Mais uma vez, sua excelência, o superávit primário
Os órgãos da grande imprensa não perdem a oportunidade de mostrar o seu
inconformismo com qualquer escapada da receita conservadora, tão exigida pelo
setor financeiro. Bastou o anúncio do ministro Mantega sobre o desempenho do
superávit primário 2012 para que as trombetas começassem a soar.
Paulo Kliass
Bastou o anúncio do Ministro Mantega a respeito do
desempenho do superávit primário para 2012, para que fosse disparado o já
conhecido festival de ataques por parte do financismo e dos representantes da
ortodoxia. Os órgãos da grande imprensa não perdem jamais a oportunidade de
mostrar o seu inconformismo com qualquer escapada da receita conservadora, tão
exigida pela grande banca. Na verdade, o responsável pela política econômica
apenas veio a público e fez o reconhecimento oficial daquilo que todos os que
acompanhamos a economia no dia-a-dia já estávamos cansados de saber.
Afinal, já vamos chegando a meados do mês de novembro e
realmente as informações disponíveis apontam que o governo não vai conseguir
cumprir a meta estabelecida lá atrás, ainda em 2011, de reservar 3,1% do PIB
para o superávit primário. Em valores monetários, isso corresponderia a um
esforço fiscal próximo a R$ 140 bilhões. Mas o que nos interessa refletir é a
respeito das razões que teriam levado o governo a se comprometer com tal meta e
quais as conseqüências para o País do não cumprimento de tal objetivo.
Plano Real e o tripé da política econômica
Os fundamentos da política econômica atual foram lançados em 1994, quando o Plano Real foi anunciado e a política de estabilização da inflação começou a apresentar resultados positivos. A partir daquele momento, veio a público e passou a ser incorporado no jargão do “economês” o famoso “tripé da política econômica”, uma trinca de fatores que foi alçada à condição de sacro-santidade imexível. Assim, passamos a conviver de forma institucional com as seguintes regras: i) definição de metas para a inflação; ii) liberdade cambial e política de câmbio flutuante; iii) definição de metas de superávit primário.
Os fundamentos da política econômica atual foram lançados em 1994, quando o Plano Real foi anunciado e a política de estabilização da inflação começou a apresentar resultados positivos. A partir daquele momento, veio a público e passou a ser incorporado no jargão do “economês” o famoso “tripé da política econômica”, uma trinca de fatores que foi alçada à condição de sacro-santidade imexível. Assim, passamos a conviver de forma institucional com as seguintes regras: i) definição de metas para a inflação; ii) liberdade cambial e política de câmbio flutuante; iii) definição de metas de superávit primário.
A definição de metas para a inflação foi acompanhada de um
discurso e de uma prática de maior autonomia – na verdade, uma quase
independência – para a atuação do Banco Central, em especial na definição da
taxa oficial de juros, a SELIC. O governo teria uma meta de inflação anual a
ser perseguida, com uma margem de erro para cima e para baixo. A maioria das
pessoas pode até não saber, mas o BC já tem a meta definida para 2014 (!!): o centro é de 4,5%, com 2 pontos
percentuais, para cima e para baixo. O acompanhamento dessa performance era
realizado pelo Comitê de Política Monetária (COPOM), na verdade uma reunião
periódica da diretoria do Banco Central com esse fim exclusivo: definir a taxa
de juros. A base teórica para exercer o controle do crescimento dos preços era
a necessidade de conter a demanda, para evitar a inflação. E o principal
instrumento para tanto era elevar a taxa SELIC - arrocho monetário no
“economês” – para retirar recursos do consumo e direcioná-los para a poupança.
A adoção do regime de liberdade cambial se encaixava bem no
discurso neoliberal a favor das soluções de mercado para resolver as crises e
oferecer sempre a alternativa considerada mais “eficiente” para a sociedade. Em
contraposição à política de câmbio administrada pelo governo, a liberdade
cambial retirava toda e qualquer possibilidade de que esse setor essencial da
economia fosse utilizado como instrumento de política pública. A liberdade de
ir e vir para o capital especulativo internacional se somou à implementação de
uma monetária de taxas de juros estratosféricas por mais de uma década. Nossas
terras permaneceram por um longo período como as mais atrativas do planeta em
termos de rentabilidade financeira e a pressão permanente derivada do ingresso
de recursos externos provocou a valorização artificial de nossa moeda, o real.
