A
financeirização e as mutações do capitalismo
Para Yann
Boutang, a financeirização está transformando metodicamente um dos pilares do
capitalismo, a relação assalariada, que também é uma das chaves da exploração
nesse sistema
Por: Márcia Junges
e Leslie Chaves| Tradução Vanise Dresch
Para além do econômico, a
financeirização tem ampla influência na organização social, atingindo aspectos
como a biosfera, “que diz respeito à produção do meio vivo em geral”, e a
noosfera, “que cobre todas as atividades mentais, espirituais, culturais”. Segundo Yann
Moulier Boutang, apesar de serem menos destacados, tais impactos são
profundos. “A produção de conhecimentos novos, a aprendizagem por meio de
conhecimentos e aquela, mais delicada, do vivente por meio do vivente, por
levantar questões éticas cruciais, ampliaram tanto a esfera pertencente ao
econômico, que ela colocou em crise os principais instrumentos de avaliação a
que recorriam os economistas (o valor trabalho, o valor utilidade, a medida do
tempo, da produtividade, a imputação a indivíduos ou a entidades como as
empresas da inovação, da eficiência)”, aponta em entrevista por e-mail à IHU
On-Line.
Diante desse cenário, o sistema
capitalista tem sofrido modificações significativas em comparação com a
estrutura que apresentava na era industrial. De acordo com o economista, a
financeirização é simultaneamente o cerne dessas transformações e do
capitalismo em si.
Ao longo da entrevista, Boutang
aborda os reflexos da financeirização nos diversos campos da vida em sociedade,
como a relação com as Tecnologias de Informação e Comunicação como meio para
pensar alternativas para a construção de uma sociedade mais comprometida com o
bem comum. “Tenho grande confiança no desenvolvimento de uma política mais
sintonizada com as necessidades de nosso tempo, porque a revolução digital, ao
contrário da revolução industrial, nos conduz agora a uma fase da humanidade
capaz de abolir o trabalho como maldição bíblica para passar à atividade
coletiva como liberação do homo oeconomicus”, frisa.
Yann Moulier Boutang participou ativamente do movimento de 1968.
Em 1973, conheceu Antonio Negri, de quem permanece parceiro intelectual. Em
1974, criou a revista Camaradas, que desenvolve os temas da “Autonomia
Operária”, conceito adotado então na Itália por militantes procedentes do
operariado. Camaradas é um dos primeiros grupos do movimento autônomo na
França. Após a autodissolução da revista, Boutang participa, de 1979 a 1981, do
Centro Internacional para Novos Espaços de Liberdade - CINEL, uma iniciativa de
Félix Guattari. È redator chefe da revista política, artística e filosófica
Multitudes. Atualmente é professor de ciências econômicas na universidade de
tecnologia de Compiègne e professor no Centro Fernand-Braudel da Universidade
de Binghamton-New York, EUA.
De sua vasta produção intelectual,
destacamos: De l’esclavage au salariat. Économie historique du salariat bridé
(Paris: PUF, 1998), Le droit dans la mondialisation: une perspective critique
(Paris: PUF, 2002), Le capitalisme cognitif. La nouvelle grande transformation
(Editions Amsterdam, 2007) e L'Abeille et l'Économiste (Paris: Carnets Nord,
2010).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Nos dias de hoje, quais
são os impactos fundamentais da financeirização em nossa vida?
Yann Moulier Boutang - Vejo três tipos de impacto segundo a natureza
dos setores afetados. A financeirização de tudo diz respeito, naturalmente, às
atividades que chamaríamos de mercantis (comércio, indústrias manufatureiras,
produção agrícola, indústrias culturais, indústrias financeiras como os seguros),
mas ela imiscui-se também, de forma crescente, naquilo que a contabilidade
nacional chama de setor não mercantil (gestão do Estado, das coletividades
locais, das universidades, dos serviços públicos, entre os quais o da saúde, e
das empresas). Mas há também um impacto talvez mais profundo e menos destacado
que diz respeito à produção do meio vivo em geral (a biosfera planetária) e ao
meio mais especificamente inserido no primeiro: a noosfera, que cobre todas as
atividades mentais, espirituais, culturais. A produção, como já haviam pensado,
faz muito tempo, os filósofos e os teólogos, não é somente a transformação da
matéria, por meio da energia, pelo homo faber; ela abarca a geração das
condições dessa produção: a linguagem, o corpo em boa saúde, a cultura e todos
os laços que fazem de nós seres sociais. Hoje, porém, essa evidência acabou
caindo no modelo reducionista da ciência econômica. A produção de conhecimentos
novos, a aprendizagem por meio de conhecimentos e aquela, mais delicada, do
vivente por meio do vivente, por levantar questões éticas cruciais, ampliaram
tanto a esfera pertencente ao econômico, que ela colocou em crise os principais
instrumentos de avaliação a que recorriam os economistas (o valor trabalho, o
valor utilidade, a medida do tempo, da produtividade, a imputação a indivíduos
ou a entidades como as empresas da inovação, da eficiência).
