Desenvolvimento? Para onde? Para quê? Para quem?
Modelo que vigora no mundo globalizado expõe sistema produtivo predador, ignora direitos e gera exclusão
Regimes de trabalho com foco apenas na produção, sem considerar o trabalhador e as demandas sociais; populações que são deslocadas ou atropeladas por conta de grandes empreendimentos; mau planejamento das cidades e as catástrofes urbanas daí decorrentes; a produção voltada cada vez menos a atender necessidades e cada vez mais a gerar mais riqueza; alimentos e até mesmo pessoas tomados como commodities. São marcas do modelo de desenvolvimento hoje em vigor no mundo globalizado, um modelo que autoriza a exploração do ser humano e a busca por se dominar a natureza, ainda que daí resulte exclusão, pobreza, desigualdade e um futuro incerto para as próximas gerações. Vislumbrar essas consequências, no entanto, não tem sido suficiente para frear essa trajetória, o que tem levado pesquisadores, cientistas sociais, gestores e detentores de cargos políticos a levantar as questões: para onde caminha o desenvolvimento? Para quê? Para quem?
Esse mundo pautado pela ideologia do capital, movimenta-se pela concorrência entre as grandes corporações, como aponta o sociólogo Ricardo Antunes, professor titular de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. “As corporações não se contentam mais com os nichos nacionais. Querem amplitude global e, para isso, reduzem direitos e salários e amplificam intensidade e ritmo do trabalho”, analisa, dando clara pista para as respostas às questões que abrem esta reportagem.
Competição global
Foto: Cícero R. C. Omena/flickr |
A vida humana como extensão ilimitada da produção e do consumo : ideologia do crescimento em cenário de competição global |
Antunes explica que, no cenário de competição global, as empresas não somente se apropriam da dimensão manual do trabalho, como ocorria no taylorismo e no fordismo, como do seu caráter intelectual. No livro O caracol e sua concha — ensaios sobre a nova morfologia do trabalho, entre tantos que escreveu sobre o tema, ele diz que o trabalho assumiu uma forma completamente diferente daquela de 40 ou 50 anos atrás. Sua tese é que hoje o mundo do trabalho oscila entre as dimensões perene e supérflua. “Perene, na medida em que uma parcela da população consegue se manter no mercado de trabalho, cumprindo jornadas cada vez maiores e realizando múltiplas atividades. E, supérfluo, dado que cada vez mais pessoas vivem a condição do desemprego estrutural, em que a vaga do trabalhador foi substituída por máquinas ou processos produtivos mais modernos, ou foram empurradas para a informalidade e a precariedade”, escreve.
Antunes aponta um “padrão chinês” de produção, sintonizado com a ideologia do capital, que vigora na China e que vem sendo exportado para o mundo. “Esse padrão se caracteriza por baixíssima remuneração da força de trabalho, alta intensificação da sua exploração e, se possível, pela exigência de qualidade da mão de obra”, observa. “Não pode haver desastre maior do que uma sociedade que viveu uma revolução socialista ser hoje modelo de exploração do trabalho”.
Hipertrofia do mundo privado
AA ampliação das empresas, o processo de criação dos monopólios e a conversão dos monopólios em organizações transnacionais caracterizam uma hipertrofia do mundo privado, em detrimento do público, aponta Antunes. “As instituições públicas deveriam ter como princípio o atendimento das necessidades públicas, coletivas e sociais. São públicas aquelas instituições que não podem ter a parcialidade restritiva do mercado”, entende. Ele atenta que, dos anos 70 para cá, a instituição pública foi contaminada pela privada. “Não há sociedade capitalista hoje em dia onde as transnacionais não tenham o controle de setores fundamentais do Estado e mantenham-no sob sua condução”, observa. “É imperioso que tenhamos clara percepção de que as instituições privadas são a parte decisiva desse mundo destrutivo e que, em contrapartida, é preciso resgatar o sentido público das instituições”.
Modelo predatório
Foto: Arquivo Pessoal |
Raquel: exploração do trabalho humano e riquezas naturais como ‘commodities’ |
A ideologia do crescimento pelo crescimento, em si, é estruturada a partir do pressuposto de que a vida humana é uma extensão ilimitada da produção e do consumo, observa a pesquisadora Raquel Rigotto, professora do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC) e integrante da Rede Brasileira de Justiça Ambiental. Essa visão, que vem se conformando ao longo dos séculos, se viabiliza através da exploração do trabalho humano e da dominação da natureza, e se manifesta no modelo de desenvolvimento que pauta o país e o mundo, hoje. Segundo ela, é um modelo que se caracteriza pela ocupação de territórios com a produção de commodities, incluindo-se riquezas naturais como a terra, a água e a biodiversidade, tendo-se, ainda, a força de trabalho, tratada hoje “como um exército de reserva, sedento pelo que se chama de emprego e não trabalho”, alerta.
