Portos: mais privatização na infra-estrutura
Mais de 90% do volume das trocas comerciais entram e saem
de nosso País por portos. A demanda pela utilização das estruturas do complexo
portuário em todo o território nacional tem aumentado. E a diretriz geral do
pacote que está por ser anunciado pelo governo aponta para a continuidade da
privatização do sistema portuário.
Paulo
Kliass
O anúncio oficial do pacote dos portos foi novamente adiado, em razão de
algumas divergências entre os diferentes órgãos do governo federal envolvidos
na elaboração do projeto. Mas a diretriz geral aponta na direção da
continuidade da privatização de nosso sistema portuário. Enfim, tenho a certeza
de que, mais uma vez, vai começar todo aquele debate a respeito das diferenças
entre “privatização” e “concessão”. É compreensível. Afinal, os que tentam
desesperadamente defender o indefensável precisam elaborar melhor seus
argumentos e refinar ainda mais sua capacidade retórica. O fato é que conceder
a exploração econômica de uma atividade pública ao setor privado é apenas uma
das inúmeras formas de se promover a privatização. A venda de uma empresa
estatal ao empreendedor capitalista é, com certeza, a modalidade mais carregada
de simbolismo. Mas não é a única.
De qualquer maneira, o fato é que o
governo da Presidenta Dilma está prestes a concluir a metade de seu mandato e
mais uma vez reforça a opção de oferecer ao capital privado a responsabilidade
pela gestão e o privilégio de auferir os lucros de um setor estratégico de
nossa economia. Muito já se falou a respeito das razões que a teriam levado a
trilhar esse caminho. Apesar de todas as indagações a respeito, o fato é que o
argumento mais utilizado pelos defensores envergonhados da privatização - a
suposta falta de recursos do Estado - não se sustenta.
Tanto é que todas as operações de
concessão realizadas até o momento foram acompanhadas de generosas benesses,
como as vultosas somas de recursos financeiros do BNDES e do Tesouro Nacional
para auxiliar os grupos privados.
Ora, se o dinheiro existe e está sendo
oferecido a custo praticamente zero para os novos empreendedores, a única
explicação que sobra é a surrada estória da suposta superioridade da eficiência
privada em comparação à ação estatal. Não há dúvida de que a gestão pública em
nossas terras precisa (e muito) ser aperfeiçoada e que alguns bons passos têm
sido dados nessa direção ao longo dos últimos anos. Porém, o mito da superior
capacidade do setor privado em oferecer serviços de melhor de qualidade e menor
custo ainda está longe de se demonstrar como fato inquestionável em nossa
realidade. Basta ver o que ocorre com os planos privados de saúde, com a
qualidade das empresas vendedoras de diploma de ensino superior, com as tarifas
e serviços nas áreas de eletricidade, telecomunicações e saneamento, entre
tantos outros. Assim, a opção de Dilma é de natureza eminentemente ideológica:
a crença equivocada de que o agente privado sempre faz melhor do que o setor
público.
Os conhecidos gargalos de
infra-estrutura estão clamando por soluções urgentes há muitos anos. Não apenas
os remendos emergenciais não são feitos, como também as proposições
estratégicas vêm sendo adiadas eternamente. E então a dinâmica das decisões
governamentais acaba sendo determinada por algum apagão aqui, um
congestionamento ali, um atraso no cronograma de exportações acolá, uma ameaça
de caos aéreo logo ali na frente. E como não há um plano estratégico e
consolidado a respeito de como enfrentar a questão da infra-estrutura de forma
ampla, as decisões acabam sendo apresentadas no caso a caso, no setor a setor,
sempre estranguladas por alguma pressão de crise conjuntural localizada.
Assim foram sendo anunciados os planos de privatização - por meio de concessão por décadas ao capital privado - das rodovias, depois das ferrovias, em seguida os aeroportos. E agora, mais recentemente, o complexo portuário avança na fila.
Além disso, é importante não esquecer que já operam em regime de concessão e exploração pelo setor privado outras áreas estratégicas – de natureza de serviço público - para o funcionamento de nossa sociedade. É o caso da geração de energia elétrica, o sistema de telefonia, as telecomunicações de forma ampla, a terceirização da saúde por meio dos convênios com as organizações sociais, a operação de banda larga de internet, a complementação dos sistemas previdenciários via fundos de pensão e planos de seguros de previdência privada. Enfim, cada vez a sociedade se vê enredada nas teias da mercantilização generalizada de serviços que deveriam ser oferecidos pelo próprio Estado.