IHU On-Line - Em que medida o
neoliberalismo é o fundamento, a base da financeirização?
Yann Moulier Boutang - Eu não colocaria as coisas nessa ordem. Pelo
contrário, eu inverteria a ordem. O neoliberalismo, que, do liberalismo, só
mantém o aspecto econômico, logo, o pior, porque logo se desembaraça do aspecto
libertador dos direitos humanos, é apenas uma consequência subalterna,
historicamente transitória, do regime de financeirização. Ora, a
financeirização é, ela mesma, uma consequência da transformação profunda a que
me referi na primeira resposta, e que resumo em minha tese do advento de um
terceiro tipo de capitalismo, o capitalismo cognitivo. É porque o capitalismo
descobriu o novo continente da polinização humana (da força produtiva das
interações da multidão humana em sociedade), de trezentas a mil vezes mais
produtiva que o antigo modo de produção dominado pelo modelo da mecânica, da
energia de carbono, que ele precisa ampliar a finança, já inventada na era do
mercantilismo, em Gênova, para cobrir o risco marítimo, a essa nova economia
mundial. Em outras palavras, a multiplicação do crédito pelo mercado financeiro
em relação aos fundos próprios (um coeficiente de alavancagem [leverage, em
inglês] monetária de 30, em vez de 5) não é uma monstruosidade vinda do céu ou
do inferno, e sim um pálido reflexo da descoberta de um novo Eldorado. Os GAFA
são os conquistadores do antigo mundo da economia industrial, embora seu
evangelho seja bastante frustro (Don’t be evil de Google ) ou absolutamente
desmedido em sua negação da finitude (a primeira versão do transumanismo
californiano). Se a nova esfera da riqueza (e, portanto, do valor possível), como
a polinização, vale, no mínimo, várias centenas de vezes o valor do Produto
Interno Bruto - PIB comercial planetário, os antigos índices de multiplicador
de crédito se tornam totalmente insuficientes para valorizar essa nova esfera,
e os aprendizes de feiticeiro das salas de trading dos bancos arremedam
essa transformação fundamental.
A finança é o governo par defaut
das externalidades positivas de polinização, e também das temíveis
externalidades negativas de destruição de nosso oikos, nosso meio ecológico. O
neoliberalismo imiscui-se nessa brecha aberta da antiga economia: ele permite
avaliar, estabelecer tecnicamente um preço para o futuro e a massa em falta da
economia (o continente das externalidades). Enquanto os Estados e a sociedade
mundial não compreenderem o potencial produtivo da polinização humana, não
medirem todas as consequências em matéria de valor (portanto, de prioridades),
de novos e antigos bens comuns a serem instituídos, incentivados, protegidos em
comum, em matéria de impostos, de regulação, o neoliberalismo prosperará como o
único programa disponível. É nesse sentido que falo de um governo neoliberal
par defaut, na acepção da informática: trata-se de um modo de governança ao
qual recorre o sistema global, que tem horror do risco e da incerteza radical
ainda mais, por falta de algo melhor. Fazer da finança e do neoliberalismo os
inimigos número um e a última ratio da desordem na terra é praticar exorcismo
obscurantista, é retardar a conscientização da realidade das transformações e dos
potenciais libertadores que elas contêm, e da elaboração de políticas
alternativas.
IHU On-Line - Em que aspectos a
pulsão de vida (e morte) do capitalismo, a acumulação, é um elemento importante
para compreendermos essa financeirização?
Yann Moulier Boutang - Não gosto muito do uso do termo “pulsão de
vida” ou, a fortiori, “pulsão de morte” para se referir a entidades que não
sejam pessoas humanas e que não seja no plano psicanalítico. Além disso, não
penso que a financeirização, outro nome do capitalismo (é seu cerne atual),
seja suicida, nem dionisíaca, em relação à concepção apolínea e fria da
racionalidade neoclássica. Enfim, ao contrário de certo marxismo vulgar
mecanicista, a acumulação não é “a lei e os profetas” do capitalismo (o
capitalismo mostrou, em sua história, ter sido capaz de destruir friamente
quantidades gigantescas de capital físico e de capital intelectual quando seu
poder esteve ameaçado — definido, como diz Foucault, como a capacidade de fazer
com que alguém faça algo, no caso, os explorados). O capital e o capitalismo
são uma relação social, uma relação, e não uma quantidade física de capital.
Suas mutações, suas reações não são aquelas de um touro, nem de um patrão,
tampouco somente as dos patrões coletivos. Acredito, como mostrou a escola
operaísta, a meu ver, de maneira decisiva, que o capital como sistema complexo
cujos agentes não passam de “trägers” (condutores) só é inteligível como reação
e interação com o proletariado, a classe operária e, hoje, o mundo cognitivo ou
das redes, a composição do capital intelectual vivo, e como controle dos
impulsos e movimentos desse devir-classe, ele só pode ser compreendido como
reação, retrocírculo, se assim podemos dizer, dentro dessa relação. Toda a
história específica das relações (portanto, de força) capitalistas, as únicas
que constituem o capital, o qual não é nem uma coisa nem dois atores
preexistentes, só pode ser lida nessa dialética, e, além disso, com a opção
metodológica, mais interessante do ponto de vista heurístico, de inverter as
prioridades de ver, primeiramente, os movimentos a partir de baixo, para depois
subir, em vez de partir dos níveis econômicos e técnicos do capital para deles
deduzir o Estado, as classes sociais, os “subalternos”, logo, do economismo,
que é um marxismo e um neoliberalismo igualmente vulgares.
