O economista do Charlie Hebdo
Por Luiz Gonzaga Belluzzo.*
Bernard Maris estava na reunião do Charlie Hebdo quando os assassinos subjugaram e mataram os participantes. Maris participava intensamente do debate público na França. Em suas intervenções pela Rádio France Inter ou em seus livros e opúsculos, lançava irreverências e gargalhadas contra as cidadelas da economia dita científica. Assinava seus textos no Hebdo como Oncle Bernard.
Entre seus escritos mais deliciosamente venenosos estão oManual de Antieconomia em 2 volumes e a Carta Aberta aos Gurus da Economia Que nos Tomam por Imbecis. Economista do Charlie Hebdo, Maris apoiava suas irreverências e gargalhadas nos “fundamentos” do projeto Iluminista da liberdade e da igualdade. O leitor de CartaCapital, tenho certeza, leria com prazer o livro de Oncle Bernard, Keynes, O Economista Cidadão.
Em parceria com outro economista erudito, o canadense Gilles Dostaler, Maris escreveu Capitalismo e Pulsão de Morte (Capitalisme et Pulsion de Mort). Aí trata das influências recíprocas entre Freud e Keynes, pouco conhecidas e muito menos estudadas nos ambientes da sabedoria econômica com pretensões de hard science.
No famoso texto de 1939, “Minhas Primeiras Crenças”, Keynes rememorou a trajetória que conduziu à formulação dos motivos “psicológicos” que fundamentam a propensão a consumir e a preferência pela liquidez. Na verdade, não são fundamentos psicológicos, mas comportamento coletivos profundamente ancorados na investigação freudiana antipsicologista.
“A visão de que a natureza humana é racional tinha, em 1903, uma longa história por trás dela. Ela calçava a ética do autointeresse – autointeresse racional, como era chamado –, tanto quanto a ética universal de Kant ou Bentham que visava ao bem comum; …se supunha que os sistemas egoístas e altruístas conduziriam, na prática, às mesmas conclusões… Não era apenas que intelectualmente éramos pré-freudianos, mas nós tínhamos perdido algo que nossos antecessores tinham sem substituí-lo.”
Mais adiante, Keynes vai repetir Freud no Mal-estar na civilização: “Não estávamos conscientes de que a civilização era uma crosta fina e débil […] sustentada apenas por regras e convenções habilmente transmitidas e engenhosamente preservadas”.
Keynes caminhou das fantasias individualistas e racionalistas para os cruéis labirintos da história, da temporalidade, da “psicologia de massas” e das decisões tomadas em meio à incerteza radical.
Nas profundezas da alma do indivíduo capitalista pulsam os medos e os prazeres do amor ao dinheiro. “Embora esse sentimento em relação ao dinheiro também seja convencional e instintivo, ele atua, por assim dizer, no nível mais profundo de nossa motivação. Ele se enraíza nos momentos em que se enfraquecem as mais elevadas e as mais precárias convenções. A posse do dinheiro real tranquiliza a nossa inquietação; e o prêmio que exigimos para nos separar dele é a medida do grau de nossa inquietação.”
Publicado nos Essays in Persuasion em 1930, o artigo “As possibilidades econômicas de nossos netos”, fulmina: “A avareza é um vício, a usura uma contravenção, o amor ao dinheiro algo detestável. Valorizaremos novamente os fins acima dos meios e preferiremos o bem ao útil. Honraremos os que nos ensinam a passar bem e virtuosamente a hora e o dia, as pessoas agradáveis capazes de ter um prazer direto nas coisas, os lírios do campo que não mourejam nem fiam”.
Quando li pela primeira vez Capitalismo e pulsão de morte lembrei-me da reunião da Associação Nacional de Centros de Pós-Graduação em Economia (Anpec) de 1982. Convocado para avaliar um artigo “keynesiano” e erudito do professor Luiz Antônio de Oliveira Lima, da FGV São Paulo, o economista Edmar Bacha me perguntou: “Seu amigo estudou na França?” Eu poderia ter parafraseado o espanto de Keynes ao ler um relatório americano elaborado para Bretton Woods: “Certamente, o artigo não foi escrito em cherokee”.
Por essas e outras, Oncle Bernard ficou à margem dos nheco-nhecos e blá-blá-blás dos economista do establishment. Resistiu bravamente. Jamais abdicou do humor da Casa das Graças para frequentar os tédios da Casa das Garças. Atacava impiedosamente a dita “ciência econômica” povoada de modelos tolos e inúteis, danosos à compreensão do metabolismo capitalista. São concebidos para obscurecer e tapear, exemplos da utilidade do inútil.
O humor de Bernard é o avesso do cinismo, qualidade invocada pelo economista Luis Carlos Mendonça de Barros para justificar suas críticas à Unicamp, seu amor à poupança (ao dinheiro) e celebrar sua adesão aos “Diabos de Chicago”. Com essa profusão de maniqueísmos fanáticos, pode-se oferecer para mediar as relações entre os demônios do mercado e o Estado Islâmico.
* Publicado originalmente na revista Carta Capital, em 20/02/2015.
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Confira o especial Charlie Hebdo, no Blog da Boitempo, com reflexões, vídeos e artigos de Slavoj Žižek, Michael Löwy, João Alexandre Peschanski, Gilberto Maringoni, Osvaldo Coggiola, Tariq Ali, Ruy Braga, entre outros. Veja aqui.
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Luiz Gonzaga Belluzzo é professor de Economia da Unicamp. Atuou como consultor pessoal de economia do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Escreveu com Júlio Sérgio Gomes de Almeida, Depois da queda: a economia brasileira da dívida aos impasses do real (2002) e é autor da seção sobre política industrial no livro 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil: Lula e Dilma (2013), organizado por Emir Sader.
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