Desoneração e desindustrialização
por Paulo Kliass
Já começo logo pedindo desculpas pelos palavrões do
título... Mas como algumas expressões do economês acabaram entrando
recentemente para o linguajar do dia-a-dia de parcelas crescentes da população,
não preciso me esforçar muito para explicar os dois substantivos aqui de cima.
De início, houve a recente reunião da Presidenta Dilma com aqueles que os grandes meios de
comunicação qualificaram como a “nata do empresariado” atuante em nosso País. Em
seguida, o governo anunciou algumas medidas que teriam por objetivo reverter os
efeitos da redução do ritmo do crescimento da economia. Afinal, a taxa de
expansão real do PIB de 2011 acabou sendo diminuta - apenas 2,7%, enquanto as
metas oficiais falavam na expectativa de até 4,5%. Ou seja, no ano passado
atingimos um índice muito menor do que os demais países dos BRICs e até mesmo
da média observada para os vizinhos da América Latina.
Ao que tudo indica, a realidade teria gritado mais alto.
Os números assustaram quem não estava muito envolvido com a matéria e ficou
evidente que as receitas tímidas, adotadas até então, teriam que sofrer alguma
reorientação. O fato inescapável é que os principais responsáveis da área da
economia haviam optado, até dezembro recente, pela estratégia de “ir tocando a
política econômica com a barriga”, com enorme e injustificável receio de operar
alguma mudança mais efetiva em defesa do desenvolvimento nacional. Sem mexer na
essência do modelo atual, parece que se contentariam com um pouquinho mais de
pontos percentuais de crescimento. E ponto final: assim estariam todos
satisfeitos.
No entanto, após a virada do ano, as primeiras estimativas
passaram a confirmar que o cenário de redução do crescimento também havia se
estendido para os meses de janeiro e fevereiro de 2012. Nesse momento parece
que o governo teria acordado, como que sacudido pelo susto proporcionado pela
divulgação de suas próprias informações oficiais.
Na reunião com os gigantes das nossas corporações
capitalistas, ouviu-se a mesma ladainha de sempre. As reclamações contra o
custo Brasil, contra o engessamento da legislação trabalhista, contra a elevada
carga tributária e também contra os juros altos e o câmbio valorizado.
Do lado da Presidenta, a intenção maior parece ter sido a
de influenciar o ambiente nacional, por meio de uma variável que pesa bastante
em termos de desempenho de política econômica. Trata-se das chamadas
“expectativas” dos agentes econômicos. É a idéia de que os fenômenos como
investimento, consumo, poupança, entre outros, são também determinados pela
credibilidade e pelo estado de espírito reinante na sociedade em um determinado
momento. Assim, no limite, de nada adiantaria um modelo econômico bem desenhado
e coerente se não houvesse disposição das empresas e das famílias em levá-lo à
frente em suas decisões cotidianas. No extremo oposto do raciocínio, muitas
vezes bastaria elevar o grau de confiança para que as ações de investir, de
produzir e de consumir apresentassem seus resultados positivos, tal como
inicialmente desejado. Em poucas palavras, o pedido presidencial pode ser assim
expresso: invistam e ajudem a economia a reencontrar o caminho do crescimento!
Mas depois de um empenho tão grande em desfazer o risco de
o País entrar em um quadro pessimista quanto a seu futuro próximo, os
resultados concretos anunciados na seqüência do encontro foram poucos e quase
inexpressivos. A desindustrialização não parece ter entrada na lista de
prioridades a ser combatida de forma efetiva. O perigo da taxa de câmbio
valorizada ficou relegado a um segundo plano, quando o Ministro da Fazenda
reafirmou sua disposição de não mexer no regime da injustificável “liberdade
cambial”. As tão esperadas e necessárias medidas de uma postura mais ativa de
defesa comercial contra os produtos importados, em especial os provenientes da
China, ficaram mais uma vez adiadas.
De concreto mesmo, até o presente momento, assistimos
apenas ao anúncio da prorrogação por mais 3 meses da vigência da isenção
tributária do Imposto de Produtos Industrializados (IPI) para os setores da
chamada linha branca (fogões, geladeiras, refrigeradores, congeladores e
máquinas de lavar e secar). Além disso, houve uma expansão do número de áreas
beneficiadas, com a inclusão de outros setores pouco expressivos, a exemplo de
móveis, luminárias e similares. Em resumo, mera perfumaria frente a um quadro
dramático de aprofundamento do processo de desindustrialização generalizada que
o Brasil tem enfrentado.
De outra parte, continua em operação uma estratégia
silenciosa e muito perigosa para o modelo de previdência pública. Isso porque o
governo já havia ampliado o número de setores beneficiados pela desoneração de
recolhimento de contribuição sobre a folha de pagamentos das empresas. Pouco se
fala a respeito, os dados não são nada transparentes, mas é grave o risco de
que a alíquota a incidir sobre o faturamento das empresas não seja suficiente
para suprir as necessidades de receita do regime do INSS. O governo terminou
por ceder generosamente a uma demanda antiga dos empresários e fez tal opção no
pior momento possível: uma conjuntura de espera e de incerteza, caracterizada
por uma redução do ritmo de atividade econômica. Assim, foi criada uma espécie
de “brincadeira de laboratório”, uma experiência beirando a irresponsabilidade
social, onde os erros do novo modelo podem provocar danos severos à nossa
seguridade social, na perspectiva das próximas gerações.
Dessa maneira, o que se percebe é que muito pouco foi
feito para além de algumas medidas pontuais e localizadas de desoneração
tributária. Se a intenção da Presidenta é que o quadro de pouco crescimento
seja revertido, faz-se necessário muito mais do que alguns agradinhos
direcionados aos responsáveis pelos investimentos da nata do PIB em nosso País.