A realidade é mais simples e mais
complexa ao mesmo tempo. Mais simples: o capitalismo como modo de produção, no
momento em que parecia (apenas parecia) superar um antagonismo devido ao
desaparecimento do “socialismo real”, deparou-se com um limite, o qual podemos
chamar de morte, mas não uma pulsão de morte, e sim a morte do planeta, de
nossa morada comum, a da biosfera. Essa manifestação cada vez mais nítida da
consciência da finitude não dos indivíduos (ontogênese), mas do homo sapiens
sapiens (filogênese), é a nova força que trabalha o par das relações de força
das classes, o novo clinâmen [declinação], os antigos dominados e os sempre
dominantes. Diante dessa emergência que, em economia, tem o nome de aumento do
peso das externalidades negativas e positivas (estas últimas sendo pouco
visíveis, ao contrário dos efeitos devastadores do crescimento capitalista), o
governo da relação (a famosa governança) se expressa pela forma da finança e da
financeirização, que permite incluir essas externalidades tanto para o bem como
para o mal. A financeirização não é a pulsão de morte, ela é uma resposta “par
defaut”, por falta (falta de alternativa), a essa finitude planetária e ao
risco político que afeta a sobrevivência da relação capitalista, não mais do
lado da exploração dos homens, mas do lado da exploração do planeta, que conduz
à morte global. A finança em si mesma não é a pulsão de morte do capitalismo:
ela representa sua forma de sobrevivência, de resiliência, portanto, é antes
sua pulsão de vida, mas essa pulsão de vida está a serviço de uma relação que
enfrenta agora, ela mesma, a questão da morte global da espécie na era do
antropoceno. Ela pode ser qualificada de pulsão de morte somente em segundo
grau, se considerarmos que a sobrevivência do capitalismo se dá em detrimento
da sobrevivência global do mundo. E, por outro lado, no plano das
externalidades positivas, trata-se mais de um instrumento que pode ser
domesticado a serviço da vida global do planeta (financiando a transição
ecológica e a despoluição dos resíduos nucleares e do lixo industrial que nos
tornamos).
IHU On-Line - Nesse cenário de
financeirização, quais são os limites, desafios e possibilidades do capitalismo
cognitivo?
Yann Moulier Boutang - A financeirização representa o triunfo
desviado da consideração das externalidades, do invisível e do imaterial na
produção pela humanidade de suas próprias condições de vida. Ela arremeda à sua
revelia a força da polinização humana, única fonte verdadeira da riqueza (mas
ainda não do valor), e a acuidade do risco ecológico maior no qual a hybris
capitalista mergulhou nosso planeta. Seus limites devem-se em larga
medida ao seu poder de amplificação (que vemos nas bolhas financeiras infladas
e rompidas) e de possibilidades de ganhos espetaculares, portanto, de
acumulação de poder, que ela oferece à avidez, à cupidez humana quando se alia
à inteligência.
A financeirização é o braço armado,
sinto-me tentado a dizer, da “nova grande transformação” que o capitalismo está
efetuando, em detrimento do corpo do velho capitalismo industrial. Ela
constitui, mais do que nunca, o cerne do capitalismo (aliás, ela sempre foi,
como mostrou Braudel , o mercado sendo apenas uma consequência, uma
fetichização quase religiosa de sua ordem, mas em um nível muito mais visível
agora).
Ao mesmo tempo, ela pode se tornar o
melhor auxiliar para uma saída por cima, num sentido libertador, do
capitalismo, o qual corresponde a um projeto historicamente datado de
transformação do planeta. Ela está desgastando metodicamente um pilar, o pilar
por excelência do capitalismo, a relação assalariada estável, que é também a
chave do mecanismo da exploração.
A automação intelectual, com a
robotização de múltiplos serviços graças à acumulação de big data
produzido pelos objetos conectados e às learning machines , está
polarizando, reduzindo drasticamente o emprego (e até mesmo as relações
convergentes na Europa e nos Estados Unidos, a tal ponto que já se prevê um
aniquilamento dos empregos das classes médias nas próximas décadas) e, além
disso, polarizando ao extremo o emprego entre, de um lado, tarefas pouco
qualificadas, automatizáveis, ou tarefas de care impossíveis de
automatizar, e, de outro lado, tarefas muito qualificadas, inovadoras, inteligentes
e rebeldes ao learning machines por serem singulares.