O Brasil tem mais de8.000
km de costas navegáveis, com potencial de serem
utilizadas como espaço de trocas comerciais com o resto do mundo por meio
marítimo. O potencial de vocação ultramarina remonta há séculos, desde a
chegada de nossos colonizadores em 1500. Ao longo das últimas décadas, o
comércio exterior passou a ganhar relevância em nossa grade de atividade
econômica. Os números relativos à corrente de comércio (somatório de
exportações e importações) são bastante expressivos. Em 1991 o valor total era
de US$ 53 bilhões, saltando para US$ 113 bi em 2011 e atingindo a cifra de US$
482 no ano passado. Isso significa que, a partir do aprofundamento da abertura
comercial iniciada com Collor em 1990, a troca comercial dobra de valor na
primeira década e depois quadruplica nos 10 anos seguintes. Ou seja, em 2
décadas o valor se vê multiplicado por 8.
No caso específico brasileiro, corrente de comércio exterior significa exportações e importações utilizando prioritariamente o transporte marítimo como instrumento de logística. Mais de 90% do volume das referidas trocas comerciais entram e saem de nosso País por portos. Assim, percebe-se como tem aumentado a demanda pela utilização das estruturas do complexo portuário em todo o território nacional. Quando se fala em bilhões de dólares, na verdade as operações se concretizam, fisicamente, em várias centenas de milhões de toneladas de mercadorias. As expectativas para 2012 é que a movimentação total de cargas nos portos se aproxime da marca simbólica de 1 bilhão de toneladas. Tal fato é ainda mais compreensível em razão da natureza primário-exportadora de nosso modelo econômico. Exportar “commodities”, como soja e minério de ferro, implica alta tonelagem e elevado volume, com baixo valor monetário. Basta compararmos o valor agregado diferenciado entre a exportação de uma tonelada de minério e a importação, por exemplo, de uma tonelada de computadores ou celulares. E dá-lhe desindustrialização!
Quase a metade de nossas capitais de estados são cidades com portos marítimos, além dos casos de Santosem
São Paulo e de Paranaguá no Paraná, que se destacam entre os
portos de maior movimentação do País, ainda que as capitais de tais unidades da
federação estejam mais no interior. Nossa estrutura portuária conta com 37
portos públicos e 42 terminais de uso privativo (TUPs). Esse sistema é
consolidado em 7 Companhias de Docas, distribuídas regionalmente por todo a
território nacional. Como a holding federal do setor, a Portobrás, havia sido
extinta em 1990, logo no início do governo Collor, o setor passou por um
período grave de indefinição, que só voltou a ser minimamente restabelecido,
por meio da Lei n° 8630 de 1993 – conhecida como Lei dos Portos.
Assim foram sendo anunciados os planos de privatização - por meio de concessão por décadas ao capital privado - das rodovias, depois das ferrovias, em seguida os aeroportos. E agora, mais recentemente, o complexo portuário avança na fila.
Além disso, é importante não esquecer que já operam em regime de concessão e exploração pelo setor privado outras áreas estratégicas – de natureza de serviço público - para o funcionamento de nossa sociedade. É o caso da geração de energia elétrica, o sistema de telefonia, as telecomunicações de forma ampla, a terceirização da saúde por meio dos convênios com as organizações sociais, a operação de banda larga de internet, a complementação dos sistemas previdenciários via fundos de pensão e planos de seguros de previdência privada. Enfim, cada vez a sociedade se vê enredada nas teias da mercantilização generalizada de serviços que deveriam ser oferecidos pelo próprio Estado.