É preciso superar a divulgação isolada e desconectada de
medidas na esfera econômica. É necessário proceder à elaboração de um
verdadeiro Plano de Desenvolvimento Nacional, com propostas e metas claras a
respeito de um conjunto amplo de áreas da política econômica. E, hoje em dia,
um dos pontos nevrálgicos de qualquer projeto desenvolvimentista passa pelo
enfrentamento da questão da desindustrialização. O primeiro passo é o governo
reconhecer, de fato, que esse fenômeno existe e precisa de soluções urgentes.
Não tem mais como tergiversar a respeito.
Na área da política monetária, é necessária que seja
mantida a tendência de redução da SELIC pelo COPOM. Mas tão importante quanto
essa queda na taxa oficial, são as atenções necessárias para seus
desdobramentos no mercado financeiro. E aqui temos, por exemplo, a urgência de
uma ordem presidencial para que os bancos públicos federais reduzam, de uma vez
por todas e de forma drástica, seus “spreads” absurdos cobrados nas operações
com clientes pessoas físicas e empresas. Em termos objetivos, é preciso fazer
com que a baixa da SELIC numa reunião na sede do Banco Central, se transforme
em redução efetiva do custo do crédito na ponta do sistema no dia seguinte,
para os clientes das instituições bancárias.
Na área da política cambial, as autoridades da economia
precisam dar sinais claros que não vão mais aceitar o câmbio valorizado e
abandonar o atual discurso, ainda preso à lógica da armadilha da liberdade
cambial. E não basta fazer as intervenções cirúrgicas e localizadas, quando o
Tesouro entra comprando dólares se a taxa de câmbio passar de tal ou qual
patamar. A história recente tem demonstrado que essa postura não consegue mais
do que o famoso “enxugar gelo” – ela é inócua. E pior: faz o governo perder
dinheiro. Os agentes poderosos do mercado compram a briga com o anúncio oficial
e peitam o governo com a chantagem. Com isso, a administração pública acaba
perdendo preciosos recursos orçamentários e contribuindo para animar o clima
aventureiro dos apostadores do mercado especulativo. Aliás, basta lembrarmos
que parte das empresas tão dignamente recebidas em palácio, estavam há pouco
tempo atrás atuando pesado e de forma especulativa nesse mesmo mercado cambial.
E a conta desse tipo de aposta acaba quase sempre por ser paga pelo conjunto da
sociedade, com recursos públicos.
Há inúmeros estudos a respeito dos prejuízos que o patamar
atual da taxa de câmbio provoca sobre nossa economia. Para escapar da
armadilha, basta o governo arbitrar um valor mais realista ou um intervalo
aceitável para a taxa.
É o que alguns especialistas chamam de “liberdade vigiada”
ou o antigo sistema de bandas cambiais. Além disso, é essencial a adoção de
medidas de tributação efetiva e de controle sobre o fluxo de capital
especulativo vindo do exterior. A atual de alíquota do IOF incidente sobre as
operações revelou-se insuficiente e o BC não adotou nenhuma medida exigindo um
tempo mínimo de permanência do recurso por aqui – a quarentena. É preciso que
as autoridades digam de forma clara: não nos interessa que esse recurso venha
aqui se locupletar da mais alta taxa de rentabilidade do planeta, sem nenhum
compromisso com o País. Ele só faz aumentar as despesas orçamentárias e se
apresenta como fator de elevada instabilidade macroeconômica, pois pode sair de
um momento para o outro e provocar o chamado “efeito manada” no interior do
mercado financeiro.
Na área de política comercial (exportações e importações),
o governo deveria rever a prioridade absoluta concedida aos setores de
exportação de produtos primários, em especial minério de ferro e as mercadorias
do agronegócio.
Apesar de serem os principais colaboradores para o desempenho
de nossas exportações, apoiar-se exclusivamente nos mesmos, como se faz há mais
de uma década, é um suicídio de projeto de Nação a médio e longo prazo.
Trata-se de setores que apresentam esquema produtivo com baixo valor agregado,
resquício da nossa herança colonial, onde desempenhávamos papel absolutamente
secundário na divisão internacional do trabalho. E a postura continua a mesma.
O exemplo mais emblemático vem da mineração: exportamos minério de ferro e
importamos produtos manufaturados, como aço e trilhos.
Além disso, é urgente uma postura mais pró-ativa de nosso
governo em defesa da indústria brasileira, criando mecanismos que dificultem a
entrada de produtos de países que concorram de forma desleal com nossos
produtos, como é o caso das importações chinesas. Quando a realidade evidencia
o esmagamento de pólos industriais, o fechamento de empresas, a eliminação de
postos de trabalho e queda na renda gerada, então é porque algo deve estar
errado nesse modelo. Quando a cada mês a classe média brasileira se esbalda em
novos recordes de compras de bugigangas em suas viagens a Miami, esse fenômeno
também deve ser visto como o termômetro que aponta a febre no paciente.
Enfrentar essa questão significa, em um primeiro momento, ter que absorver os
choques iniciais de aumento de preços, pois a taxa de câmbio será alterada. Mas
esse é o preço a se pagar para sair do mundo da fantasia e cair num modelo mais
realista e equilibrado. Mas para isso, nossas autoridades deveriam preparar a
população e a maioria da sociedade, envolvendo amplos setores com esse projeto
alternativo para o Brasil e cumprindo seu papel pedagógico de apresentar prós e
contras de tal opção. Como sempre, a mudança está na dimensão da política.
Em suma, para a consolidação de um programa voltado para o
desenvolvimento e que reverta a atual tendência à desindustrialização, o
governo necessita muito mais do que anunciar simples decisões localizadas de
desoneração tributária.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas
e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela
Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta Maior Colunistas|
Debate Aberto, 29/03/2012