Correspondência entre Keynes e Marx
Marx morreu quando Keynes nasceu (1883). Eles não se conheceram. Mas suas análises se aproximam ao ponto em que, se acreditarmos nelas, poderíamos vê-lo mais claro.
Jean-Marie Harribey*
Data: 07/12/2008
Cambridge, 24 de outubro de 2008
Meu Caro Marx,
Neste dia do 79º aniversário da quinta-feira negra de 1929, devo reconhecer que você me superou. Para dizer a verdade, eu não acredito numa nova crise. Eu tinha descortinado tão metodicamente a incapacidade do mercado de produzir o equilíbrio do pleno emprego que conduzi todos os governos a mais sabedoria: ninguém teria se deixado infectar por uma crise sem reagir. Eu estava com minha consciência tranqüila e não estava preocupado se você tinha ou não esquecido a Estátua do Comandante buscando arrastar o capitalismo no fogo do inferno.
Contudo, os seres animosos que eu descrevi na minha teoria geral retomaram o poder; banqueiros e rentistas, esses mesmos a quem prometi a eutanásia, se refestelaram durante anos. E, quando chegou o inverno, como diria o fabulista francês (1), eles estavam gravemente desprovidos e se deram conta de que não poderiam reencontrar sua liquidez simultaneamente. E aqueles que ainda a detinham preferiram-na a endossar títulos desvalorizados, verdadeiros lixos tóxicos.
Desde o tempo de minha juventude o setor automobilístico começou a inundar o mercado americano de automóveis reluzentes, mas, não tendo a demanda lhes seguido o passo, a depressão não tardou quando um endividamento colossal fez a bolha financeira explodir.
Desde 2001 os norte-americanos recorrem a um endividamento também perigoso. Preste atenção: tomando a si como um guru infalível e assim reputado por uma boa parte dos que pretendiam reclamar de mim, o Senhor Alan Greenspan verteu crédito sem contabilizar, esquecendo que a criação monetária deve antecipar a produção real. E seu sucessor, considerado o melhor conhecedor da crise de 1929, Senhor Bern Bernanke continuou a fazerlhe as honras. Nesse período, os salários perderam seu valor. Com a abolição das fronteiras e a integração financeira, a crise só podia mesmo ganhar o mundo inteiro.
Meu querido Marx, com muito atraso reconheço o ceticismo de minha perspectiva, agravado pelo gosto pelas classes cultivadas, aos seus olhos. Ah! Se você tivesse conhecido as delícias de nossas trocas, de todas as ordens, no Bloomsbury Group (2), no seio do qual brilhava Virginia Woolf, tenho certeza que esqueceria da furunculose deles. Mas, longe de mim a idéia de entreter-lhe com essas mundaneidades que foram, é verdade, a essência de minha vida de entreter-lhe com essas mundaneidades que foram, é verdade, a essência de minha vida depois que entendi as futilidades da Bolsa. Eu tenho é de lhe perguntar, meu caro Marx. Eu concedo que você tinha razão: o capitalismo parece irreparável. Mas, como você vê uma saída definitiva dos excessos desse sistema, tendo em vista a calamitosa experiência soviética? Pois, você há de concordar, eu espero, que seus epígonos não conseguiram segui-lo.
Meu querido Marx, o destino nos separou; sem dúvida Londres estava longe demais de Cambridge, a menos que seus furúnculos e meu gosto pela literatura nos tivessem posto a cada um próximos da fronteira, como você diz, de classe, não é? Isso não importa. Nós somos os únicos a saber o essencial, e isso deveria nos aproximar sobre o próximo período. Permita-me acrescentar a esta carta minhas perspectivas econômicas para os meus netos, que deverão agradar-se de você.
À sua leitura, querido Marx,
seu John Maynard Keynes
A resposta de Marx
Meu caro Keynes,
Tenho de dizer que meu primeiro movimento, ao descobrir sua carta, foi o de saborear a revanche. Você, que sub-utilizou uma parte importante de minha imensa obra, fingindo não tela jamais lido, agora toma o Caminho de Canossa (3). Pois, onde você encontrou, senão no meu Capital, a acumulação, o trabalho como único fator produtivo, a possibilidade das crises, a inanidade da lei de que a oferta cria sua própria demanda, desse imbecil do Say (4), o papel da poupança que você rebatizou preferência pela liquidez, e mesmo o papel da moeda que os ignorantes lhe atribuem a paternidade? Vamos, mais um esforço, querido Keynes, a moeda transformada em capital em virtude da exploração da força de trabalho! Eu rio com os eufemismos modernos sobre “a distribuição do valor agregado”.
Mas voltemos a sua questão. Eu lhe concedo ter levantado um problema crucial, o da transição do capitalismo para uma organização social favorável à emancipação humana. E os brutos do Kremlin pegaram muito pesado.
