Quanto custam as necessidades básicas dos brasileiros?
por Raquel Júnia - EPSJV/Fiocruz
Definição sobre novo valor do salário mínimo aponta a necessidade de se pensar os direitos constitucionais dos brasileiros, como o direito à educação e à saúde
Na noite do dia 16 de fevereiro, a Câmara dos Deputados aprovou o valor do salário mínimo que vigorará durante todo o ano de 2011: R$ 545. O valor é apenas R$ 5 reais a mais do que era em 2010, alguns reais a menos do que pediam algumas das centrais sindicais e exatamente R$ 1.649,76 reais a menos do que o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) aponta como o salário mínimo necessário para garantir as necessidades vitais básicas dos brasileiros e suas famílias, conforme define a Constituição do país. A discussão do valor salarial, entretanto, não está restrita aos números: tem a ver também com a forma como as políticas públicas são implementadas no país.
De acordo com o Dieese, cerca de 47 milhões de brasileiros são remunerados com valores referenciados no salário mínimo. Os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2009 também mostram o mesmo que o Dieese: de acordo com a Pnad são 47,7 milhões de brasileiros recebendo salário mínimo - 29,1 milhões de trabalhadores formais e informais e 18,6 milhões de beneficiários da Previdência Social. O texto constitucional diz que o salário mínimo deve ser fixado em lei, e deve ainda ser "nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família, como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, reajustado periodicamente, de modo a preservar o poder aquisitivo, vedada sua vinculação para qualquer fim".
O Dieese calcula mensalmente o valor do salário mínimo necessário para que as finalidades previstas na Constituição sejam garantidas. Em janeiro, o cálculo do instituto ficou em R$ 2.194,76 reais. "É uma estimativa que o Dieese faz, com base no que diz a Constituição - um salário mínimo capaz de atender às necessidades básicas dos trabalhadores e suas famílias. Isso está na Constituição", explica o economista do Dieese José Maurício Soares. A cada mês, o departamento calcula também o valor da cesta básica, que consumiu em janeiro, segundo os cálculos atualizados, 35,5% do valor do salário mínimo, com alta em 14 das 17 capitais pesquisadas.
Gastos com saúde e educação
Quando o Dieese calcula o salário mínimo necessário, inclui também os gastos das famílias com saúde e educação. "È uma média de uma determinada população, há famílias que pagam e famílias que não pagam escola, mas todas as famílias gastam com material escolar, por exemplo. Alguns objetos escolares são dados pelo governo, mas em geral se gasta. Na saúde fazemos o mesmo, o gasto é uma média entre as famílias que têm seguro e outras que não têm e usam exclusivamente o SUS", define José Maurício.
Outra pesquisa do Dieese, divulgada no início de fevereiro, mostra que o Índice de Custo de Vida (ICV) subiu 1,28% em janeiro de 2011 e muito desse aumento está relacionado ao reajuste das mensalidades escolares, já que o grupo de custos chamado pelo departamento de ‘Educação e Leitura' subiu 4, 78%. Entretanto, o reajuste pesa mais para o estrato da população com maior poder aquisitivo, que são as pessoas que mantêm os filhos matriculados na rede privada. Já com relação à saúde, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) afirma que cerca de 24% da população brasileira possui planos de saúde.
A educação e a saúde, entretanto, são definidas na Constituição brasileira como direitos sociais, juntamente com uma série de outros direitos, como a moradia, o trabalho e a segurança. O texto constitucional diz também que é "competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...) proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência", no inciso V do artigo 23. "Com uma educação pública e gratuita garantida pelo estado, o valor necessário do salário mínimo provavelmente diminuiria, mas dificilmente vamos encontrar isso na realidade. É só ver a quantidade de faculdades particulares, é imensa, há mais alunos do que na universidade pública", constata o economista do Dieese.
Para o diretor do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação do Rio de Janeiro (Sepe) e historiador, Tarcísio Mota, como o Estado vem ‘sucateando' e não investindo na educação pública, a educação como um direito acabou sendo negada à maioria dos trabalhadores. "Isso fez com que parte da classe média recorresse ao ensino privado. Esse movimento foi acompanhado de uma lógica, principalmente no período neoliberal, de que a educação deveria começar a ser vista como um serviço e não como um direito, apesar de a lei dizer o contrário disso", analisa. Tarcísio explica que, em decorrência disso, as escolas públicas não conseguem cumprir a função necessária. "As escolas públicas ‘sucateadas' servem muitas vezes como depósito de alunos, como um lugar em que os alunos não conseguem efetivamente adquirir a cultura acumulada pelo tempo e os profissionais de educação não conseguem exercer o seu direito. E ao mesmo tempo, o salário mínimo não consegue dar conta das necessidades mais básicas, o que faz com que a parcela mais pobre da população seja prejudicada duplamente: ela não tem o seu direito à educação atendido pelo Estado e ao mesmo tempo não tem condição de recorrer a um outro tipo de gasto cultural e educacional porque o salário mínimo impede que isso aconteça", afirma.
