A BOLHA RESTAURADA (OU A TURBULÊNCIA EM CÉU AZUL)
por Ricardo Carneiro (*)
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A economia brasileira, da América Latina, e por que não dizer, do conjunto dos países periféricos, vive hoje uma conjuntura peculiar marcada por um duplo choque: o dos elevados e crescentes fluxos de capitais para eles direcionados, e o dos altos e voláteis preços das commodities. Aquilo que poderia ser uma benesse termina por se constituir numa perturbação, internalizando desde fora desequilíbrios com quais a política econômica tem que lidar, obrigando-a a abandonar prioridades domésticas em benefício da gestão desses choques externos.
A economia brasileira, da América Latina, e por que não dizer, do conjunto dos países periféricos, vive hoje uma conjuntura peculiar marcada por um duplo choque: o dos elevados e crescentes fluxos de capitais para eles direcionados, e o dos altos e voláteis preços das commodities. Aquilo que poderia ser uma benesse termina por se constituir numa perturbação, internalizando desde fora desequilíbrios com quais a política econômica tem que lidar, obrigando-a a abandonar prioridades domésticas em benefício da gestão desses choques externos.
O momento atual ressalta como patéticas as interpretações das agências multilaterais – FMI e Banco Mundial – e segmentos dos mercados financeiros internacionais, que desde alguns anos vêm insistindo no decoupling das economias emergentes, entendida como a capacidade dessas últimas em manter elevados ritmos de crescimento, de forma independente da trajetória das economias desenvolvidas. Esta tese esteve ancorada em observações empíricas - como o ritmo mais rápido de crescimento dos emergentes – desconsiderando os mecanismos de geração e transmissão desse crescimento e, mais recentemente, enfatizou a capacidade de preservação desse último, sem novamente atentar para as implicações da forma pela qual a crise foi equacionada nos países centrais.
O que parecia ser uma trajetória benigna e independente, tem se transformado numa crescente perturbação, com apreciações cambiais indesejadas, pressões inflacionárias e desaceleração do crescimento doméstico nos países periféricos. Para lidar com essas consequências do duplo choque, a política macroeconômica convencional tem sido impotente exigindo a crescente utilização de instrumentos não convencionais, como as políticas macro-prudenciais e de regulação, sob pena de agravar ainda mais os desequilíbrios iniciais e lançar essas economias numa trajetória de baixo crescimento ou recrudescimento da inflação. As tarefas que se exige da política econômica no plano nacional são, portanto, ingentes e tão mais complexas quanto menores forem as mudanças a serem implementadas no plano internacional.
1. Os choques internacionais
Em trabalho recente, Ilmar Akyuz, o economista chefe do South Center, discute os determinantes dos fluxos de capitais para os países periféricos nos vários ciclos, desde o pós-guerra. Com a correta perspectiva de que esses fluxos tem seu determinante principal, nas variações da preferencia pela liquidez/aversão ao risco nas economias centrais, o autor chega aos determinantes do ciclo recente associando-os à política monetária americana, de criação de liquidez por meio do quantitative easing, uma forma de injeção de moeda na economia, em alta escala, por meio de compra de títulos públicos de maturidade variada e, portanto, de manutenção de baixas taxas de juros em vários prazos. O autor ressalta o baixíssimo patamar de taxa de juros de curto prazo, próxima da fronteira zero, com fator crucial na originação de fluxos de capitais especulativos em direção aos países periféricos, cujo sentido maior é a busca de retorno mais altos proporcionados por diferencial por taxas de juros ou, simplesmente por rendimentos mais altos nos vários mercados de ativos. Como tem sido observado historicamente, esses fluxos de capitais geram bolhas expressivas nos mercados cambiais, de ativos e de crédito, além de deprimirem a competitividade das exportações de manufaturas.
A particularidade do auge do ciclo recente, após 2003, é que nele se observa também um substancial aumento e volatilidade nos preços das commodities. Com o mesmo padrão dos fluxos de capitais, esses preços sobem continuadamente desde essa data, sofrendo uma brusca queda em 2009, mas já ultrapassando o pico anterior após o primeiro trimestre de 2011. O essencial a destacar é que a simultaneidade entre os dois movimentos cria uma situação peculiar, de duplo choque, com determinantes semelhantes, exacerbando as suas implicações e as dificuldades em lidar com seus movimentos.
Atribuir ao ciclo de preços de commodities, as mesmas causas dos fluxos de capitais parece, à primeira vista, uma impropriedade. Isto porque a elevação desses preços está bastante associada ao ciclo forte e continuado de crescimento dos países asiáticos, em particular da China e da Índia, e às características da produção desses bens. Todavia, o argumento não desconhece esses importantes impulsos para o aumento dos preços, mas ressalta o caráter especulativo implícito tanto na magnitude da sua variação como também na sua volatilidade.
Diversos trabalhos da UNCTAD têm procurado caracterizar a relevância dos processos especulativos na formação dos preços das commodities. O aspecto mais saliente é a crescente dominância dos mercados de derivativos – futuros e opções - e dos investidores financeiros, na determinação dos preços nesses mercados que se transmitem por arbitragem para os mercados à vista. A presença maciça desses especuladores, para os quais as commodities passam a constituir parte relevante de seus portfólios, termina por conectar os mercados desses bens ao comportamento de variáveis-chave com a taxa de juros de curto prazo, conformando uma operação de carry trade. O baixo patamar da taxa de juros e as expectativas de sua preservação, decorrentes da política monetária americana, têm estimulado as operações de especulação, o overshooting, e a volatilidade dos preços das commodities.