Foi, em suma, o que Marx descreveu no
texto mítico “Fragmentos sobre as máquinas”, nos Grundisse (São Paulo:
Boitempo, 2011), que constituiu a base da reflexão operaísta nos anos 1960. O
capitalismo, em seu centro, está abolindo o trabalho assalariado, retornando a
uma atividade mercantil precária, sem cobertura social, sem proteção e, ao
mesmo tempo, explorando socialmente a atividade não mercantil de polinização da
interação comunicacional, linguística, científica, cultural, e até mesmo de
fabricação nas fábricas digitais, nos fab labs . Com todo o potencial de
revolta, de invenção de novos modos de vida e de relações produtivas
alternativas. Toda essa nova transformação só será possível através de uma
domesticação da finança de mercado, que representa algo totalmente diferente do
que são as invocações rasas e piedosas a uma moralização do mercado, cujos
limites pudemos avaliar oito anos depois da crise dos subprimes . Os novos
resíduos bourbonianos, para usar as palavras de Keynes , não são mais o
lastreamento da criação de crédito no ouro, mas a limitação dos investimentos
em nome de uma austeridade absurda e, afinal, criminosa.
IHU On-Line - Acredita que há uma
hegemonia da economia sobre a política? Por quê?
Yann Moulier Boutang - A economia, dizia Lênin , é o político
condensado. O atual primado de uma economia sobre as decisões de política
econômica e sobre a moldagem da legislação (como o eterno aumento da
flexibilização do mercado de trabalho) reflete duas coisas: a) a persistência
de uma ideologia muito delimitada no tempo (entre 1950 e 1980, o monetarismo em
particular) que, depois de ter conquistado posições universitárias sólidas,
transformou-se em ideologia gerencial mais estatal; b) a resistência feroz da
parte já subalterna da classe menos produtiva do capitalismo, e certamente não
aquela do capitalismo cognitivo. Este está amplamente em guerra com os velhos
setores reacionários do capitalismo industrial “bleu marine” [azul marinho]
(jogo de palavras, em francês, que remete ao macacão azul usado pelos operários
[bleu] e ao nome de Marine Le Pen, porque, hoje, mais de um quarto dos
operários da indústria votam na extrema direita) em muitas áreas, entre as
quais a “uberização” , a “googlelização” são etapas em andamento. Ao cabo
dessa nova grande transformação, a economia de produção terá sido infiltrada
pela economia digital. A financeirização representa a liquidação e a liquidez
da velha economia. O capitalismo cognitivo ainda não dispõe de uma economia
política que lhe corresponda. Chegamos apenas ao novo quadro de Quesnay
dessa nova álgebra do valor econômico, e aqueles que refletem sobre as
formas modernas de exploração, de servidão, sobre os novos vícios, as novas
amarguras dessa economia que partiu rumo à conquista do céu, estão longe de
terem criado novos instrumentos de luta e domesticação do dragão digital.
IHU On-Line - Em termos gerais, é
adequado analisar essa preponderância da economia sobre a política como um
elemento explicativo do descrédito da política e da apatia dos eleitores?
Yann Moulier Boutang - É claro que a crise política reflete essa
exasperação em relação a uma submissão beata ou muito tola das políticas às
“leis da economia”, como se estas nos impusessem o famoso Tina de Margaret
Thatcher (there is no alternative) . Os partidos conservadores, liberais,
enfrentam uma situação revolucionária da economia. Tornam-se reacionários em
querer retornar à era dourada industrial (que, aliás, foi extremamente árdua
para os pobres, os humilhados e os ofendidos). Os partidos de esquerda
comunistas e socialistas viram sucessivamente o comunismo entrar em colapso ou
acabar no pesadelo de transições desvairadas para o pior do capitalismo liberal
sem a democracia. O socialismo reduziu sua ambição (do modo como ainda a
formulavam Jaurès , Blum , na França, ou a grande social-democracia alemã) a
uma cogestão implícita de um capitalismo neoconservador moderado por uma
preocupação de redistribuição limitada às classes médias.
Em ambos os casos, a mola
transformadora que fora a locomotiva do progresso e do modelo europeu, apesar
de sua arrogância colonialista, rompeu-se. Uma pesquisa de opinião realizada em
junho de 2015 mostra que 89% dos franceses não gostam dos partidos políticos.
Os que se saem menos mal são os partidos com função “de tribuna”, como dizia
Georges Lavau , isto é, contestadores, não gestores, como o Partido Comunista
e, hoje, o Front National (versão Jean-Marie Le Pen , o pai), seguido
pelo centro e pelo Partido Verde, ambos marginais. O cenário europeu, no
entanto, está mudando, com o crescimento de um populismo (desta vez, com
governos como Erdogan, na Turquia, Orban, na Hungria, Marine Le Pen (filha), na
França, o Skip party, no Reino Unido) que se expressa num soberanismo sem
futuro, porque repousa em uma visão da economia que se mantém nacional num
conjunto europeu cada vez mais federal de fato, mesmo que isso ainda não seja
reconhecido. Felizmente, essa perspectiva pouco encorajadora é contrabalanceada
pela saída institucional à esquerda, de Syriza , na Grécia, e de Podemos ,
cinco anos depois do movimento dos Indignados . Haverá uma conjunção, nos
próximos anos, entre essas buscas de alternativas políticas reais para
enfrentar o imobilismo das velhas receitas e para a renovação profunda da
economia (via revolução digital) e, por fim, em último lugar, da economia que
se encontra, hoje, na posição “ancilar” da teologia na Idade Média e num
papel extremamente conservador, para não dizer reacionário, que acabou
assumindo no Renascimento.