O Brasil tem mais de
No caso específico brasileiro, corrente de comércio exterior significa exportações e importações utilizando prioritariamente o transporte marítimo como instrumento de logística. Mais de 90% do volume das referidas trocas comerciais entram e saem de nosso País por portos. Assim, percebe-se como tem aumentado a demanda pela utilização das estruturas do complexo portuário em todo o território nacional. Quando se fala em bilhões de dólares, na verdade as operações se concretizam, fisicamente, em várias centenas de milhões de toneladas de mercadorias. As expectativas para 2012 é que a movimentação total de cargas nos portos se aproxime da marca simbólica de 1 bilhão de toneladas. Tal fato é ainda mais compreensível em razão da natureza primário-exportadora de nosso modelo econômico. Exportar “commodities”, como soja e minério de ferro, implica alta tonelagem e elevado volume, com baixo valor monetário. Basta compararmos o valor agregado diferenciado entre a exportação de uma tonelada de minério e a importação, por exemplo, de uma tonelada de computadores ou celulares. E dá-lhe desindustrialização!
Quase a metade de nossas capitais de estados são cidades com portos marítimos, além dos casos de Santos
Atualmente, o modelo não é nem
totalmente público, nem totalmente privado. As chamadas Autoridades Portuárias
contam com um grau razoável de autonomia na gestão dos portos e são dominadas
pelos setores interessados na sua própria exploração comercial. Na prática,
trata-se de mais um fenômeno de apropriação privada do espaço público para
usufruto de interesses econômicos, sem que o Estado consiga fazer valer sua
função de regulamentação e de preservação do interesse público e nacional na
gestão das atividades portuárias.
Frente a esse quadro, nem a Agência
Nacional de Transportes Aquaviários (ANTAQ) nem a Secretaria Especial de Portos
(vinculada à Presidência da República) conseguem imprimir sua condição de
órgãos reguladores do sistema. A maior parte das cargas transita pelos TUPs, em
especial os da Petrobrás e da Cia Vale – na verdade, eles respondem por 2/3 da
tonelagem total envolvida no comércio exterior. Por ali escoam as exportações
em granel sólido (produtos agrícolas e minerais in natura) e em granel líquido
(em especial o petróleo). O outro terço circula pelos chamados “portos
organizados”, que se caracterizam por sua natureza pública de concessão para
exploração privada. Como a composição das exportações é bem distinta das
importações, ocorre que a tonelagem das primeiras respondem também por 2/3 do
total de volume de comércio, ao passo que as importações representam apenas 1/3
da corrente comercial. É o impacto sobre a dinâmica portuária de sermos
exportadores de bens agrícolas e minerais, enquanto importamos bens
manufaturados.
Como se pode perceber, trata-se de um
setor que apresenta alta complexidade operacional, logística, comercial e
financeira. Adicione-se a isso a exigência da presença de órgãos estatais em de
sistemas de controle de política sanitária, aduaneira e de segurança nacional
para reforçar a natureza pública do fenômeno. E finalmente a delicada
sistemática de determinação de tarifas e taxas de retorno para as operações.
Afinal, como determinar de forma, digamos, adequada o custo de embarcar um
contêiner em um cargueiro? Ora, esse caldo de cultura exige, parece evidente, a
firme presença regulamentadora e fiscalizadora do Estado.
Não fosse apenas por isso, a operação
portuária se caracteriza por aquilo que a literatura econômica chama de
monopólio natural. Não se trata de um simples mercado da batatinha, em que uma
multiplicidade de agentes de oferta pode operar como controlador de abuso de
mercado. Não gostou do preço e da qualidade da mercadoria? Dirija-se à barraca
ao lado e compre ali seu produto em melhores condições. No caso do porto, assim
como na eletricidade e no saneamento, não existe essa opção. Daí porque o
Estado é o agente natural provedor desse tipo de bem ou então um forte
regulador, com o objetivo de assegurar o equilíbrio e o bem estar coletivo.
Se adicionarmos, por fim, o ingrediente
atual da necessidade emergente do aporte de dezenas de bilhões de reais a
título de investimento para ampliação e modernização da estrutura portuária, aí
que não se escapa mesmo da presença estatal. A sociedade brasileira merece, é
claro, um sistema de portos ágil e eficiente - a tal fato parece não haver
objeção.
Isso significa rever sistemas e
processos que contribuem para que nossas tarifas sejam relativamente mais
elevadas do que muitos países desenvolvidos, sem a correspondente qualidade da
operação. Porém, é essencial escapar da ilusão simplista de que basta
transferir a gestão e conceder o direito de exploração comercial, a perder de
vista, para o setor privado para que tudo se dê às mil maravilhas.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas
e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela
Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta Maior | Colunistas | Debate Aberto, 14/11/2012.
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