Convém, inicialmente, que levemos em conta a medida da mundialização do capitalismo, que eu, com meu amigo Engels, analisamos perfeitamente no meu Manifesto. Essa mundialização, cuja crise não é outra coisa que seu completamento. A impossibilidade radical de que todos os capitalistas liquidem ao mesmo tempo o seu patrimônio financeiro, que você notou bem, remete ao caráter fictício da excrescência do capital financeiro. O que os jovens da ATTAC chamam de financeirização é a exacerbação da exploração dos trabalhadores que permite a liberdade total de circulação de capital. O capitalismo não é o mercado, é a relação capital trabalho.
Eu já escuto você praguejar em favor da regulação. Falemos com clareza e sinceramente. Eu concedo quanto à palavra, com a condição que tomemos às coisas pela raiz. Senão as sirenes tocarão, dizendo que há um bom capitalismo opaco por trás da voracidade da finança. Ora, lembre você sempre que o sistema mergulha a humanidade nas águas geladas do cálculo egoísta.
"O que fazer, então" diz você?
Em primeiro lugar, suprima-se a liberdade do capital e garanta-se todas as liberdades democráticas, só para melar todas as burocracias. Em segundo, que se limite os altos lucros e se tome os superávits para financiar os investimentos públicos (a esse respeito, eu adoro o seu multiplicador de investimento e não lamento senão uma coisa: não ter pensado nisso).
Terceiro, se instaure a propriedade social dos bens essenciais à vida e à gestão coletiva do crédito, e se reflita seriamente sobre a reorientação da produção em direção ao útil e não aos desperdícios. Eis uma coisa que eu não inventei, a palavra “ecologia”, bem que eu tinha escrito que o trabalho era o pai da riqueza e que a terra era a sua mãe.
Meu caro Keynes, eu li suas Perspectivas econômicas para os nossos netos e isso me fez bem.
Certa noite de bebedeira numa taberna londrina eu poderia tê-lo afirmado. Mas seria preciso deixar-lhe alguma coisa. Bom, é certo que na City e em Wall Street, onde se lê a mim regularmente – sim, eu lhe asseguro –, os serventes do capital tremem. Eles tremem antes mesmo de saber aonde queremos conduzi-los: à rendição.
Eu lhe prometo, meu querido Keynes, não fazer mais pouco dos seus modos reguladores. Mas lembre-se: regular sem transformar não é regular. Fale disso no seu Bloomsbury Group. Um círculo, ainda, que fracassei de propósito em me ocupar da quadratura.
Seu Karl Marx.
*Jean-Marie Harribey é Professor de Ciências Econômicas e Sociais, mestre de conferências em ciências econômicas na Universidade Montesquieu – Bordeaux IV, membro do Grupo de Pesquisa em Economia Téorica e Aplicada (GRETHA, UMR CNRS 5113). Doutor habilitado a orientar pesquisas em ciências econômicas, membro do conselho científico da ATTAC, Co-presidente da ATTAC e membro da Fundação Copérnico. Publicado originalmente no Libération, em 24 de outubro de 2008.
Tradução: Katarina Peixoto
(1) O fabulista francês é Jean de La Fontaine, e a fábula em que ocorre a expressão “quando la bise fût venue” é a célebre A Cigarra e a Formiga. Bise significa tanto o vento norte que é frio e seco, como o inverno. N.deT.
(2) Quase tudo sobre o Bloomsbury parece controverso, inclusive seus membros e nome. Hoje em dia é largamente aceito, contudo, que o grupo inicialmente consistia dos novelistas e ensaístas Virgínia Woolf, E.M.Forster e Mary (Molly) McCarthy, o biógrafo e ensaísta Lytton Strachey, o economista John Maynard Keynes, os pintores Duncan Grant, Vanessa Bell e Roger Fry, e os críticos de literatura, arte e política, Strachey, Fry, Desmond MacCarthy, Clive Bell e Leonard Woolf.
/Vanessa Bell e Virginia Woolf eram irmãs, e seus irmãos, o mais velho Thoby e o mais novo Adrian, também eram membros do grupo original, assim como outras figuras de Cambridge tais como o enigmático saxão Sydney-Turner. Lytton Strachey e Duncan Grant – que veio a ser companheiro de Vanessa – eram primos.
Nos primeiros anos da história do grupo houve vários affaires entre os membros. A maior parte dos membros moravam por períodos consideráveis de tempo no distrito 1 Central Oeste d Londres, conhecido como Bloomsbury, e “grupo” parece ser o melhor termo geral para descrever a natureza da associação deles, que não era meramente social, como os termos “círculo” ou “set” parecem implicar.