IHU On-Line - Qual é o espaço e os
limites da democracia nesse cenário?
Yann Moulier Boutang - A economia não pode mais limitar-se à
economia mercantil e a um setor não mercantil público que repete todos os
limites da economia mercantil. Ela tem de incluir as externalidades no cálculo
econômico, isto é, aquilo que podemos usar como recursos, e em que condições. Isso,
para salvar o planeta (a biosfera), que temos de transmitir aos nossos filhos e
netos em um estado equivalente, no mínimo, àquele que recebemos (essa é a
melhor definição do desenvolvimento sustentável). Para cumprir esse programa
urgente e de uma complexidade temível, a economia deve apoiar-se na noosfera
(toda a esfera da mente, da língua, da cultura) e cultivar a polinização das
abelhas humanas e não os adubos químicos e os pesticidas (é fácil estabelecer
uma comparação com a biosfera, os diversos psicotrópicos sendo os adubos
químicos do cérebro humano, os pesticidas sendo o tratamento da loucura gerada
por essa corrida em busca da produtividade, da exploração dos humanos).
A revolução digital combinada com os
saberes humanos, e não somente com a ciência, pode tornar-se o instrumento, o
órgão de uma retomada pelas comunidades humanas de seu destino responsável. Ela
pode ser não simplesmente a enésima oportunidade de “turbinar” os lucros, mas
levar as sociedades complexas, históricas, globais a um aprofundamento radical
da democracia. Desde que, obviamente, a horizontalidade das redes digitais não
se feche em um novo poder aristocrático de especialistas, para depois se juntar
ao poder oligárquico dos ricos. Desde que, também, se dote de novas instituições
ou contrainstituições que redefinam a autoridade, dando-lhe um rosto humano
(isso passará, certamente, por uma feminização maciça de um poder masculino
demais e próximo demais dos chipanzés, em vez de prestar atenção no que
acontece entre os bonobos !!), limitando-a por contrapoderes,
descentralizando-a.
Isso significa, por exemplo, não
considerar qualquer recurso comum como sendo uma terra nullius, um domínio
público do qual os interesses privados podem tirar proveito de forma
inesgotável. Portanto, uma economia de partilha, um direito jurídico de
sucessão sobre o status dos bens, uma preocupação com a reprodução do que é bem
comum. Em suma, rever e reconstruir o interesse geral (Aristóteles), o que é o
fundamento da política a partir do copyleft, de R.M. Stallman , das regras
comunitárias de uso do meio de equilíbrio frágil, de Elinor Ostrom , da força
produtiva das multidões (o pinguim do Linux, lembrado por Yoshai Benkler em The
wealth of Networks (Londres: Yale University Press, 2007) ou por mim mesmo em
L’abeille et l’économiste (Paris: Carnets Nord, 2010)).
IHU On-Line - Que novas formas
políticas surgem enquanto resistência e enfrentamento? Nessa lógica, como
podemos compreender manifestações como o 15-M , o Occupy Wall Street , o
Podemos, o Syriza e até mesmo os protestos de julho de 2013 no Brasil?
Yann Moulier Boutang - Tenho grande confiança no desenvolvimento de
uma política mais sintonizada com as necessidades de nosso tempo, porque a
revolução digital, ao contrário da revolução industrial, nos conduz agora
àquele estágio descrito por Marx em “Fragmentos sobre as máquinas”, dos
Grundisse (1857-58), que ia além, mas mantinha e destacava o Marx dos
Manuscritos de 1844: o de uma fase da humanidade capaz de abolir o trabalho
como maldição bíblica (segundo a interpretação agostiniana e puritana de uma
consequência da saída do Paraíso) para passar à atividade coletiva como
liberação do homo oeconomicus, governado apenas pelas duas libidos sentiendi e
dominandi em detrimento da libido sciendi ou ludendi, bem menos funestas.
Sou otimista, porque a conjunção de
um estágio de desenvolvimento econômico com a ferramenta digital, a
globalização cultural e, last but not least , o surgimento de uma necessidade e
de uma urgência de trabalhar para a salvação da tribo humana, ligada à salvação
da terra em geral, que pode unir “aqueles que acreditavam no céu e os que não
acreditavam”, não nos coloca na situação muito mais difícil do Renascimento
colonial, em que se mantinha “sua face sombria”, como ilustrou Walter Mignolo ,
ou então naquela dos “tenants” irlandeses que lutavam contra os landlords que
os expulsavam das terras e os Parliamentary enclosures . Lembremo-nos do
esforço dos jesuítas, quando criaram as Reduções, para salvar os ameríndios da
escravidão, da servidão ao trabalho rural e, depois, industrial a que os
colonos ávidos do Eldorado os destinavam. Esse esforço foi limitado pelo fato
de que a economia mutualista, comunitária (a qual o movimento operário também
voltou, diante da grande indústria manchesteriana), era muito menos eficaz e
produtiva do que o acúmulo capitalista muito primitivo. Mas, desta vez, na era
do Spätkapitalismus , o desenvolvimento, a produtividade e, além disso, a
salvação comum do planeta estão do lado da desenclausuração, do modo e do
código de produção peer to peer, seja mercantil ou não.
