral da servidão
voluntária de uma vida determinada economicamente, e vivida a crédito”,
argumenta o filósofo Adriano Correa na entrevista concedida
por e-mail à IHU On-Line. E acrescenta: “Desde As origens do
totalitarismo (Rio de Janeiro: Ed. Documentário, 1975), Arendt devotou especial
atenção aos impactos políticos da progressiva prevalência do econômico sobre
todas as esferas da existência. Quando examina o imperialismo como a figura
burguesa da política, Arendt examina a obsessão por gerar dinheiro
ilimitadamente e o seu correlato político: a redução da política à "mera força”.
Sobre homo oeconomicus, conceito criado por Foucault, Adriano observa que no
neoliberalismo este “é compreendido como empresário de si mesmo, como alguém
que mesmo não sendo proprietário dos meios de produção, possui a si mesmo e
investe suas habilidades e competências como um capital com vistas a uma renda
futura que é o salário”. Assim, levando em consideração as indicações de
Agamben, o pesquisador menciona que é extremamente frutífero aproximar os
conceitos de animal laborans e de homo oeconomicus a fim de pensar o tempo
presente.
Adriano Correia Silva possui graduação em Filosofia (bacharelado e licenciatura) pela
PUC de Campinas e mestrado em Filosofia pela mesma universidade. É também
mestre em Educação e doutor em Filosofia pela Unicamp. Leciona desde 2006 na
Universidade Federal de Goiás – UFG, onde atua como diretor da Faculdade de
Filosofia. Silva foi organizador dos livros Transpondo o abismo: Hannah Arendt
entre a filosofia e a política (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002) e Hannah
Arendt e a condição humana (Salvador: Quarteto, 2006). Publicou ainda o livro
Hannah Arendt (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007) e assina a apresentação da
edição brasileira do livro A Condição Humana (São Paulo: Forense Universitária,
2003), da própria Arendt.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - A partir do legado filosófico de
Arendt e Foucault, em que medida se pode falar numa financeirização da vida?
Adriano Correia - Hannah
Arendt e Michel Foucault ocuparam-se demoradamente com a
compreensão dos nossos tempos, como é sabido. Penso não ser trivial que quando
se detiveram mais demoradamente sobre os traços políticos mais decisivos do
tempo presente tenham situado no centro dos seus respectivos diagnósticos a
relação entre economia e política.
Desde As origens do totalitarismo (Rio de Janeiro:
Ed. Documentário, 1975), Arendt devotou especial atenção aos impactos políticos
da progressiva prevalência do econômico sobre todas as esferas da existência.
Quando examina o imperialismo como a figura burguesa da política, Arendt
examina a obsessão por gerar dinheiro ilimitadamente e o seu correlato
político: a redução da política à mera força.
Em A condição humana (São Paulo:
Forense Universitária, 2003), no decisivo movimento de suas últimas sessões,
ela reflete sobre o que nomeia “humanidade socializada”, na qual a palavra
trabalho acaba por ser demasiado ambiciosa para descrever as atividades que
desenvolvemos no mundo em que passamos a viver, constituído como uma sociedade
de empregados. Em tal contexto mesmo o interesse próprio é açambarcado pelo
conformismo de uma sociedade definida pelo acúmulo ilimitado de dinheiro.
Ironicamente, ela chega a assinalar que o problema com o comportamentalismo não
é que seja falso, mas que venha a se tornar verdadeiro e que a tão ativa era
moderna venha a sucumbir à extrema passividade e ao agudo entorpecimento de uma
vida financeiramente determinada.
Intuições iluminadoras
Esta articulação entre a articulação estrita da
vida pela economia e o conformismo de uma voluntária servidão também pode ser
entrevista no exame do homo oeconomicus por Michel Foucault em seu curso O
nascimento da biopolítica (1978-1979) (São Paulo: Martins Fontes, 2008). Consoante
à compreensão liberal da relação entre economia e política, o homo oeconomicus
é aquele em que não se deve mexer, é o sujeito ou o objeto do laissez-faire .
Não obstante, em um paradoxo apenas aparente, ele é o eminentemente governável,
pois sua divisa fundamental — enxergar em tudo, mesmo nas piores catástrofes,
oportunidades de negócio — implica em uma integral adesão ao meio. Nas palavras
de Foucault, o homo oeconomicus é aquele que “aceita a realidade” e justamente
por isto é eminentemente governável por uma governamentalidade que agirá
sistematicamente sobre o meio, reconfigurando-o e determinando indireta e
persistentemente a conduta livre do agente econômico individual.