Uma característica histórica notável desses amigos e relações é que seu relacionamento próximo antecipou completamente sua fama como escritores, artistas e pensadores. Ainda que amigos próximos, irmãos, irmãs e às vezes companheiros de amigos não eram necessariamente membros do Bloomsbury. A pintora Dora Carrington, companheira de Lytton Strachey, nunca foi membro. A esposa de Keynes, Lydia Lopokova, só relutantemente foi aceita no grupo. (...) Suas convicções quanto à natureza da consciência e de suas relações com a natureza externa, quanto à separação fundamental entre indivíduos, que envolve tanto o isolamento como o amor, quanto à natureza humana e não-humana do tempo e da morte, e aos bens ideais do amor verdadeiro e da beleza – tudo isso com base na insatisfação do grupo com o capitalismo e com a guerra imperialista.
Essas perspectivas do Bloomsbury também dizem respeito à sua crítica ao realismo materialista na pintura e na ficção, bem como ao ataque que faziam às práticas sociais repressivas de desigualdade sexual, e visavam a estabelecer uma nova ordem social baseada na libertação das normas da sociedade estabelecida. (...) Todos os membros masculinos do grupo foram educados nos Cambridge Colleges de Trinity College ou King's College. (...)
Todos os membros masculinos de Cambridge, exceto Clive Bell e os irmãos Stephen também eram membros da sociedade secreta de estudantes de graduação conhecida como Apóstolos de Cambridge; eles se juntaram a membros mais velhos como Desmond MacCarthy e Roger Fry, bem como a E. M. Forster e J. M. Keynes, todos oriundo do King's College. Através dos Apóstolos, os membros do Bloomsbury também se encontraram com os filósofos analíticos G.E.Moore e Bertrand Russell, que estavam revolucionarando a filosofia britânica na virada do século. O Principia Ethica (1903) de Moore alimentou o Bloomsbury com uma filosofia moral que fundamentalmente diferenciava valores intrínsecos de instrumentais.
Distinguir fins éticos e meios era um lugar-comum na ética, mas o que tornou Principia Ethica tão importante para o Bloomsbury foi a concepção de Moore do que valia por si só. Para Moore valores intrínsecos dependem de uma intuição inanalizável do bem e um conceito de estado mental complexo que valem como um todo e não é proporcional à soma de suas partes. Os maiores bens para Moore e o Bloomsbury eram ideais de relações pessoais e apreciação estética. Mas, mais importante para os valores do grupo era o questionamento recorrente do comportamento humano em termos de meios instrumentais e fins intrínsecos. N.deT. Com Wikipedia.
Para Raymond Williams, o Bloomsbury group era uma fração das classes altas inglesas, empenhada em sustentar os valores clássicos da burguesia iluminista. Eram contra superstições, hipocrisia, ignorância, pobreza, discriminação racial e sexual, militarismo e imperialismo. Suas posições não incluíam uma idéia do todo da sociedade, de modo que o maior valor que defendiam era a do indivíduo civilizado, cuja pluralização, com mais e mais indivíduos civilizados era a única direção social aceitável pelo grupo. (Williams, Raymond. (1982), "The “Bloomsbury fraction". Problems in materialism and culture. Londres, Verso Editions. / Conforme anota Heloísa Pontes, “A procura sistemática por reformas no nível das classes dirigentes, aliada ao trabalho de educação e conscientização que os membros do “Bloomsbury group” fizeram, nos primeiros decênios deste século, junto aos setores desprivilegiados da sociedade inglesa, não foram suficientes, como mostra Williams, para romper com o sentimento de classe do grupo. Um persistente e nítido senso de fronteira entre as classes convivia com um sentimento muito forte de simpatia pelas classes baixas, vistas antes de tudo como vítimas do sistema.” Apud Heloísa Pontes In:
http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_34/rbcs34_04.htm N. de T.
(3) Consta que a Condessa Matilde de Canossa pediu ao Papa para readmitir o Rei Henrique IX, que havia sido excomungado por ter negado a confissão católica. Em função de sua relação com o papa, a Condessa conseguiu realizar seu desejo. O trajeto que Henrique IX percorreu em direção ao Papa, para pedir perdão, ficou conhecido como Caminho de Canossa. N. de T. para pedir perdão, ficou conhecido como Caminho de Canossa. N. de T.
(4) Lei de Say: Relação econômica que exprime a teoria macroeconômica da Economia clássica e que Batiste Say defendeu em 1803, segundo a qual a oferta cria a sua própria procura. Segundo Say, como o poder de compra era igual ao rendimento e produção totais, era impossível existir excesso de procura ou de oferta. De uma forma simples afirmava-se que uma unidade monetária adicional de rendimentos era totalmente gasta (a propensão marginal a consumir era de 1).
Sustenta que os preços e os salários eliminam qualquer excesso de oferta e de procura e restabelecem o pleno emprego. Keynes criticou essa teoria, com base no fato de que a economia pode experimentar longos períodos de desemprego, decorrentes da ausência de mecanismos corretores clássicos (preços e salários). Seriam as políticas fiscais e monetárias que conduziriam ao pleno emprego, estimulando a economia nas depressões ou combatendo a inflação. In:
http://www.esfgabinete.com/dicionario/?completo=1&conceito=LEI_DE_SAY N. de T.
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