O “modelo predatório de desenvolvimento”, como identifica o filósofo e teólogo Roberto Malvezzi, Agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), é histórico e data da chegada dos portugueses ao Brasil. “Começou com o primeiro pau-brasil e parece não ter fim até a última castanheira da Amazônia”, observa ele, identificando como características deste “pecado original” o retorno da exportação de produtos primários, particularmente os agrícolas, e um avanço da economia em busca de novas áreas para a produção, mesmo que sejam florestas ou as chamadas áreas frágeis, como encostas, solos mais pobres e matas ciliares. “As alterações no Código Florestal são a prova dos nove dessa economia”, diz Roberto (ver box na pág. 14).
‘Implicações problemáticas’
Entre o pós-guerra e a ditadura militar se concentrariam sementes de um nacional-desenvolvimentismo, que privilegia o crescimento econômico por meio do fortalecimento da economia nacional e do mercado interno como elementos de geração de renda e emprego, que teria como embasamento teórico as ideias do economista Celso Furtado e de um conjunto de pesquisadores da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), na análise do jornalista Edemilson Paraná, militante do grupo Brasil e Desenvolvimento. Ele localiza “implicações políticas e sociais problemáticas” no fato de o Brasil ainda ser dependente da produção e exportação de commodities como minério de ferro, carne bovina e soja. “É a produção e exportação desses produtos primários que, infelizmente, tem ancorado o crescimento econômico brasileiro”, diz.
Foto: Marissaorton/Flickr |
A expansão da fruticultura no Ceará, a partir dos anos 2000, exemplo trazido por Raquel Rigotto, ilustra as consequências dessa via de desenvolvimento. Ela observa que as empresas transnacionais se estabeleceram no estado cearense praticando a monocultura de frutas para exportação, um modelo gerador de “um grupo de patologias relacionadas à segurança alimentar, resultado da falta de acesso da população à terra, água, alimentos e biodiversidade”. Identificam-se no rol de agravos a mortalidade infantil, as mudanças no perfil nutricional da população e a ocorrência de doenças infectocontagiosas. Além de problemas associados, como a interferência no desempenho escolar das crianças.
Outro grupo de doenças diz respeito ao risco tecnológico. A mecanização do cultivo, sem treinamento e proteção, por exemplo, aumenta o número de acidentes de trabalho, enquanto o foco na intensificação do ritmo de trabalho concorre para o aumento de problemas ósteomusculares. Os trabalhadores da região pesquisada por Raquel, no Ceará, apontam, ainda, o uso indiscriminado de fertilizantes químicos e agrotóxicos, responsáveis por intoxicações agudas, ainda mal identificadas pelo SUS — “os profissionais ou não são preparados para o diagnóstico ou têm compromisso com as grandes empresas”. Ela adverte para os efeitos crônicos do uso destas substâncias, mais raramente percebidos, como os distúrbios endócrinos, infertilidade e câncer.
Os processos de deslocamento compulsório por conta de empreendimentos que têm como foco a produção, não as demandas sociais, gerando a migração para outros espaços e instalação em regiões periféricas das cidades, também trazem problemas urbanos, como uso de drogas, contato com diversos tipos de violência, riscos de gravidez precoce e das doenças sexualmente transmissíveis. Somem-se aí os sofrimentos psíquicos.
Ambiente e saúde
Os problemas detectados na região do Semiárido são exemplos expressivos dos frutos que se colhem quando produção e consumo são postos em primeiro lugar. Roberto Malvezzi aponta os altos índices de câncer em algumas comunidades na borda do lago da Usina Hidrelétrica de Sobradinho, em Juazeiro (BA). “Quando o lago vaza, as comunidades entram plantando cebola e usando agrotóxicos nos solos de vazante. Quando o lago volta a encher, as comunidades utilizam aquela água até para beber”, conta ele. “Não seria difícil fazer uma pesquisa e estabelecer a relação entre a água contaminada e os índices de câncer”.
Foto: Márcio Cabral de Moura/ Flickr |
Para Roberto, os problemas ambientais relacionados à saúde se tornaram mais graves onde chegou a irrigação, como no dipolo Juazeiro (BA)-Petrolina (PE), na região do Rio São Francisco. “O índice de câncer se agravou. Já houve tentativas de fazer pesquisas, estabelecer o nexo causal, responsabilizar e punir os responsáveis. Mas a pesquisa não avançou”.
Outro problema que cita é o acesso à água potável. “As cisternas têm diminuído a veiculação de doenças por água, avanço testemunhado por agentes da saúde. Mas elas ainda são poucas para as necessidades da região. O desafio da água para o meio rural e urbano ainda é grande”. Ele lembra que o governo tem feito promessas com o programa Água para Todos, mas é preciso aguardar sua implementação.
Informalidade
O foco na produção e no consumo alija pessoas e gera mais um fenômeno — o da informalidade. “Para se produzir mais é preciso cada vez menos força de trabalho”, explica a assistente social Eliana Guerra, professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e coordenadora regional da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social (Abeps). “Como as pessoas precisam sobreviver, recorrem à informalidade”. Empurrada do campo para as grandes cidades devido ao avanço das forças produtivas, essa população passa a viver em habitações precárias e é obrigada a aceitar qualquer ocupação, analisa Eliana. A pesquisadora indica o trabalho informal como subproduto do modelo de desenvolvimento, “uma estratégia de que o próprio capital lança mão para diminuir custos e aumentar sua circulação”. O resultado disso é a precarização das condições de trabalho e a restrição de direitos.