O mínimo
O diretor do Sepe define o salário mínimo votado no último dia 16 pela Câmara dos Deputados como "irrisório", já que, mesmo sem gastos com a educação, o valor não é suficiente para que uma família tenha as necessidades elementares atendidas. "Quando o salário foi estabelecido lá no período Vargas, ele ficou no meio do caminho entre o que os trabalhadores dos sindicatos oficiais queriam - nem eram todos os trabalhadores - e o que os empresários queriam. E um salário no meio do caminho não atende às necessidades básicas dos trabalhadores. Além disso, ele vai perdendo o seu poder de compra. O debate deste ano sobre se o valor seria R$ 545 ou R$560 é quase sem sentido porque estes R$ 15 reais não significam nenhum tipo de ganho efetivo para a classe trabalhadora", destaca. José Maurício lembra que o valor do salário já foi mais próximo da realidade das necessidades dos trabalhadores. "No final da década de 50, tivemos um salário que hoje equivaleria a R$ 1200", diz.
De acordo com a proposta aprovada na Câmara dos Deputados, o valor do salário mínimo será reajustado da mesma maneira que vem sendo desde 2007, com o valor da inflação, medido pelo Índice Anual de Preços ao Consumidor (INPC) e a taxa de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) do ano anterior. Por exemplo: em 1º de janeiro de 2012, data em que o valor deve ser reajustado, será feita uma estimativa da inflação para o mês de dezembro de 2011 e a este valor será acrescido o percentual de crescimento do PIB de 2010. Segundo a base governista no congresso nacional, que aprovou o mínimo de R$ 545 para 2011, o valor pode chegar a R$ 616 em 2012, já que o crescimento do PIB em 2010 foi expressivo em relação a 2009, quando o valor foi nulo.
Na avaliação do economista do Dieese, ainda que o departamento estime o valor necessário do mínimo, não é possível que o salário cresça rapidamente . "Não daria para subir tudo de uma vez, se não, no outro dia, a ‘maquininha de remarcar os preços' funcionaria a todo o vapor. Ganhando-se muito mais, a procura pelos produtos será muito maior e os preços subirão", explica. Tarcísio concorda que a inflação subirá caso o salário mínimo aumente muito, entretanto, ele considera que há uma questão de opção política envolvida na discussão. "Um governo que tenha menos compromissos com o grande capital e o empresariado tenderia a ter um plano de elevação efetiva do salário mínimo e de atendimento das necessidades básicas da população, principalmente com investimentos pesados em educação e saúde, o que não acontece", critica. Para exemplificar, o professor fala sobre o Plano Nacional de Educação enviado recentemente ao congresso pelo governo Lula. "O plano prevê que a educação só chegará a 7% do PIB em 2015, podendo ser estendido a 2022. Isso é um absurdo. E como isso tem relação com o salário mínimo? Com tão baixos investimentos em educação pública, o tipo de custo que a educação leva para a classe trabalhadora - que muitas vezes tem que pagar complementos da própria educação, um cursinho aqui, uma explicadora ali - acaba se ampliando", detalha.
Realidade salarial dos professores
O salário dos profissionais da educação em todo o Brasil também está muito abaixo do desejável, de acordo com Sepe. Os professores e funcionários das escolas públicas não têm o vencimento vinculado ao salário mínimo, entretanto, a realidade desses profissionais também é de não garantia dos direitos sociais, devido aos baixos salários. "Isso faz com que o profissional da educação tenha que, muitas vezes, dobrar a carga horária, procurar outros empregos. A situação salarial é um pouco melhor nas redes federal ou dos colégios de aplicação, mesmo assim está abaixo do que é a importância social desses profissionais e da possibilidade que existe de um salário efetivamente digno", comenta Tarcísio.
Em 2008, a lei 11.738 definiu o piso salarial nacional dos professores, uma demanda histórica desses profissionais. Entretanto, Tarcísio explica que o valor estipulado foi muito baixo. "Nós defendíamos que o piso deveria corresponder apenas ao vencimento base dos profissionais. Ele acabou sendo fixado em valores mais baixos e para o total da remuneração dos profissionais. Então, as prefeituras e estados colocam uma série de gratificações que são para poucos e muitas vezes produtivistas para se chegar a este valor do piso salarial nacional e isso acaba não significando nenhum tipo de valorização", observa.
O professor destaca ainda que os estudantes de escolas públicas precisam arcar com gastos relativos ao acesso aos bens culturais, aos materiais escolares, que são apenas parcialmente cobertos pelo poder público, com transporte, e, além disso, classes profissionais, como a dos professores, padecem com uma remuneração baixa que lhes impõe sérias restrições na vida pessoal e profissional. "Na medida em que a escola pública de qualidade for oferecida para todos, o peso desses gastos com a educação no custo de vida será menor, porque as pessoas efetivamente poderão usufruir um atendimento do Estado e que é um dever do próprio estado", conclui.
Fonte: EPSJV/Fiocruz, 17/02/2011
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