Sobre a dificuldade de amar o próximo
Zygmunt Bauman*
Numa cena de Korczak, o filme mais humano de Andrzej Wajda, Janus Korczak
(pseudônimo do grande pedagogo Henryk Goldszmit), um herói cinematográfico
muito humano, é relembrado dos horrores das guerras travadas no curso da vida
de sua sofrida geração. Ele recorda essas atrocidades, é claro, e elas o ofendem
e repugnam. E de modo ainda mais vívido, e com o maior dos horrores, ele se
lembra de um bêbado chutando uma criança.
Em nosso mundo obcecado
por estatísticas, médias e maiorias, tendemos a medir o grau de desumanidade
das guerras pelo número de baixas que elas causam. Tendemos a medir o mal, a
crueldade, a repugnância e a infâmia da vitimização pelo número de vítimas. Mas, em 1944, em meio à guerra mais mortífera
já travada pelos seres humanos, Ludwig Wittgennstein observou:
Nenhum clamor de tormento pode ser maior que o
clamor de um homem.
Ou,
mais uma vez, nenhum tormento pode
ser maior do que aquilo que um único ser humano pode sofrer.
O planeta inteiro não pode sofrer tormento
maior do que uma única alma.
Meio século depois, quando questionada por Leslie
Stahl, da rede de televisão CBS, sobre o cerco de meio milhão de crianças
mortas em função do continuado bloqueio militar imposto pelos Estados Unidos ao
Iraque, Madeleine Albright, então embaixadora norte-americana na ONU, não negou
a acusação, admitindo ter sido “uma escolha difícil de fazer”. Mas
justificou-a: “Achamos que era um preço que valia ser pago.”
Albright, sejamos justos, não estava nem está só ao
seguir esse tipo de raciocínio. “Não se pode fazer uma omelete sem quebrar os
ovos” é a desculpa favorita dos visionários, dos porta-vozes das visões
oficialmente endossadas e dos generais que agem da mesma forma sob o comando
dos porta-vozes. Essa fórmula transformou-se, com o passar dos anos, num
verdadeiro slogan de nossos admiráveis tempos modernos.
Quaisquer que sejam aqueles “nós” que “achamos” e em
cujo nome falava Albright, foi exatamente a fria crueldade de seu tipo de avaliação
que provocou a oposição de Wittgenstein e deixou Korczak chocado, ultrajado e
revoltado, resolvido a dedicar toda uma vida a essa revolta.
A maioria de nós concordaria que esse sofrimento sem
sentido e essa dor insensivelmente infligida não podem ser desculpados e não
teriam defesa perante tribunal algum. Mas menos estariam prontos a admitir que
provocar a fome ou causar a morte de uma única pessoa não é, não pode ser, “um
preço que vale ser pago”, não importa quão “sensata” ou até nobre possa ser a
causa pela qual se pague. Tampouco a humilhação ou a negação da dignidade
humana pode ser esse preço. Não é apenas que a vida digna e o respeito devido à
humanidade de cada ser humano se combinem num valor supremo que não pode ser
superado ou compensado por nenhum volume ou quantidade de outros valores, mas
que todos os outros valores só são valores
na medida em que sirvam à dignidade humana e promovam a sua causa. Todas as
coisas valorosas na vida humana nada mais são que diferentes fichas para a aquisição
do único valor que torna a vida digna de ser vivida. Aquele que busca a sobrevivência
assassinando a humanidade de outros seres humanos sobrevive à morte de sua
própria humanidade.
A negação da dignidade humana deprecia o valor de
qualquer causa que necessite dessa negação para afirmar a si mesma. E o
sofrimento de uma única criança deprecia esse valor de forma tão radical e
completa quanto o sofrimento de milhões. O que pode ser válido para omeletes torna-se
uma mentira cruel quando aplicado à felicidade e ao bem-estar humanos.
É comumente aceito pelos biógrafos e discípulos de Korczak
que a chave para seus pensamentos e atos era o amor que tinha pelos filhos.
Essa interpretação é bem fundamentada. O amor de Korczak pelos filhos era
apaixonado e incondicional, total e abrangente – o bastante para sustentar toda
uma vida caracterizada por uma sensibilidade e uma integridade singularmente
coesas. Ainda assim, como a maior parte das interpretações, essa também não
corresponde à totalidade de seu objeto.
