Basta de privatização!
O discurso que antes era ideológico, agora se traveste de realismo pragmático. Um absurdo carregado de elevada irresponsabilidade.
Paulo Kliass*
No período áureo do neoliberalismo, o
menu completo recomendado para as políticas públicas incluía um sem
número de medidas visando a redução da presença do Estado na economia e a
adoção de instrumentos ainda mais facilitadores da acumulação do
capital privado. Dentre elas, a privatização das empresas estatais
surgia como a menina dos olhos da galera do financismo. A transferência
do patrimônio público para o setor privado era justificada tão somente
pelos seus aspectos ideológicos. Afinal, Francis Fukuyama já havia
assegurado a todos o fim da História e as virtudes superiores das leis
do mercado eram consideradas inquestionáveis pela fina flor do
conservadorismo exultante.
Assim foi feito pelo mundo afora, desde a Inglaterra nos tristes tempos de Margaret Thatcher até o Brasil dos anos colloridos e de FHC. Em nome da suposta maior eficiência da gestão privada, os ativos públicos foram doados, vendidos, alienados, concedidos, entre tantas outras modalidades imaginativas de passar o bastão ao capital. O elemento simbólico máximo desse período eram as imagens dos leilões nas Bolsas de Valores, quando as autoridades governamentais - literalmente! - “batiam o martelo” e anunciavam a transferência da empresa tal para o novo proprietário qual. Em 1997, por exemplo, o controle acionário da Cia Vale do Rio Doce foi transferido ao consórcio privado vencedor da “disputa” por apenas R$3,3 bilhões, enquanto o valor da empresa era estimado em mais de R$ 90 bi. Chegou a ser avaliada em US$ 200 bi dólares em 2008. Um mui generoso presente, fraternalmente viabilizado sob a forma de alienação patrimonial.
A crise e as mudanças.
No entanto, a crise econômica internacional, desencadeada a partir de 2008, contribuiu para redefinir os parâmetros daquilo que seria considerado como aconselhável, em termos de política econômica, inclusive para uma parcela dos próprios integrantes do “establishment” do sistema financeiro em todos os continentes. A falência do modelo marcado pela generalização dos pressupostos liberais recolocava o debate em torno da importância do Estado em alguns aspectos da atividade econômica. A incapacidade das regras mercadistas como única referência para avaliar eventual eficiência de empresas privadas ou de políticas públicas tornou-se evidente, por exemplo, a partir da quebra de gigantes do setor financeiro norte-americano.
A existência escancarada de uma promiscuidade revelada nas articulações entre os diferentes agentes operantes no interior do sistema financeiro não resiste a uma observação minuciosa. O cansativo discurso em prol da “desregulamentação” das atividades econômicas abria, na verdade, espaço para a consolidação de novos instrumentos financeiros, de elevado grau de sofisticação. As chamadas agências de “rating” se prestavam a oferecer ares e aparências de estabilidade e robustez a um sistema que todos sabiam estar à beira da falência. Tanto é assim que, às vésperas da quebradeira generalizada no mercado financeiro dos Estados Unidos, os bancos continuavam a receber notas altas, como reflexo de uma suposta normalidade em seu comportamento e de suas variáveis de desempenho. Apesar dos AAA , estavam todos quebrados no dia seguinte.
Nessa nova etapa do ciclo de acumulação do capital, o Estado volta a ser chamado. Os economistas defensores do ancien régime mudam seu diagnóstico. Os documentos dos organismos multilaterais, tipo FMI e Banco Mundial, passam a exercer um formidável contorcionismo retórico e começam a incluir leves pitadas de um “soi-disant” neo-keynesianismo bastardo e de ocasião. Para evitar generalizações injustas, reconheço que muitas das conversões foram mesmo autênticas, fruto de um desencanto com o credo anterior. Mas o fato é que passada a fase aguda da crise financeira, como a autocrítica não ocorreu como método organizado e radical, as tentações da ortodoxia retornam aos poucos a se fazerem presentes na agenda das políticas econômicas ao redor do globo. E, infelizmente, o caso brasileiro se encaixa como uma luva para descrever esse processo.