IHU On-Line - Até que ponto é
possível haver um “outro dinheiro”? Qual deveria ser seu real papel em nossas
sociedades?
Yann Moulier Boutang - A preocupação dos homens ávidos por uma sociedade
de justiça e esperança, portanto, utópica, no sentido definido por Arrigo
Colombo , em seus belíssimos livros, de que ela ainda está por ser construída,
sempre foi controlar o poder considerável do dinheiro. O dinheiro manda fazer.
É a própria definição do poder sobre outrem; neste sentido, ele corrompe tudo,
inclusive a si mesmo. A hostilidade das igrejas cristãs, muçulmanas e budistas
à taxa de juros, ao desbridamento de sua área de extensão, não se deve a um
capricho infantil. Mas o dinheiro também libera da dívida, do presente
sufocante, quando toma a forma do crédito. Ora, esse crédito é a essência da
moeda, que possibilita que uma sociedade se apoie numa antecipação do futuro de
uma construção mais sólida. É um poder tão potente que, assim como a fé
partilhada por uma comunidade pode mover montanhas, ele logo conheceu a
apropriação por pessoas privadas ou pelos Estados, que regulamentam o direito
de conceder crédito, o índice de juros praticado (definindo o que é usurário),
as obrigações das partes contratantes.
O monopólio da emissão de crédito ou
do instrumento técnico de pagamento que vai traduzi-lo (a moeda metálica e,
depois, fiduciária), do qual o comércio é apenas um aspecto, concentra um
imenso poder. De maneira lógica, os homens, principalmente aqueles que tinham
por que se queixar da distribuição das riquezas, procuraram libertar-se da
coerção do poder por excelência, aquela que obriga os homens a fazerem um
trabalho que gostariam de evitar, sobretudo, em detrimento de atividades que não
rendem dinheiro.
A organização das moedas alternativas
contesta esse poder global do dinheiro, quebrando muitas vezes, de forma muito
modesta, o monopólio de emissão de moeda e crédito. As diversas tentativas de
moedas locais enfrentaram, em geral, uma repressão feroz das autoridades, que
viam nessas tentativas um risco de contestação do Estado e da organização da
sociedade e da produção determinadas sobre as quais ele se alicerçava. Mais uma
vez aqui, o desenvolvimento do caráter de interdependência global da produção
das condições de existência pelas sociedades, a possibilidade, graças à
ferramenta digital, de organizar uma contabilidade das atividades humanas
complexas, a ferramenta das comunicações em tempo real pelos telefones móveis
conectados à internet mudam consideravelmente o alcance das moedas
locais.
Quando o Banco Central do governo
equatoriano (apesar de muito vigiado pelo FED americano, uma vez que a
moeda deste país é dolarizada) implementou um sistema de pagamento por telefone
móvel entre os pequenos agentes econômicos, essencialmente na zona rural, sem
que estes tivessem de passar pelos bancos (o governo precisou resolver
problemas técnicos de segurança informática, apoiar-se numa rede de vendedores
ambulantes nas cidades), ele mostrou que os bancos não são uma instituição
eterna e que poderiam ter um papel consideravelmente reduzido. Em outro
registro, o surgimento e o sucesso fulgurante do crowdfunding e do
crowdlending — estes, em economias desenvolvidas — mostram que uma economia
mais eficiente, menos devoradora de recursos, menos produtora de renda é
possível. Em suma, que moedas locais articuladas com a economia pilotada em seu
conjunto, inclusive nos agregados da liquidez ou da quase liquidez do crédito,
não conduzem absolutamente ao rompimento do laço social.
IHU On-Line - Em que sentido é
possível falarmos em outra economia num contexto marcado pela hegemonia do
dinheiro e do mercado financeirizado?
Yann Moulier Boutang - Se a financeirização da economia expressa o fato de
que a finança de mercado atual é o governo “par défaut” do crescimento cada vez
mais efetivo e esmagador das externalidades tanto positivas como negativas,
isso não quer dizer que outra economia além da mercantil e traduzida em moeda
sonante não seja possível. Isso quer dizer, ao contrário, que enquanto a esfera
não financeira da economia e a economia política não levarem em conta essas
externalidades, na medida de seu crescimento na riqueza real e no potencial de
valor, a finança será cada vez mais solicitada e terá muito com o que se
ocupar.