Tanto Arendt como Foucault interessaram-se pela
progressiva determinação estritamente econômica da vida individual, cujo
correlato é a constituição de um ethos conformista que se justifica, em última
instância, por uma divisa de David Hume na obra Uma investigação sobre os
princípios da moral (Campinas: Ed. Unicamp, 1995), que ambos mostraram
conhecer: se indagares a alguém por que deseja a saúde, poderia ouvir dele “que
ela é necessária para o exercício de sua profissão. E se perguntas por que ele
está preocupado com isso, responderá que é porque deseja ganhar dinheiro. E se
perguntar por quê?, ele dirá que é o instrumento do prazer. E para além disso é
um absurdo pedir uma razão”.
Arendt menciona, em A condição humana, o prejuízo
de experiência do mundo resultante da conversão de toda propriedade em capital,
de todo bem durável (como carros, casas) em prestações vitalícias. Penso que
apesar de não focarem diretamente sua atenção sobre a financeirização da vida,
ambos forneceram intuições iluminadoras para a configuração mais geral da
servidão voluntária de uma vida determinada economicamente, e vivida a
crédito.
IHU On-Line - Quais são as possíveis aproximações
entre o homo oeconomicus, de Foucault, e o animal laborans, de Arendt, para
compreendermos o processo de cooptação da política pela economia?
Adriano Correia - Há
muitos estudos recentes que têm buscado pensar em conjunto os diagnósticos e as
reflexões de Arendt e Foucault sobre a modernidade política, sem ignorar a
notável singularidade da obra de ambos, que jamais se conheceram. Giorgio
Agamben foi certamente pioneiro, em sua obra Homo sacer I – o poder
soberano e a vida nua (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002), e suas
considerações iniciais sobre a relação entre biopolítica e totalitarismo ainda
definem parte significativa dos marcos das aproximações entre ambos os autores.
Penso, sem ignorar as indicações de Agamben, que a
aproximação entre os conceitos de animal laborans e de homo oeconomicus é das
mais frutíferas para pensar o tempo presente junto a esses pensadores. O
conceito de animal laborans é central em A condição humana, de Arendt, na
definição do que para ela é o tipicamente moderno, no que tange à relação entre
economia e política: a progressiva subjugação da política pela economia. Nesta
obra a expressão animal laborans possui três sentidos fundamentais: o primeiro
é o de dimensão da existência humana, que corresponde à nossa condição de
viventes em permanente metabolismo com a natureza com vistas à conservação da
vida; o segundo descreve a condição dos que foram historicamente expurgados da
vida social normal pela exploração capitalista e foram assim condenados ao
ciclo de esgotamento e regeneração que preside o mero viver; o terceiro indica
um modo ou uma forma de vida extraída do mero viver — não mais uma dimensão da
existência, não mais uma condição socioeconômica, mas um éthos cujas aspirações
coincidem com a “felicidade” experimentada nos prazeres do mero viver,
cristalizados na imagem do consumidor.
Empresário de si mesmo
O conceito de homo oeconomicus é empregado por
Foucault no curso O nascimento da biopolítica (1978-1979) para examinar a noção
de sujeito que está em jogo desde os primórdios do liberalismo, profundamente
transformada, não obstante, por sua reinterpretação neoliberal. Quando reflete
sobre o sujeito no âmbito do liberalismo, ele o diagnostica como um sujeito de
interesses ou lugar de uma mecânica de interesses ao mesmo tempo irredutíveis e
intransmissíveis. Irredutíveis porque a opção decisiva entre o doloroso e o não
doloroso não se constitui como uma real opção, mas como uma espécie de, nas
palavras de Foucault, “limitador regressivo na análise”. E intransmissíveis,
por fim, porque mesmo quando prefiro sofrer algo por outrem é ainda meu próprio
interesse que está em jogo: em suma, seria mais dolorosa a dor desse alguém em
mim que a dor que eu mesmo sinto em seu lugar. Esse sujeito de interesses
jamais se deixa transfigurar inteiramente na imagem do sujeito de direito, ou
homo juridicus, porque mesmo no âmbito da vida política e de suas leis é sempre
o interesse próprio que define seus cálculos com vistas à ação.