Korczak amava os filhos como poucos de nós estão
prontos ou capacitados a amar, mas o que
amava neles era sua humanidade. A humanidade no que ela tem de melhor – sem
distorções, sem truncamentos, sem enfeites nem mutilações, plena em sua incipiência
e nascença, cheia de promessas que ainda não foram traídas e de potenciais
ainda não comprometidos. O mundo em que os potenciais portadores de humanidade
nascem e crescem é, ao que se sabe, mais propenso a prender as asas de que a
estimular os supostos voadores a abri-las, e assim, na opinião de Korczak, era
apenas nas crianças que essa humanidade podia ser encontrada, capturada e
preservada (por algum tempo, só por algum tempo!) intacta e ilesa.
Talvez fosse melhor mudar os costumes do mundo e
tornar nosso hábitat mais hospitaleiro à dignidade humana, de modo que
amadurecer não exigisse o comprometimento da humanidade de uma criança. O jovem
Henryk Goldszmit compartilhava as esperanças do século em que nasceu e
acreditava que mudar os abomináveis hábitos do mundo estava ao alcance dos seres humanos, sendo uma tarefa viável e que
ao mesmo tempo tendia a ser realizada. Mas com o passar do tempo, à medida que
as pilhas de vítimas e os “danos colaterais” provocados tanto pelas más quanto
pelas mais nobres intenções atingiam dimensões estratosféricas, e em que a
necrose e a putrefação da carne em que os sonhos tendiam a se transformar
deixava cada vez menos espaço à imaginação, essas esperanças exaltadas foram
sendo despidas de sua credibilidade. Janus Korczak conhecia muito bem a
desconfortável mentira que Henryk Goldszmit praticamente ignorava: não pode
haver atalhos que conduzam a um mundo feito sob medida para a dignidade humana,
e ao mesmo tempo é improvável que o “mundo realmente existente”, construído dia
a dia por pessoas já espoliadas de sua dignidade e desacostumadas a respeitar a
das outras, possam algum dia ser refeito segundo essa medida.
A este nosso mundo não se pode impor legalmente a
perfeição. Não se pode forçá-lo a adotar a virtude, mas tampouco persuadi-lo a
se comportar de modo virtuoso. Não se pode fazer com que seja terno e atencioso
para com os seres humanos que habitam, e ao mesmo tempo tão adaptado aos seus
sonhos de dignidade quanto idealmente se desejaria que fosse. Mas você deve
tentar. Você vai tentar. Você o faria, de qualquer maneira, se fosse aquele
Janus Korczak inspirado em Henryk Goldszmit.
Mas como você tentaria? Um pouco como os antiquados
visionários utópicos que, não tendo conseguido tornar quadrado o círculo da
segurança e da liberdade na Grande Sociedade, transformaram-se em projetistas
de comunidades controladas, shopping centers e parques temáticos... No seu
caso, protegendo a dignidade com que cada ser humano nasce dos gatunos e
falsários que tramam roubá-la ou desvirtuá-la e mutilá-la. E você começaria pelo
trabalho perpétuo de protegê-la enquanto é tempo, durante a infância dessa
dignidade. Tentaria trancar o estábulo antes que o cavalo fugisse ou fosse
roubado.
Uma das formas de fazê-lo, aparentemente a mais
razoável, é abrigar as crianças dos eflúvios venenosos de um mundo infectado e
corrompido pela humilhação e a indignidade humanas, barrar o acesso à lei da
selva que começa justamente do outro lado da porta do abrigo. Quando seu
orfanato se mudou do endereço anterior à guerra, em Krochmalma, para o Gueto de
Varsóvia, Korczak ordenou que aporta de entrada permanecesse trancada e as
janelas de andar térreo fossem tapadas. Quando as deportações para as câmaras
de gás estavam se tornando uma certeza, Korczak supostamente se opôs à idéia de
fechar o orfanato e despachar as crianças para que buscassem individualmente a
chance de escapar que algumas poderiam (apenas poderiam) ter. Ele pode ter concluído
que não valeria correr o risco: uma vez fora do abrigo, as crianças aprenderiam
a temer, a humilhar-se e a odiar. Elas perderiam o mais precioso dos valores –
sua dignidade. Uma vez privadas desse valor, qual a vantagem de permanecerem
vivas? O valor, o mais precioso dos valores humanos, o atributo sine qua non de humanidade, é uma vida
de dignidade, não a sobrevivência a qualquer custo.
(*) Zygmunt Bauman, “um dos mais originais e perspicazes sociólogos ainda
em atividade”. Trecho do livro Amor
Líquido - Sobre a fragilidade dos laços humanos.
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