O mesmo tipo de argumentação pode ser utilizado para explicar o aumento desmesurado dos fluxos de capitais. De um lado, não se pode negar que há fatores de atração relevantes, pois a melhora do comércio exterior desses países, decorrentes do crescimento global e, para vários latino-americanos, da melhoria dos preços de intercâmbio, permitiu aprimorar consideravelmente os fundamentos, por meio da acumulação de reservas internacionais e redução do endividamento público líquido, externo e interno. Mas, o overshooting só se explica pelo diferencial de rentabilidade que foi significativamente ampliado com a redução da taxa de juros americana e das demais economias desenvolvidas.
Em defesa da política econômica vigente, argumentam as autoridades monetárias norte-americanas que esta é a única forma de manter o estímulo ao crescimento, em uma economia debilitada pela crise financeira. Dado que o socorro inicial, por parte do setor público, implicou numa absorção de dívida do setor privado e num aumento substancial do déficit, o que contribuiu ainda mais para ampliar a dívida pública, a política fiscal viu-se crescentemente manietada. De novo, embora não falte significância ao argumento, ele não explica porque se despreza os efeitos que esse perfil de política tem no restante do mundo, ainda mais porque se trata de ações de política em torno de uma moeda reserva.
O fato apontado acima põe em relevo a contradição clássica, da moeda reserva internacional ser uma moeda nacional, no caso, o dólar. Sendo assim, a política deveria prever salvaguardas para os demais países contra os seus efeitos colaterais. Se estas salvaguardas existissem, na forma, por exemplo, de limitação da mobilidade de capitais, elas certamente não inviabilizariam a implementação e a efetividade das políticas monetárias.
Todavia, implicariam em reduzir o papel do dólar como moeda reserva. Essa é a razão essencial que explica a sua não disseminação, ou seja, o interesse norte-americano em preservar o papel do dólar e sua seignioriage.
2. Os contornos da política econômica
Num importante documento lançado após a crise de 2008, o FMI examina criticamente a política econômica posta em prática nos países desenvolvidos, concluindo que a ênfase exclusiva na estabilidade de preços e, a despreocupação com as dimensões regulatórias do sistema financeiro, terminaram por engendrar a crise. Dentre as suas propostas de revisão do arcabouço da política econômica nos países centrais, destaca-se claramente uma revisão do papel e ênfase acentuada na política regulatória. A combinação desta última com políticas macroeconômicas adequadas – sem precedências ou hierarquias – criaria o clima de estabilidade para a operação da economia, sem os riscos de eventuais desequilíbrios financeiros como os observados na crise recente.
Não deixa de ser curioso que ao tratar da mesma questão com foco nos países emergentes, o FMI mude as suas ênfases. Assim, por exemplo, ao discutir as relações entre as políticas macroeconômicas e a política regulatória – no caso a política de controle dos fluxos de capitais – estabelece uma hierarquia entre elas propugnando que as últimas só devam ser utilizadas como instrumento de última instância. Partem do princípio de que as políticas de regulação dos fluxos de capitais seriam utilizadas para reparar o mau funcionamento das políticas macroeconômicas, ou seja, o caráter disciplinador da abertura financeira sobre o perfil da política macroeconômica seria impedido de funcionar, num contexto de restrição da mobilidade de capitais.
O argumento, além de incoerente; talvez porque questiona a mobilidade de capitais, e fira os interesses do maior sócio do FMI; deixa de considerar importantes implicações dos fluxos de capitais para os países periféricos: a desregulação desses fluxos tem os mesmos efeitos para esses países, do que a desregulação financeira para os países centrais. Ou seja, por meio da valorização/desvalorização das moedas locais, o movimento de capitais tem sido um dos principais determinantes das bolhas de preços de ativos e/ou de crédito, do seu inflar quando da fase de absorção e, do estouro, durante a saída. De forma diferente do que diz o FMI, em muitas ocasiões, um perfil saudável e adequado de políticas e situações macroeconômicas se viu deteriorado pelo excessivo afluxo de capitais.
O duplo choque ao qual estão sujeitos os países periféricos, após o desdobramento da crise de 2008, pela sua intensidade, traz novos constrangimentos e não pode ser gerido tão somente com os instrumentos macroeconômicos convencionais, sob pena de produzir graves crises nesses países. Por exemplo, a tentativa de reduzir o choque inflacionário decorrente do aumento de preços das commodities, por meio da política monetária, além de relativamente inócuo, exacerba a atração de novos capitais. Deixar a moeda nacional apreciar como resposta, compromete de modo significativo a competitividade das exportações de manufaturados. A utilização da política fiscal via saldo primário, para anular o choque, tem os mesmos inconvenientes no que tange à trajetória inflacionária. Pode ser mais eficaz, no que se refere à esterilização do saldo de divisas, mas a magnitude do choque pode torná-la insuficiente, além de inviabilizar políticas redistributivas e de estímulo ao crescimento em curso nesses países.
De tudo isso, se conclui que a política econômica dos países periféricos terá que mudar necessariamente seu perfil encaminhando-se para práticas não canônicas, sem esperar mudanças significativas no arcabouço da regulação global. O seu sentido geral, será o de combinar a política regulatória com as políticas macroeconômicas convencionais, sem estabelecimento de hierarquias ou prioridades. O objetivo maior, pelo menos na atual conjuntura, será o de insular as economias do duplo choque em andamento. Para tanto, terá que aperfeiçoar os instrumentos de controle dos fluxos de capitais com a preocupação de estendê-los aos mercados de derivativos. Por outro lado, precisará criar ou aperfeiçoar políticas capazes de dirimir os choques de preços das commodities. Nessa direção, uma medida importante seria o estabelecimento ou ampliação dos fundos de estabilização com recursos oriundos da tributação extraordinária das exportações de commodities.
(*) Professor do Instituto de Economia e Diretor do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica da UNICAMP.
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