Foucault observa que com o neoliberalismo, e
notadamente com a teoria do capital humano do neoliberalismo americano, a noção
de homo oeconomicus é consideravelmente deslocada, pois o homo oeconomicus
clássico é o parceiro da troca, e sua noção de utilidade não se dissocia da
problemática das necessidades. No neoliberalismo o homo oeconomicus é
compreendido como empresário de si mesmo, como alguém que mesmo não sendo
proprietário dos meios de produção, possui a si mesmo e investe suas
habilidades e competências como um capital com vistas a uma renda futura que é
o salário. E não se tratam mais de interesses e necessidades, mas de consumidor
e consumo, e do consumidor como produtor.
Penso ser significativo e digno de reflexão que
tanto Arendt quanto Foucault tenham pensado os tempos presentes, no que tange à
relação entre economia e política, considerando a centralidade do “consumidor”
e da forma de vida que lhe é correlata, assim como que tenham indicado o
caráter apolítico e mesmo antipolítico dessa forma de vida. Não se trata de
indicar que as questões clássicas como a da expropriação e dos conflitos de
classe tenham perdido a relevância, mas de enfatizar a prevalência de um modo
de vida que, antes de tudo, “aceita a realidade”, nas palavras de Foucault, ou
“aceita o mundo tal como é”, nas palavras de Arendt.
IHU On-Line - Por outro lado, seria possível
aproximar o animal laborans, que a tudo apequena, da figura do último homem
nietzschiano?
Adriano Correia - A
interpretação um tanto cínica da felicidade como saciedade não deixa de
alegoricamente lembrar outro personagem, introduzido sarcasticamente por
Nietzsche no prólogo do seu Zaratustra. A autossatisfação moderna, não
obstante a uniformidade e o rebaixamento das aspirações do homem moderno, acaba
por não colocar em questão a associação entre virtude e bem-estar, felicidade e
conforto. Trata-se, como bem observou Oswaldo Giacoia Júnior em uma
entrevista recente (IHU On-Line, 344) , do ideal niilista “do humano reduzido à
intensidade minimalista da sobrevivência; o ideal de felicidade rebaixado ao
hedonismo consumista, à incapacidade de elaborar uma experiência de sofrimento,
ao desejo obsessivo de bem-estar, conforto burguês e segurança, o acobertamento
no anonimato do coletivo, a diluição de toda verdadeira personalidade, a
negação da diferença pela tirania identitária do uniforme”. Quando os últimos
homens saltitam no mundo aos pulinhos e anunciam aos que os encontram que
inventaram a felicidade e piscam o olho, é como se não se pudesse esperar mais
coisa alguma dos homens da servidão voluntária.
IHU On-Line - Nesse sentido, qual é o nexo que une
a figura do tipo burguês, para Arendt, com a despolitização e a apatia
política?
Adriano Correia - Arendt
recorreu frequentemente, desde As origens do totalitarismo (1951) até ao menos
a polêmica em torno de Eichmann em Jerusalém (1963) (São Paulo: Companhia das
Letras, 1999), à imagem do burguês, do indivíduo cujo horizonte esgota-se na
acirrada competição por bens privados e cujo propósito máximo é o sucesso nessa
luta. Quando examina os elementos que se constituíram em precedentes da
dominação total, reserva um espaço privilegiado ao exame do tipo representado
pelo burguês, “na falta de nome melhor”. O privatismo do burguês se afirmou de
tal modo na modernidade que desde que o Estado assegurasse as suas posses, e o
processo que permitia o progressivo acúmulo de riqueza e propriedade, não
despertaria qualquer resistência ou oposição por parte da burguesia como
classe.
Quando seus membros ingressaram na vida política, o
fizeram justamente por concluir que o poder econômico fundado na expansão não
poderia se afirmar sem a concomitante exportação de poder político. Quando se
ocupam das questões que concernem a muitos, visam ainda apenas a seus
interesses privados — o ápice de sua abnegação é o interesse coletivo, que
jamais se transfigura em interesse público, de tal modo que a própria noção de
bem comum é inteiramente absurda. Para esses indivíduos, que se compreendiam
antes de tudo como pessoas privadas e são ainda hoje pouco raros, o Estado
sempre representou apenas uma força policial bem organizada. Não é trivial que
sob os auspícios da governamentalidade liberal o Estado tenha se reduzido ao
governo e finalmente o governo tenha se reduzido à mera gestão ou
administração. Mesmo a representação política, que pode muito bem ser
articulada com a participação em conselhos populares, como pensava Arendt,
acaba por se converter em integral desengajamento, mediante a delegação do
julgamento e alienação dos processos de tomada de decisão, cada vez mais
definidos pela técnica econômica.