Privatização: do ideológico ao pragmático.
Não contente com a reafirmação do eixo da política econômica em torno do superávit primário, o Ministério da Fazenda apresenta agora uma agenda de privatização. O detalhe é que ainda não encontra espaço para uma defesa ideológica dessa alternativa. Ao contrário do que ocorria nos momentos históricos anteriores, o discurso atual é de natureza defensiva. O governo se vê como que “obrigado” a lançar mão desse instrumento em razão da profundidade da crise fiscal. Como o governo precisa de recursos para alcançar o superávit primário e não tem coragem nem vontade de buscar receita junto aos setores privilegiados da sociedade, ele acaba por trilhar outros caminhos.
Tentou cortar gastos orçamentários, está prejudicando uma série de projetos sociais estratégicos, mas mesmo assim não está conseguindo o quanto precisava para destinar ao pagamento de juros e serviços da dívida pública. Como o COPOM continua mantendo a SELIC cada vez mais nas alturas, as despesas financeiras só fazem crescer. Como o governo está sendo muito eficiente na gestação do quadro recessivo pretendido, as receitas tributárias também diminuem com a queda na atividade econômica. Desemprego e enxugamento da massa salarial são apresentados apenas como “pequenos detalhes indesejáveis”. Afinal, o importante mesmo é cumprir a meta do ajuste.
Eis que surge na mão do espertinho uma varinha de condão. E com ela a solução mágica: “vamos vender as empresas estatais”! Bingo! Lógico, como não tinha pensado nisso antes. Mas, espera aí. Não era a gente que acusava o candidato derrotado nas eleições de querer privatizar a Petrobrás e os bancos públicos? Não, mas veja bem, com a gente agora é diferente. Não queremos privatizar, de modo algum! Vamos apenas vender a participação acionária da União em algumas empresas federais. Ah, tá bom, acho que agora eu entendi.
O discurso que antes era ideológico, agora se traveste de realismo pragmático. O governo precisa fazer caixa e pretende obter esses recursos vendendo patrimônio público federal para o capital privado. Um absurdo carregado de elevada irresponsabilidade. Em primeiro lugar porque confunde e engana a sociedade, ao misturar dois tipos de conceito bem distintos. Ao pretender um superávit primário, o governo busca um resultado de receitas superior às despesas ao longo de um ano. Trata-se de uma lógica que envolve aquilo que o economês chama de “variáveis fluxo”, pois são geradas ao longo de um determinado período de tempo. Já uma empresa estatal federal é parte constituinte do patrimônio da União, caracterizando-se como uma “variável estoque”. Em tese, não faz sentido se desfazer de uma parcela de seu estoque acumulado ao longo de décadas para resolver um problema localizado e emergencial de fluxo no ano fiscal de 2015.
A lista do momento: Petrobrás, BB, CEF e IRB.
Além do mais, as alternativas em estudo se referem a casos muito especiais. Trata-se da venda de empresas do grupo Petrobrás e do Banco do Brasil. Comenta-se também a respeito da abertura do capital da Caixa Econômica Federal CEF) ao mercado, uma vez que por ser uma empresa pública, 100% de suas ações pertencem à União. Finalmente, pela enésima vez, volta à baila a tentativa de privatizar o estratégico Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), empresa essencial na modelagem de qualquer sistema financeiro contemporâneo e que sempre esteve na alça de mira dos 4 conglomerados gigantes que dominam esse oligopólio no mundo.
O ambiente de incerteza e o quadro de recessão contribuem para reduzir o valor de tais empresas, caso elas sejam mesmo colocadas à venda. Assim, além de todos os equívocos envolvidos na adoção de tal estratégia, o resultado será uma redução do valor obtido pela trapalhada e uma evidente transferência patrimonial de ativo público para os pretendentes do setor privado. Uma generosidade que o governo de plantão oferece de bom grado ao capital, às custas do esforço empreendido pelo povo brasileiro ao longo de décadas.