As conseqüências perversas foram a farra dos importados e a perda de
competitividade das exportações de manufaturados brasileiros no exterior.
Para fechar o tripé, entrou então em cena, bem fortalecido,
o conceito inovador do superávit primário. Um verdadeiro golpe de mestre
engendrado pelos representantes do financismo na esfera internacional.
Essa inovação foi concebida no seio dos organismos
multilaterais e implementada pelos cinco continentes afora, com a pressão e o
aval de FMI, Banco Mundial i
tutti quanti. É sabido que um dos postulados básicos do pensamento liberal
refere-se à redução do tamanho do Estado à sua dimensão mínima. Além disso,
soma-se a preocupação quase obsessiva com o desempenho das contas públicas,
exigindo mais do que um sistema em equilíbrio: propõe-se o superávit das
receitas sobre as despesas. Em tese, nada tão anormal assim – afinal, uma boa
gestão fiscal não faz mal a ninguém e se o Estado consegue esse saldo positivo,
pode até utilizar esses recursos excedentes para mais investimentos e coisa e
tal.
Superávit primário: o pulo do gato
Mas o pulo do gato reside justamente no adjetivo que esconde a essência da medida: “primário”. Essa forma especial de contabilizar o superávit das contas públicas faz uma divisão malandra nas despesas realizadas pelo Estado. Isso significa que as despesas financeiras, com juros e com pagamento de serviços da dívida pública, não devem ser contabilizadas como despesas ordinárias. Por mais esquisito que possa parecer, é exatamente isso que se passou a fazer na contabilidade pública a partir de então. Assim, o setor público é chamado a fazer um grande esforço fiscal de corte de despesas orçamentárias (saúde, educação, saneamento, pessoal, previdência social e outras), com o objetivo de gerar o tal superávit primário. E todo o saldo desse resultado é dirigido automaticamente para o pagamento das despesas financeiras! Ou seja, os cortes acontecem nas despesas não-financeiras para assegurar que as despesas que beneficiam apenas o setor menos produtivo da sociedade sejam efetuadas sem nenhum risco.
Mas o pulo do gato reside justamente no adjetivo que esconde a essência da medida: “primário”. Essa forma especial de contabilizar o superávit das contas públicas faz uma divisão malandra nas despesas realizadas pelo Estado. Isso significa que as despesas financeiras, com juros e com pagamento de serviços da dívida pública, não devem ser contabilizadas como despesas ordinárias. Por mais esquisito que possa parecer, é exatamente isso que se passou a fazer na contabilidade pública a partir de então. Assim, o setor público é chamado a fazer um grande esforço fiscal de corte de despesas orçamentárias (saúde, educação, saneamento, pessoal, previdência social e outras), com o objetivo de gerar o tal superávit primário. E todo o saldo desse resultado é dirigido automaticamente para o pagamento das despesas financeiras! Ou seja, os cortes acontecem nas despesas não-financeiras para assegurar que as despesas que beneficiam apenas o setor menos produtivo da sociedade sejam efetuadas sem nenhum risco.
Esse modelo absurdo sobreviveu durante muito tempo, apesar
das constantes críticas à sua injustiça social implícita e ao benefício
exclusivo para o setor rentista e parasita das economias capitalistas. No caso
brasileiro, apenas com o rescaldo da crise a partir de 2008 é que alguns
pilares do pensamento hegemônico conservador foram sendo relativizados.
Um deles refere-se à flexibilização da rigidez dos cálculos
do superávit primário. A partir de então, os investimentos das empresas
estatais, por exemplo, deixaram de ser contabilizadas como “despesa simples” e
retiradas da equação. E com toda a razão, pois gastos com investimento têm
efeitos duradouros a longo prazo e não podem ser tratados como qualquer despesa
corrente, a exemplo das compras de material de consumo.
Mas, na essência, a idéia de sacrificar os gastos
não-financeiros para não comprometer as despesas com juros permaneceu intocada
por esse tempo todo. Basta lembrar que todos os anos o Orçamento Geral da União
reserva parte expressiva das receitas para essa finalidade. Em 2012, por
exemplo, estão previstos 40% do total orçamentário para pagamento de juros,
serviços e rolagem de dívida pública. Uma loucura!