Para Arendt, a “sociedade competitiva de consumo”
engendrada pela burguesia produziu apatia e mesmo hostilidade em relação à vida
pública tanto entre as camadas sociais excluídas da participação no governo
quanto, principalmente, entre os membros de sua própria classe, os quais sempre
conceberam o exercício dos deveres e responsabilidades dos cidadãos como perda
inútil de tempo e energia — nada mais estranho a esta perspectiva, portanto,
que a afirmação de Arendt em Sobre a revolução (São Paulo: Companhia das
Letras, 2011) de que “ou ser cidadão significa participar ativamente do governo
ou não significa coisa alguma”. O lema desse tipo burguês bem poderia ser a sentença
de David Hume no Tratado da natureza humana (São Paulo: Editora UNESP, 2009):
“não é contrário à razão eu preferir a destruição do mundo inteiro a um
arranhão no meu dedo”.
IHU On-Line - É possível, ainda, estabelecer nexos
entre essa figura do burguês despolitizado e apático com o burocrata acrítico,
como retratado em Eichmann em Jerusalém?
Adriano Correia - Vários
personagens emergidos com o nazismo interessaram a Arendt desde suas primevas
análises do fenômeno totalitário, mas alguns lhe foram mais caros: os que se
ajustaram prontamente à nova ordem, dos intelectuais oportunistas aos
oportunistas de toda sorte; os que protagonizaram a concepção do regime, desde
pequeno-burgueses a sádicos pervertidos; os aventureiros pais de família da
crise do entreguerras, dispostos a sacrificar toda sua dignidade pessoal à
segurança dos seus; aqueles que se alinharam ao regime apenas por não parecerem
possuir uma resposta plausível à pergunta “por que não?”. Para Arendt, Eichmann
era um híbrido de oportunismo inconsequente e de burocrata irrefletido,
em quem a irrestrita obediência era um simulacro de personalidade. A
constatação de que é possível a uma pessoa absolutamente normal, social e
psiquicamente, perpetrar um mal ilimitado foi uma das poucas conclusões seguras
a que Arendt chegou a partir do exame do tipo representado por Eichmann.
Para Arendt, quem dentre os nazistas mais bem
encarnava o tipo burguês era justamente Himmler , não Eichmann. Ele, que teve
descumpridas por Eichmann suas ordens para interromper o extermínio dos judeus
com vistas a trocar suas vidas por caminhões, no final da guerra, cultivava uma
vida tipicamente burguesa, a cultivar os sinais públicos de respeitabilidade de
um pai de família preocupado antes com o interesse dos seus. E foi com base no
pressuposto de que a maioria das pessoas é constituída de empregados e bons
pais de família, e não de sádicos ou fanáticos, que ele concebeu sua
organização do terror. O pai de família, que despertaria em nós admiração e
ternura em sua concentração no interesse dos seus, em sua consagração firme à
mulher e aos filhos, em sua solicitude, preocupado basicamente com a segurança,
teria se tornado, como enfatiza Arendt, um aventureiro no caos econômico do
período entre as guerras, sem qualquer possibilidade de se sentir seguro em
relação ao dia de amanhã.
Eichmann, apesar dos notórios traços do carreirismo
burguês, teria mais conexões com a figura do homem de massa, emergido na Europa
com o colapso do sistema de classes, examinado por Arendt em As origens do
totalitarismo. Para ela, era traço típico da psicologia do homem de massa a
abnegação, no sentido de não se importar consigo próprio, e a sensação de ser
descartável. A obediência cadavérica de que Eichmann se orgulhava — algo
fundamentalmente contrário à primazia burguesa do interesse próprio — era uma de
suas manifestações mais radicais. Aquele autoabandono, em flagrante oposição ao
privatismo burguês, revelou-se potencialmente devastador quando devidamente
articulado e canalizado pela organização totalitária.
IHU On-Line - Como se pode compreender o mecanismo
do dinheiro que gera dinheiro no âmbito do neoliberalismo?
Adriano Correia - Em As
origens do totalitarismo, no segundo volume, sobre o “Imperialismo”, há uma
seção decisiva que infeliz e frequentemente é negligenciada. Intitulada “O
poder e a burguesia”, nela Arendt busca compreender o imperialismo como “o
primeiro estágio do domínio político da burguesia”, como via privilegiada de
sua emancipação política. Para Arendt, “a expansão imperialista havia sido
deflagrada por um tipo curioso de crise econômica: a superprodução de capital e
o surgimento do dinheiro ‘supérfluo’, causado por um excesso de poupança que já
não podia ser produtivamente investido dentro das fronteiras nacionais”. Não
buscavam, todavia, expandir as fronteiras nacionais, mas de rejeitá-las como
barreira à expansão econômica. Não exportavam política, portanto, apenas a
força que acompanhava o capital e a mão de obra supérflua, cuja primeira
consequência era a de que a política e o exército, como instrumentos de
violência do Estado, foram exportados apartados das demais instituições
nacionais que também os controlavam, de tal modo que, grassando a violência
mais livre que em qualquer país europeu, as chamadas leis do capitalismo tinham
permissão para criar novas realidades.