Foto: Arquivo Pessoal |
Reginaldo: improviso nas obras em andamento, “como se o Estado fosse atropelado” |
“O padrão de desenvolvimento tem intensificado o adoecimento”, diz Eliana. Ela lembra que, além das doenças ocupacionais e dos acidentes, há também um incremento das doenças psíquicas (ver Radis 107, O SUS para o mundo) — resultado da pressão por cumprir rotinas e metas estipuladas e de um empobrecimento da sociabilidade. “O centro deste padrão não é a necessidade humana, mas gerar produto e lucro”, observa.
O médico e sanitarista Pedro Reginaldo Prata, professor do Departamento de Saúde Coletiva do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal da Bahia (ISC/UFBa), atenta para a falta de uma política de ordenamento urbano. Não se investe em saneamento — favorecendo a proliferação de doenças como a dengue — nem no uso do transporte público — o que implica aumento da poluição atmosférica e doenças respiratórias. “A poluição nas grandes cidades é essencialmente dos transportes”, adverte.
Estado atropelado
Ele alerta para o que classifica como “vulnerabilidade urbana”: desastres ambientais frequentes e situações climáticas adversas, ocupação desordenada do solo e solicitação cada vez maior de equipes de socorro. “As cidades têm que se planejar”, advoga.
A interferência nas áreas urbanas também em detrimento das pessoas vem se expressando, hoje, na preparação das cidades brasileiras para o Brasil receber dois importantes eventos esportivos internacionais — a Copa do Mundo, em 2014, e os Jogos Olímpicos, em 2016. Famílias e comunidades são removidas para construção ou ampliação de equipamentos esportivos ou estruturas relacionadas aos eventos. Pesquisadores já denunciam processo demaquiagem das cidades (Radis 107), com o intuito de melhor lucrar com os visitantes. Pedro Reginaldo se diz temeroso em relação a esses eventos, já que identifica tendência ao improviso nas obras em andamento. “É como se o Estado fosse atropelado”, diz ele, lembrando que o ideal seria se o Brasil conseguisse aproveitar a oportunidade para recuperar áreas degradadas e gerar qualidade de vida. “Seria uma boa oportunidade para ampliar os transportes públicos”, defende.
Eliana Guerra chama atenção para a movimentação de fóruns e comitês da sociedade civil para questionar medidas e decisões de planejamento urbano. Ela alerta para a delicadeza da situação, que faz com que parte da população mais carente se sinta atraída pelas obras, considerando que pode tirar proveito dos empregos precários que os eventos gerarão e da possibilidade de vender produtos nas ruas. Postos de trabalho que não trarão grandes mudanças na vida dessas pessoas, pondera.
Ao lado das remoções, há também o encarecimento do solo urbano — que deve gerar aumento de impostos e consequente aumento do custo de vida nas cidades. “Em nome do desenvolvimento, da criação de uma imagem de cidades modernas, a população será deslocada para cada vez mais longe, inclusive dos postos de trabalho”, antecipa.
Inclusão cidadã
Entender que desenvolvimento não se restringe a crescimento econômico é uma necessidade já bastante propalada. No entanto, pautar políticas e ações por esse entendimento ainda pouco ocorre na prática. “Para nós, pensar desenvolvimento é pensar modelos de inclusão cidadã, de empoderamento popular”, diz Edemilson Paraná, propondo um debate com toda a sociedade, com propostas que estejam assentadas na democracia, na liberdade e na ética. “Produção sustentável significa relações de trabalho justas, igualdade de condições e oportunidades, educação, saúde, novas maneiras de organizar o trabalho e a produção através de relações cooperativas, solidárias”.
Mudanças profundas na relação homem-natureza devem ser implementadas para se pôr em prática pelo menos um consenso, na análise de Roberto Malvezzi: “Sem estabelecer uma relação de respeito para com a natureza, todos estarão condenados ao fracasso”.
Papel da educação
Foto: Antonino Perri/unicamp |
Antunes: transnacionais com controle de setores fundamentais do Estado |
Para Ricardo Antunes, um projeto transformador impõe desafios. Nesse sentido, ele reconhece ser necessário romper com um desenho de formação para o mercado. “O papel da educação não pode estar voltado para a formação de incubadoras de monstros unilateralizados”, observa, lembrando-se de artigo do cientista político Antonio Gramsci sobre o papel das escolas. Em sua análise, a educação deve ser livre, humana e universal. “Sabemos que isso é muito difícil, pois sendo uma instituição controlada pelo Estado e, ao mesmo tempo, parte dessa sociedade, a escola é pressionada a adotar os valores desse mercado dominante”, avalia. No entanto, considera o sociólogo, uma formação pautada pela razão humano-social e emancipatória, em que escolas e instituições públicas não são puro prolongamento do mercado, pode levar, por exemplo, ao desenvolvimento da pesquisa científica pública, crítica e digna.
Reportagem de Adriano de Lavor e Katia Machado, na revista Radis nº 108 – Agosto de 2011
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