Quando formos capazes de criar outro
programa de pilotagem dessa economia global, a programação “par defaut” se
imporá, com seu cortejo de defeitos evidentes. A finança, com seus vícios — que
são consideráveis —, tem hoje, infelizmente, a virtude (e é a única,
considerando-se a pusilanimidade dos Estados) de criar liquidez para financiar
o futuro (principalmente, na área da transição energética, que é uma urgência
estratégica). Somente ela tem o poder de gerar 32 bilhões de dólares de crédito
disponibilizados imediatamente a partir de um pequeno bilhão de fundos
próprios. Cabe aos Estados e, sobretudo, às grandes comunidades internacionais
(Impérios, Organização das Nações Unidas - ONU, Fundo Monetário Internacional -
FMI) agir mais, e o poder da finança (que não é somente um estado de fato, mas
também, nas cabeças dos políticos, insuperável) voltará a proporções mais
razoáveis e menos perigosas.
IHU On-Line - Qual é o cenário que se
vislumbra para os próximos anos nas economias emergentes, como a do Brasil e de
outros países da América Latina?
Yann Moulier Boutang - Não sou especialista em economia da América
Latina em geral, tampouco do Brasil em particular. Então, tome a minha resposta
com cuidado. Os BRICS , com exceção da Rússia, emperrada ainda numa
descolonização que levará trinta anos para se completar, deparam-se todos com a
questão do futuro da China, que é determinante para eles, tanto no sudeste
asiático e na África, como na América Latina. Esses países compartilham com a
China alguns dos problemas estruturais que condicionam a consolidação de sua
saída do subdesenvolvimento ou, melhor dizendo, do mau desenvolvimento, sem
disporem das vantagens estratégicas que a China adquiriu em trinta anos.
Brasil, Índia, China e África do Sul (acrescentemos a Nigéria, o México, a
Indonésia) devem simultaneamente ampliar a base de suas classes médias,
portanto, ampliar a renda destas, seja aumentando os salários, seja
redistribuindo pela criação de um Estado de bem-estar social efetivo, e não no
papel, para terem um nível de consumo interno que torne seu PIB menos dependente
das exportações de produtos de baixo ou médio custo, de recursos energéticos
poluentes e, ao mesmo tempo, para continuarem a obter excedentes de sua balança
de pagamentos e de sua balança comercial, investirem em equipamentos de futuro
em indústrias e serviços de alta tecnologia, se não quiserem permanecer
enredados na armadilha de uma perda de competitividade de suas exportações
devido à má qualidade ou baixa integração de conhecimento, à concorrência de
países onde os salários são ainda mais baixos, à corrupção que encarece o preço
e não estimula os assalariados nem o setor público de infraestrutura a fazerem
um esforço de produtividade. Uma das soluções para esses dilemas seria a
ampliação maciça da base e da solidez das classes médias, erradicando de maneira
muito mais voluntarista os fatores de desigualdades, portanto, estendendo o
equivalente de uma renda de cidadania ou de educação (no modelo do Bolsa
Família, que teve, no Brasil, um efeito notável sobre o índice de Gini em
um período muito curto), dotando suas economias de um sólido Welfare state
(especialmente, nas áreas da educação superior, da saúde, dos
equipamentos urbanos) e focando no desenvolvimento das classes criativas
precárias (não a camada superior delas). Mas essa estratégia passaria por um
aumento das despesas públicas que não aprofundaria necessariamente, de maneira
insuportável, o endividamento se medidas drásticas de economia fossem tomadas
em relação às despesas suntuosas com mínimos efeitos de mudança duradoura
(como, por exemplo, os esportes e outros eventos dignos da Roma antiga com seu
“pão e seus jogos”), acompanhadas também por despesas com aparato militar.
Também seria preciso levar a sério a transição ecológica, apostar na construção
de uma indústria verde, em vez de obstinar-se em projetos que desembocarão num
prazo de dez anos em ruínas siderúrgicas ou mineiras com consequências
catastróficas para o meio ambiente, em particular, no caso brasileiro, para a
Amazônia e também para o Mato Grosso do Sul.
O desenvolvimentismo agrícola ou
industrial pesado, que, na era digital, parece de outra era, sempre custou
muito caro para o Brasil, que não soube capitalizar fases de desenvolvimento
rápido, o ciclo madeireiro do pau-brasil no século XVI, o ciclo abortado do
trigo paulista no século XVII, o ciclo das pedras preciosas no século XVIII, o
ciclo abortado do algodão no início século XIX, o ciclo da cana de açúcar do
século XVIII ao XX, o ciclo do café, o ciclo abortado da borracha do fim do
século XIX à década de 1930. Os ciclos da soja transgênica, da carne de búfalo,
da floresta amazônica, do petróleo do pré-sal não são uma garantia do
desenvolvimento. Não criam nenhum efeito mágico. As verdadeiras questões do bem
viver da maioria da população, da inclusão dos pobres, amontoados nas cidades,
em condições precárias de transporte, moradia, higiene e segurança são
cruciais. Em outras palavras, a questão da redução das desigualdades, as quais
ainda atingem os níveis característicos dos países em desenvolvimento, como
programa econômico, junta-se à questão de um desenvolvimento menos dependente
das exportações, ecologicamente mais sustentável e mais apto a tornar o Brasil,
e os BRICS em geral, mais armado na concorrência internacional, na economia do
conhecimento.