Conto de fadas
Para Arendt, o desejo fundamental e não mais oculto
da burguesia é o conto de fadas que consiste em fazer com que dinheiro gere
dinheiro sem percorrer o óbvio e longo caminho que consiste em investir em
produção. Trata-se de passar do dinheiro a mais dinheiro sem a mediação das
coisas. Com o imperialismo isto veio a se tornar possível, mediante a
exportação simultânea de capital e pura força, o que tornou claro que somente o
acúmulo ilimitado de poder, compreendido como pura força, podia levar ao acúmulo
ilimitado de capital.
Os administradores da violência nos povos
conquistados proclamaram, pelo que constatavam em sua experiência diária “que a
força é a essência de toda estrutura política”, o que acabou por implicar em
que a política mesma, enquanto engendra instituições estabilizadoras, passou a
ser um obstáculo a ser combatido, com vistas ao acúmulo ilimitado de força e
capital. A era imperialista se esgotou, ao menos sob a forma do expansionismo
da virada do século XIX para o século XX, não sem antes provocar catástrofes
proporcionais à magnitude da ilimitação buscada por seus agentes. Não obstante,
o sonho oculto se transfigurou na era da especulação financeira na qual parece
que viveremos ainda demasiado tempo.
Cooptação dos governos
O neoliberalismo, e as crises que periodicamente
forja, é a imagem acabada e paroxística do sonho não mais oculto de produzir o
dinheiro a partir do dinheiro. Esta conta só se fecha com a sujeição dos
governos das diversas nações ao capital privado especulativo, cujos
representantes notáveis são os bancos e os fundos de investimento, que não por
acaso estão no cerne dos escândalos e crises político-financeiras desde tempos
já não tão recentes. O neoliberalismo é o estágio mais recente e extremo da
instrumentalização dos governos para fins de acumulação ilimitada de capital.
Em um contexto de internacionalização ampla do capital as corporações
financeiras tendem a cooptar os governos nacionais com agressividade cada vez
mais aguda, fazendo retroceder em décadas legislações sobre direitos de
seguridade, como os trabalhistas.
Se no contexto do imperialismo a produção era tida
como um intermediário incômodo rumo à ampliação do capital, no contexto do
neoliberalismo os próprios produtores convertem-se cada vez mais em proprietários
de fundos de investimento, que com suas parceiras agências de classificação de
risco achacam constantemente os governos com vistas a obter os retornos mais
rentáveis das dívidas pública e privada. Para lograrem êxito, contam usualmente
com a parceria de grupos políticos locais, frequentes beneficiários dos
financiamentos desses mesmos agentes especuladores. Tais grupos podem
dissimular em argumentos “liberais” sua cumplicidade interessada,
beneficiando-se, por sua vez, da persistente companhia dos grandes
conglomerados de mídia, que associam cotidianamente o tamanho das instituições
políticas a corrupção, a ineficiência e o cerceamento de liberdades. Nesse
círculo nada virtuoso, que saltou para o primeiro plano no momento presente,
minguam os últimos vestígios de dignidade da política e de suas virtudes
correlatas.
IHU On-Line - Quais são as contribuições de Arendt
e Foucault para se pensar a liberdade em nossos dias, tendo em consideração
esse cenário no qual há uma preponderância econômica? Qual é a importância da
contraposição entre público e privado, entre política e economia como traços
fundamentais no pensamento arendtiano? Nessa lógica, por que o liberalismo
econômico se sobrepõe ao liberalismo político?
Adriano Correia - Em seu
ensaio “O que é liberdade?”, reunido na obra Entre o passado e o futuro (São
Paulo: Ed. Perspectiva, 2000), Arendt é enfática: apesar de seu nome, o
liberalismo contribuiu para banir a noção de liberdade do âmbito político, na
medida em que compreende a política apenas como um instrumento para
salvaguardar os interesses econômicos e a manutenção da vida, em seu sentido
estritamente biológico. Ela não se dá ao trabalho de distinguir entre
liberalismo econômico e liberalismo político, mas em mais de uma ocasião, como
na obra Sobre a revolução, insistiu na importância política da salvaguarda dos
direitos civis, cuja defesa é cara à tradição liberal, assim como de não
reduzir os direitos políticos à mera proteção contra a arbitrariedade estatal
ou soberana.