A solução da crise passa pela mudança de rota na orientação da política econômica, com a recuperação do protagonismo das políticas públicas de distribuição de renda e desenvolvimentistas. Incluir a venda de empresas estatais no pacote do ajuste ortodoxo só vem a reforçar seu conteúdo injusto e conservador. Trata-se de uma indesejada volta ao passado, que as próprias eleições rejeitaram. Basta de privatização!
*Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Assim foi feito pelo mundo afora, desde a Inglaterra nos tristes tempos de Margaret Thatcher até o Brasil dos anos colloridos e de FHC. Em nome da suposta maior eficiência da gestão privada, os ativos públicos foram doados, vendidos, alienados, concedidos, entre tantas outras modalidades imaginativas de passar o bastão ao capital. O elemento simbólico máximo desse período eram as imagens dos leilões nas Bolsas de Valores, quando as autoridades governamentais - literalmente! - “batiam o martelo” e anunciavam a transferência da empresa tal para o novo proprietário qual. Em 1997, por exemplo, o controle acionário da Cia Vale do Rio Doce foi transferido ao consórcio privado vencedor da “disputa” por apenas R$3,3 bilhões, enquanto o valor da empresa era estimado em mais de R$ 90 bi. Chegou a ser avaliada em US$ 200 bi dólares em 2008. Um mui generoso presente, fraternalmente viabilizado sob a forma de alienação patrimonial.
A crise e as mudanças.
No entanto, a crise econômica internacional, desencadeada a partir de 2008, contribuiu para redefinir os parâmetros daquilo que seria considerado como aconselhável, em termos de política econômica, inclusive para uma parcela dos próprios integrantes do “establishment” do sistema financeiro em todos os continentes. A falência do modelo marcado pela generalização dos pressupostos liberais recolocava o debate em torno da importância do Estado em alguns aspectos da atividade econômica. A incapacidade das regras mercadistas como única referência para avaliar eventual eficiência de empresas privadas ou de políticas públicas tornou-se evidente, por exemplo, a partir da quebra de gigantes do setor financeiro norte-americano.
A existência escancarada de uma promiscuidade revelada nas articulações entre os diferentes agentes operantes no interior do sistema financeiro não resiste a uma observação minuciosa. O cansativo discurso em prol da “desregulamentação” das atividades econômicas abria, na verdade, espaço para a consolidação de novos instrumentos financeiros, de elevado grau de sofisticação. As chamadas agências de “rating” se prestavam a oferecer ares e aparências de estabilidade e robustez a um sistema que todos sabiam estar à beira da falência. Tanto é assim que, às vésperas da quebradeira generalizada no mercado financeiro dos Estados Unidos, os bancos continuavam a receber notas altas, como reflexo de uma suposta normalidade em seu comportamento e de suas variáveis de desempenho. Apesar dos AAA , estavam todos quebrados no dia seguinte.
Nessa nova etapa do ciclo de acumulação do capital, o Estado volta a ser chamado. Os economistas defensores do ancien régime mudam seu diagnóstico. Os documentos dos organismos multilaterais, tipo FMI e Banco Mundial, passam a exercer um formidável contorcionismo retórico e começam a incluir leves pitadas de um “soi-disant” neo-keynesianismo bastardo e de ocasião. Para evitar generalizações injustas, reconheço que muitas das conversões foram mesmo autênticas, fruto de um desencanto com o credo anterior. Mas o fato é que passada a fase aguda da crise financeira, como a autocrítica não ocorreu como método organizado e radical, as tentações da ortodoxia retornam aos poucos a se fazerem presentes na agenda das políticas econômicas ao redor do globo. E, infelizmente, o caso brasileiro se encaixa como uma luva para descrever esse processo.
Privatização: do ideológico ao pragmático.
Não contente com a reafirmação do eixo da política econômica em torno do superávit primário, o Ministério da Fazenda apresenta agora uma agenda de privatização. O detalhe é que ainda não encontra espaço para uma defesa ideológica dessa alternativa. Ao contrário do que ocorria nos momentos históricos anteriores, o discurso atual é de natureza defensiva. O governo se vê como que “obrigado” a lançar mão desse instrumento em razão da profundidade da crise fiscal. Como o governo precisa de recursos para alcançar o superávit primário e não tem coragem nem vontade de buscar receita junto aos setores privilegiados da sociedade, ele acaba por trilhar outros caminhos.