A China e a Rússia, diferentemente do
Brasil, enfrentam dificuldades muito semelhantes. Se esses dois países não têm
as desvantagens de uma real democracia, que traz incerteza para os investidores
e para a possibilidade de conduzir políticas de longo prazo, eles também não têm
as vantagens dela, o que constitui uma séria deficiência na corrida ao
capitalismo cognitivo que se inicia no mundo. A cultura digital (que nada tem a
ver com uma experiência e competências em eletrônica e em informática) está
estreitamente ligada à democracia. Desse ponto de vista, o Brasil pode
inspirar-se mais proveitosamente em Bangalore, na Índia, do que em Shenzen, na
China.
IHU On-Line - Dentro da lógica
neoliberal e da financeirização, como podemos compreender acordos comerciais do
tipo feito entre os governos do Brasil e China há pouco tempo?
Yann Moulier Boutang - Faz muito tempo que a China desenvolve uma
estratégia, em relação ao antigo bloco, hoje bem desconjuntado, do Terceiro
Mundo, tanto na África quanto na América Latina, de abastecer-se nesses países
em produtos semimanufaturados, principalmente agrícolas, em energia e em
recursos minerais, em troca do fornecimento de contratos turn key de bens
de equipamento, a exemplo do que fazia a Alemanha oriental comunista. Em outras
palavras, a América Latina corre o risco de trocar sua antiga dependência do gigante
americano por uma nova dependência da China. O fenômeno é ainda mais gritante
na África subsaariana. Se tais projetos de equipamento em infraestrutura
acompanham uma política de desenvolvimento endógeno de aumentar a qualidade da
população sul-americana, por que não? No entanto, há de se temer que,
limitando-se a construir autoestradas, pontes, ferrovias transamazônicas,
depois de ter construído estádios para diversas copas de futebol, a América
Latina inteira tenha crescimento sem desenvolvimento social e com uma fatura
ecológica cara, como se tivesse o recheio, mas não o peru para rechear.
Se a China consegue incluir o Brasil
em acordos comerciais importantes, isso acontece por duas razões: a) ela assume
o lugar deixado vago tanto pelos Estados Unidos quanto pela Europa, que não
garantiram aos argentinos nem aos brasileiros uma colocação segura na
alimentação de seu gado para uma soja não transgênica; b) a China acumulou uma
força financeira colossal (3,7 trilhões de dólares de reservas em divisas
estrangeiras em 2015), o que lhe permite emprestar sob forma de
crédito-arrendamento (créditos ligados a importações de produtos chineses
industriais) aos outros BRICS. Ela conseguiu criar recentemente seu próprio
FMI, sob a forma do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, dotando-o
de 500 bilhões de dólares e convidando os outros membros participantes a
aportarem mais 500 bilhões. Esse programa deseja criar uma rota da seda do Sul,
paralela àquela do Norte, que se concretizará com um trem-bala (ou TGV) de
11.000 km entre Pequim e Moscou.
A China carrega a Índia, levada a
substituí-la como “fábrica do mundo”. Ela venderá, nesse tipo de imperialismo
soft, sua tecnologia de construção, sua mão de obra qualificada, seus bens de
equipamento, entre os quais o trem-bala, o que lhe permitirá ultrapassar o
delicado patamar em que agora se encontra: dotar-se de um welfare state,
acolher 400 milhões de camponeses em 200 cidades de 2 milhões de habitantes,
responder aos desafios ecológicos gigantescos que o país enfrenta (seca, erosão
do solo cultivável, poluição química), requalificar sua indústria para o alto
padrão, investir nas indústrias de ponta para poder continuar aumentando os
salários, mantendo ao mesmo tempo um excedente de sua balança comercial, mesmo
que este seja reduzido. O acordo sino-brasileiro insere-se perfeitamente nesse
contexto de uma estratégia chinesa, de cujas deficiências não trataremos aqui.
Em compensação, podemos nos perguntar se o Brasil tem uma estratégia tão
coerente e, sobretudo, compatível com seu parceiro chinês. Por certo, trata-se
de um acordo apresentado como win/win (os dois lados ganham). Porém, duas
questões surgem: a) os ganhos para a China são incomparáveis com os ganhos
brasileiros; b) se acrescentarmos os custos sociais, ambientais e de coerência
industrial no desenvolvimento, não se tem certeza de que os ganhos comerciais
sejam realmente ganhos. No entanto, mais uma vez, a China procura seu lugar de
grande potência nas relações mundiais e o encontra, em grande parte, por causa
do vazio europeu e americano.■
Leia mais...
- A bioprodução. “O capitalismo
cognitivo produz conhecimentos por meio de conhecimento e vida por meio de
vida”. Entrevista com Yann Moulier Boutang publicada na
revista IHU On-Line nº 216, de 23-04-2007;
- “O sistema financeiro de mercado é
como o sismógrafo desta crise”. Entrevista com Yann Moulier
Boutang publicada na revista IHU On-Line nº 301, de 20-07-2009.
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