O liberalismo borra a fronteira entre o público e o
privado em benefício do último — e o que aparece no segundo artigo da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão , de 1789, ajuda a anuviar a
fronteira entre liberalismo político e liberalismo econômico, apesar da distância
abissal entre John Stuart Mill e Von Mises . Se o liberalismo
esforçou-se, como lembra Benjamin Constant , por conservar a integridade da
esfera privada, acabou por conceder à esfera pública uma dignidade apenas
instrumental.
A rigidez arendtiana na distinção entre público e
privado foi frequentemente criticada, muitas vezes com razão, principalmente
por seu relativo silêncio sobre o potencial politicamente emancipatório das
disputas por direitos sociais, mas sua força heurística vem sendo progressivamente
intensificada a cada movimento em que a política é colonizada pela economia.
Sujeitinho manso
Arendt e Foucault partilhavam da convicção de que o
mundo do liberalismo não é o lugar da liberdade, mas está antes sempre no
limiar do conformismo e da acomodação adesista. Quando Arendt examina o animal
laborans, principalmente no final de A condição humana, é difícil não pensar
nos traços psicológicos do novo tipo de homem da “antropologia liberal”, mais
bem traduzida, segundo ela, por Hobbes : pois ele “previu como necessária a
idolatria do poder que caracteriza esse novo tipo humano, e pressentiu que ele
se sentiria lisonjeado ao ser chamado de animal sedento de poder, embora na
verdade a sociedade o forçasse a renunciar a todas as suas forças naturais, suas
virtudes e vícios, e fizesse dele o pobre sujeitinho manso que não tem sequer o
direito de se erguer contra a tirania e que, longe de lutar pelo poder,
submete-se a qualquer governo existente e não mexe um dedo nem mesmo quando o
seu melhor amigo cai vítima de uma raison d’état incompreensível” (As origens
do totalitarismo).
Liberdade x sujeição
Para Foucault trata-se, notadamente no caso do
neoliberalismo, de uma liberdade que só é possível com segurança, mas para se
sentirem seguros os indivíduos movimentam-se apenas no espaço pré-esquadrinhado
pelos dispositivos de segurança. Por isto o homo oeconomicus do neoliberalismo
é o que aceita a realidade, o que não põe em questão a própria disposição do
estreito meio no qual circula e busca assimilar camaleonicamente cada gestão de
sua conduta como uma oportunidade que se abre. No curso O nascimento da
biopolítica (1978-1979) Foucault observa que a arte liberal de governar é uma
gestora da liberdade, mas em um sentido bastante específico: “o liberalismo, no
sentido em que eu o entendo, esse liberalismo que podemos caracterizar como a
nova arte de governar formada no século XVIII, implica em seu cerne uma relação
de produção/destruição [com a] liberdade [...]. É necessário, de um lado,
produzir a liberdade, mas esse gesto mesmo implica que, de outro lado, se
estabeleçam limitações, controles, coerções, obrigações apoiadas em ameaças,
etc.”.
Penso que tanto Arendt quanto Foucault dedicaram
atenção especial ao liberalismo em seus diagnósticos dos tempos presentes justamente
por compreender que ele aposta a liberdade dos indivíduos precisamente onde
encontram a mais sutil sujeição — talvez isto torne menos oblíqua a razão de
Foucault nomear O nascimento da biopolítica um curso sobre liberalismo e
neoliberalismo. Não apenas o terror totalitário deveria nos assustar, mas ainda
a sujeição pelo fomento, que permite aos sujeitados bradarem da estreiteza do
seu mundo: inventamos a felicidade (ou um novo tipo de liberdade, ou de
segurança, afinal).■
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- Totalitarismo – O filho bastardo da modernidade. Entrevista
com Adriano Correia, publicada na revista IHU On-Line, nº 438, de 24-03-2014;
- O mal que desafia a lógica. Considerações de Arendt sobre Eichmann. Reportagem
publicada em Notícias do Dia, de 24-03-2014, no sítio do IHU;
- Liberalismo
e a dominação econômica da política: Arendt e Foucault. Reportagem
publicada em Notícias do Dia, de 17-04-2015, no sítio do IHU.