Tentou cortar gastos orçamentários, está prejudicando uma série de projetos sociais estratégicos, mas mesmo assim não está conseguindo o quanto precisava para destinar ao pagamento de juros e serviços da dívida pública. Como o COPOM continua mantendo a SELIC cada vez mais nas alturas, as despesas financeiras só fazem crescer. Como o governo está sendo muito eficiente na gestação do quadro recessivo pretendido, as receitas tributárias também diminuem com a queda na atividade econômica. Desemprego e enxugamento da massa salarial são apresentados apenas como “pequenos detalhes indesejáveis”. Afinal, o importante mesmo é cumprir a meta do ajuste.
Eis que surge na mão do espertinho uma varinha de condão. E com ela a solução mágica: “vamos vender as empresas estatais”! Bingo! Lógico, como não tinha pensado nisso antes. Mas, espera aí. Não era a gente que acusava o candidato derrotado nas eleições de querer privatizar a Petrobrás e os bancos públicos? Não, mas veja bem, com a gente agora é diferente. Não queremos privatizar, de modo algum! Vamos apenas vender a participação acionária da União em algumas empresas federais. Ah, tá bom, acho que agora eu entendi.
O discurso que antes era ideológico, agora se traveste de realismo pragmático. O governo precisa fazer caixa e pretende obter esses recursos vendendo patrimônio público federal para o capital privado. Um absurdo carregado de elevada irresponsabilidade. Em primeiro lugar porque confunde e engana a sociedade, ao misturar dois tipos de conceito bem distintos. Ao pretender um superávit primário, o governo busca um resultado de receitas superior às despesas ao longo de um ano. Trata-se de uma lógica que envolve aquilo que o economês chama de “variáveis fluxo”, pois são geradas ao longo de um determinado período de tempo. Já uma empresa estatal federal é parte constituinte do patrimônio da União, caracterizando-se como uma “variável estoque”. Em tese, não faz sentido se desfazer de uma parcela de seu estoque acumulado ao longo de décadas para resolver um problema localizado e emergencial de fluxo no ano fiscal de 2015.
A lista do momento: Petrobrás, BB, CEF e IRB.
Além do mais, as alternativas em estudo se referem a casos muito especiais. Trata-se da venda de empresas do grupo Petrobrás e do Banco do Brasil. Comenta-se também a respeito da abertura do capital da Caixa Econômica Federal CEF) ao mercado, uma vez que por ser uma empresa pública, 100% de suas ações pertencem à União. Finalmente, pela enésima vez, volta à baila a tentativa de privatizar o estratégico Instituto de Resseguros do Brasil (IRB), empresa essencial na modelagem de qualquer sistema financeiro contemporâneo e que sempre esteve na alça de mira dos 4 conglomerados gigantes que dominam esse oligopólio no mundo.
O ambiente de incerteza e o quadro de recessão contribuem para reduzir o valor de tais empresas, caso elas sejam mesmo colocadas à venda. Assim, além de todos os equívocos envolvidos na adoção de tal estratégia, o resultado será uma redução do valor obtido pela trapalhada e uma evidente transferência patrimonial de ativo público para os pretendentes do setor privado. Uma generosidade que o governo de plantão oferece de bom grado ao capital, às custas do esforço empreendido pelo povo brasileiro ao longo de décadas.
A solução da crise passa pela mudança de rota na orientação da política econômica, com a recuperação do protagonismo das políticas públicas de distribuição de renda e desenvolvimentistas. Incluir a venda de empresas estatais no pacote do ajuste ortodoxo só vem a reforçar seu conteúdo injusto e conservador. Trata-se de uma indesejada volta ao passado, que as próprias eleições rejeitaram. Basta de privatização!
*Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Fonte: http://cartamaior.com.br/?/Coluna/Basta-de-privatizacao-/34046
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