Gravidade amorosa
Hoje, parei para lhe reparar pelo prisma solar da tarde, num olhar diferente do trivial, como se percebesse atravessando a janela da razão e seguindo aos poucos os raios da emoção adormecida, e saí de mim sustentado nos traços de partículas de poeira em suspensão, quase invisível, quase inexistente, não fosse a claridade que transpunha as suas curvas, dobras das pernas, cabelos e vínculos imateriais com a paisagem poente.
O plano de cores saía do céu cobrindo as folhas ao redor grafitando um véu, ora refazendo o parapeito da janela ora acentuando os riscos do assoalho e suas ripas morenas inteiriças, polidas, exalando um aroma remoto de jasmim. Assim era o pêndulo de luz invasora, no entorno da minha visão de sua imagem transitiva na imaginação, sem gravidade.
Cada qual com seu cada qual... Vivemos assim, ainda mais próprios nas ações e independentes na opção do que somos. Um farto sorriso e código dava a senha da nossa passagem de ida e volta, e as nossas palavras estalavam a química corporal, a pronta magia nas retinas que nos aproximava num sussurro: “Que seja amor”.
Girávamos, dois peões sem fio, soltando a leveza da alma em conquista por incêndio sem pedidos de socorro. Experimentara do melhor vinho, e do que se pede num momento tão especial, um ritual de dança da chuva, sem querer previsão de tempo, só para molhar o coração semi-árido por inteiro.
Também havia um estio de meses, mútuo, de sensações reais, um silêncio demorado, até chegar ao ponto... Os meneios de rostos assanhavam nos espelhos a vontade interior acordando as duas dezenas de digitais, ainda frias, nos embarcando numa viajem cega e egoísta por fortes sentimentos. Ao estarmos juntos na escolha de uma posição melhor, de um instante ao lado do outro, ignorando todo o resto no curso de horas, trocamos os pés pelas mãos com outras preciosidades ao pensar em muitos nadas.
Sem se falar nas dúvidas sobramos nas corredeiras tortuosas das permissões, ainda mais desarrumados, nu com as mãos no outro. Após um ensaio louco afinado vimos nossas galáxias internas, e quando acabamos, calados, alinhavamos os presentes trocados sem notar a chegada do futuro impensado.
Saímos do sono sonhado, viramos a esquina, andamos descalços, paramos defronte de uma estação de intenso movimento sem querer evitar os verdadeiros sinais retintos da sorte. Repetimos de tudo no tempo restante imitando as vozes de nossos amigos, numa mímica improvisada, como se pudéssemos ser mais verdadeiros sem as palavras e chamados, de qualquer maneira tudo pareceria tão estranhamente antigo, como seria se fizéssemos o óbvio tal qual os gênios. O verbo móvel do corpo fazia tudo do seu jeito certo, dançando a música que só nós ouvíamos, ainda que faltasse alguma nota tocada pelo barulho vindo de fora. Uma hora depois descobrimos nossa perfeita sintonia. Rimos do dia.
Nem era preciso explicar o que sentíamos. O impulso saltou na ausência da letra na língua, a presença da graça abreviou-se no outro, nada podia conter o olhar espontâneo que se revelou em criar uma mímica indizivel, no construir de figuras nas nuvens do imaginário usando o nada, algo fluiu, água na peneira, a sonoridade vinda em nossa voz, o respirar profundo e sereno que veio em seguida. O sabor absoluto dos gestos doados estavam no traço dos umbigos mudos. Tudo se tornou uma promessa irrecusável a continuar, ainda que não dita, presumida, apenas reconhecida de um e outro do naturalmente aceito.
Concordamos por um sinal afirmativo, arquétipos acordados, transpirando, renascidos de passos em harmonia, buscando o calor da esperança, da liberdade quente, chegando em navios de cascos maduros, aliados de energia afetuosa, envolvente, das estrelas por guia. Soubemos o que alimenta e move cada célula viva num raio de segundos em nossas veias; depois desse encontro mantivemos uma comunicação que ainda nos regula a ida e, nos traz suavemente de volta aos benefícios da experiência amorosa. No melhor sentido da nossa inevitável brevidade.
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