A novidade mais recente que fez elevar a temperatura e os
humores nos meios do financismo é o reconhecimento explícito de que nem mesmo a
meta oficial vai poder ser cumprida esse ano. Enquanto a maioria do País
respira aliviada com a notícia, os representantes do sistema financeiro abrem a
sua bateria de ataque contra a “falta de controle da gestão fiscal”, a
“gastança irresponsável” e outras pérolas que permeiam as páginas e as telas
dos grandes meios de comunicação. Mas vale observar que tal situação não
decorre de nenhuma mudança de postura do governo ou alguma intenção de
priorizar as despesas reais em relação às financeiras. Não, nada disso!
Trata-se apenas da constatação resignada de que esse ano não vai ser possível.
A redução do superávit primário é solução e não problema
O fato é que a conjuntura econômica está levando a que a meta de 3,1% do PIB não seja mais factível. Há um conjunto de fatores que contribui para tanto. Em primeiro lugar, a redução da taxa oficial de juros ao longo dos últimos meses tem provocado uma redução do volume de juros a ser gasto com a dívida pública. Em segundo lugar, a previsão de crescimento da economia feita lá atrás (4,5% ao ano) tampouco vai se concretizar – com isso as receitas tributárias também vão diminuir, o que é normal e compreensível. Em terceiro lugar, as políticas anticíclicas adotadas pelo governo têm incluído de forma sistemática a isenção de impostos e a concessão de outros benefícios fiscais e tributários. Finalmente, o Estado tem sido chamado a tomar a iniciativa em um conjunto amplo de novos investimentos, o que significa também um aumento de gastos públicos essenciais.
O fato é que a conjuntura econômica está levando a que a meta de 3,1% do PIB não seja mais factível. Há um conjunto de fatores que contribui para tanto. Em primeiro lugar, a redução da taxa oficial de juros ao longo dos últimos meses tem provocado uma redução do volume de juros a ser gasto com a dívida pública. Em segundo lugar, a previsão de crescimento da economia feita lá atrás (4,5% ao ano) tampouco vai se concretizar – com isso as receitas tributárias também vão diminuir, o que é normal e compreensível. Em terceiro lugar, as políticas anticíclicas adotadas pelo governo têm incluído de forma sistemática a isenção de impostos e a concessão de outros benefícios fiscais e tributários. Finalmente, o Estado tem sido chamado a tomar a iniciativa em um conjunto amplo de novos investimentos, o que significa também um aumento de gastos públicos essenciais.
Ora, face a essa nova forma de organização de fatores, não
haveria mesmo como a conta fechar com aquele superávit primário exagerado.
Melhor dizendo, não haveria razão para que 3,1% do PIB fossem mais uma vez
dirigidos para pagamento de serviços financeiros da dívida pública.
Com as receitas caindo e as despesas não financeiras
aumentando, não há meio de manter o superávit tal como imaginado. Na verdade,
essa chiadeira toda do financismo reflete o desconforto de um setor que sempre
viveu às custas de uma drenagem assegurada dos recursos orçamentários para o
caixa de suas empresas. Mais do que não cumprir a meta para 2012, o governo
deveria tomar a iniciativa de ampliar o debate na sociedade e reintroduzir a
isonomia no tratamento do gasto orçamentário.
Com isso, a despesa de natureza meramente financeira
deixaria de ter esse atendimento especial, um verdadeiro tratamento VIP.
Afinal, por que os cortes sempre são feitos nas áreas sociais e não nos gastos
com juros?
Qual a razão para que itens como salário mínimo, pensões,
aposentadorias, saúde, educação e reforma agrária sejam sempre objeto de redução, ao passo que as verbas do mesmo orçamento destinadas ao rentismo parasitário sejam mantidas sem questionamento?
aposentadorias, saúde, educação e reforma agrária sejam sempre objeto de redução, ao passo que as verbas do mesmo orçamento destinadas ao rentismo parasitário sejam mantidas sem questionamento?
A busca de um modelo de desenvolvimento social e econômico,
com a necessária preocupação de sustentabilidade, deve passar por esse debate.
Redefinir o esforço que o conjunto da sociedade realiza para assegurar recursos
a uma parcela reduzida de sua elite é uma urgência. Assim talvez o superávit
primário deixaria de ser reverenciado como Vossa Excelência e passaria à
condição de todos nós, simples e honrados cidadãos da República.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas
e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela
Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta Maior | Colunistas | Debate aberto,
08/11/2012.
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