Eugenio Bucci, se um dia perder seu emprego como professor da ECA, poderá tranquilamente candidatar-se a acrobata do Cirque de Soleil. O contorcionismo desse artigo é um espetáculo de rara beleza, e merece ser aplaudido de pé. Para quem duvida, reproduzo o artigo inteiro, porque a reprodução de um trecho ou outro privaria o leitor de uma peça única em seu gênero.
A fonte desse contorcionismo, a barra firme e inamovível em torno da qual Bucci faz a sua ginástica é essa: a direita golpista viúva do regime militar foi e sempre será chegada em uma censura, enquanto a esquerda “democrática” sempre foi e sempre será pela liberdade de expressão. A partir daí, a realidade é entortada para além do limite fisicamente plausível.
Em primeiro lugar, e como nota cômica preambular, como faz o ginasta preparando a sua performance com algumas gracinhas para o público, Bucci evoca as transmissões soviéticas captadas pelos rádios de ondas curtas como um desafio à censura militar. Como se a União Soviética estivesse lutando para implementar uma democracia no Brasil, e não fosse um modelo de censura estatal. Vamos ser justos, o colunista não defende o modelo soviético, apenas faz pilhéria da “ameaça comunista” que movia a censura de transmissões soviéticas, como se a Guerra Fria nunca tivesse existido.
Mas a grande contorção começa quando o professor faz um fast forward para os dias atuais. Aqueles mesmos golpistas estão hoje a brandir a bandeira da “liberdade de expressão”! Como pode? Não, não pode. O mundo de Bucci está congelado em 1964, em que a direita golpista é e sempre será censora. Assim, qualquer manifestação em contrário só pode ser oportunista e hipócrita. Hoje, o Estado coercitivo está do lado do “bem”, enquanto os golpistas viúvos de 64 estão, como sempre estiveram, do lado do “mal”. Ontem, a censura trabalhava contra a democracia e a liberdade (no modelo soviético?) e era chamada de censura. Hoje trabalha a favor da democracia tupiniquim, e, portanto, é chamada de “defesa da democracia”, não de censura. Censura para preservar a democracia. Esse é o contorcionismo. Causa espécie que venha de um jornalista, que tem como matéria prima a liberdade de expressão.
A questão, para quem tem um mínimo de bom senso, obviamente não é essa. Trata-se, como tratou-se durante o regime militar e desde sempre, de uma luta entre o poder coercitivo do Estado e a liberdade individual do cidadão. O debate é até onde os operadores do Estado podem ir para preservar o bem comum. Isso não tem nada a ver com esquerda ou direita, tivemos Estados autoritários dos mais diversos tipos, ainda que, hoje, os de esquerda predominem.
Dando continuidade ao seu número de contorcionismo, Bucci afirma que os que choram pelo X não tem pejo de negar liberdade de expressão a indígenas, quilombolas, moradores de rua, mulheres pró-aborto, enfim, a lista completa dos oprimidos. Oi? Alguém já viu aí alguma minoria proibida de se expressar por qualquer meio que seja? Aliás, muito pelo contrário, há uma patrulha ideológica contra quem faz a crítica a esses movimentos. Mas, para Bucci, liberdade de expressão só vale para concordar. Visão autoritária típica.
Para terminar o seu número, Bucci faz uma graça enquanto seu corpo está congelado em uma posição inverossímil. O articulista, procurando encontrar uma resposta para a posição dos golpistas além da hipocrisia, afirma que fazem isso por ciúmes, porque os revolucionários de 64 conseguiam driblar a censura com seus rádios de ondas curtas, mas hoje o Xandão “conseguiu” barrar efetivamente o X no País. Boa, Bucci! Só espero que tenha sido uma piada intencional.
Não sei quanto aos outros, posso falar por mim. Quero poder tuitar o que eu quiser e ler os tuítes de quem eu quiser, e ninguém tem nada a ver com isso. Não quero que um agente do Estado decida o que é bom ou não para mim. Isso vale para 1964 e vale para 2024. Bucci afirma que estamos todos defendendo Elon Musk. Eu quero mais que Musk se lasque, pouco se me dá o que acontece com ele ou suas empresas. O que eu quero é poder escrever e ler. É pedir muito?
Desconfio que grande parte da população tenha essa mesma percepção. Não descarto que haja viúvas da ditadura militar, para quem existe ditadura boa. Mas acredito que seja uma minoria. Assim como é minoria essa esquerda que ainda se acha em 1964, no Araguaia lutando contra a ditadura militar. Bucci faz parte dessa minoria congelada no tempo e completamente desligada da realidade brasileira. Estão em sua torre de marfim intelectual, vendo militares debaixo da cama.
João Luiz Mauad, Facebook, 05/09/24.
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