Contardo Calligaris
Assisti a "Na Estrada", de Walter Salles, na sexta passada, no Rio. E passei o fim de semana pensando na minha vida.
Assisti a "Na Estrada", de Walter Salles, na sexta passada, no Rio. E passei o fim de semana pensando na minha vida.
Li "Na Estrada", de Jack Kerouac, no fim
dos anos 1960, provavelmente em Nova York --mas talvez em Houston. O texto que
eu li era uma versão expurgada; isso, na época, eu não sabia. Não voltei ao
texto em 2007, quando a Viking publicou o manuscrito original (em português
pela L&PM). Mas o texto voltou em mim com força, na sexta-feira, quando
assisti ao filme.
Nos anos 1960, eu era um hippie lendo um
"beat". Na mesma época, "Almoço Nu", de William Burroughs,
me seduzia, mas me assustava --longe demais de minha experiência (das drogas,
do sexo e da vida). Também lia Allen Ginsberg e Gregory Corso, mas, aos dois,
preferia Lawrence Ferlinghetti --outra escolha "bem comportada", dirá
alguém.
O fato é que "Na Estrada" foi a parte da
herança "beat" da qual eu me apropriei imediatamente. Por quê? As
drogas, o álcool ou o sexo "livre" me pareciam secundários --apenas
um jeito de dizer: "Não esperem que a gente viva como manda o
figurino".
O essencial, para mim, era a junção da fome de
aventura com uma raivosa vontade de escrever. A vida se confundia com um
projeto literário que exigia os excessos: era preciso viver intensa e
loucamente, de peito aberto, para que valesse a pena contar a história. Por
isso, eu e outros podíamos, ao mesmo tempo, venerar Kerouac e Hemingway --os
quais, álcool à parte, provavelmente, não se dariam.
Pensando bem, eu fui mais um "beat"
atrasado do que um hippie. A procura por iluminações interiores e comunhões
cósmicas da idade de Aquário, tudo isso me parecia pacotilha para
"Hair", coisa da Broadway. Fiz minha peregrinação à Índia e ao Nepal,
mas considerava com desconfiança o orientalismo que estava na moda: o budismo
dos anos finais de Kerouac e Ginsberg não me parecia mais sério do que o
hinduísmo dos Beatles.
O problema é que eu era um espécimen bastardo:
"mezzo" hippie e "mezzo" maio-68 francês, "mezzo"
descendente dos "beats" e "mezzo" filho marxista do
pós-guerra europeu.
Kerouac não tinha simpatia pelo marxismo. Ele
preferia o individualismo dos que procuram uma fronteira para desbravar --pouco
a ver com um projeto de reforma social ou de revolução. Para os
"beats", aliás, transformar a sociedade seria um problema. Certo,
Neal Cassady e Gregory Corso passaram tempo na cadeia; e Burroughs, Kerouac e
Ginsberg foram censurados. Mas, justamente, num mundo que não lhes resistisse,
a vida dos "beats" perderia sua dimensão épica.
Ao longo dos anos 1970 e 1980, fazendo um balanço,
eu teria dito que, em mim, a herança marxista europeia prevalecera sobre a
herança "beat". Hoje, penso o contrário -não sei se por decepção
política ou por maturidade. Mas não tenho muitas certezas: por exemplo, minha
errância pelo mundo foi uma experiência da estrada ou uma versão
"chique" do cosmopolitismo forçado dos trabalhadores modernos?
E será que vivi como um fogo de artifício? Ou então
durar e continuar vivo se tornou, para mim, mais importante do que me arriscar
na intensidade das experiências?
O filme de Salles está sendo a ocasião imperdível
de um balanço -ainda não decidi se festivo ou melancólico. Cuidado, o balanço
não interessa só minha geração. Cada um de nós pode se perguntar, um dia, como
resolveu a eterna e impossível contradição entre segurança e aventura: quanta
aventura ele sacrificou à sua segurança?
Essa conta deveria ser feita sem esquecer que 1) a
segurança é sempre ilusória (todos acabamos morrendo) e 2) qualquer aventura
não passa de uma ficção, um sonho suspenso entre a expectativa e a lembrança.
Que você tenha lido ou não o livro de Kerouac, e
seja qual for sua geração, assista ao filme e se interrogue: se uma noite,
inesperadamente, Neal Cassady tocar a campainha de sua casa, louco de aventuras
para serem vividas e com o olhar fundo de quem dirige há horas e ainda quer se
jogar na estrada, você saberia e poderia, sem fazer mala alguma, simplesmente
ir embora com ele?
Nota. Na semana passada, neste espaço, escrevi,
como sempre, uma coluna (www.migre.me/9Ttsq).
Aparentemente, Barbara Gancia leu outra. A essa outra coluna, que eu não
escrevi, ela respondeu na sexta (www.migre.me/9TtFI).
Não sei se um mal-entendido tamanho tem conserto ou interesse. Seja como for,
hoje, comentar "Na Estrada" era decididamente mais importante, para
mim.
Contardo
Calligaris, italiano, é psicanalista, doutor em psicologia
clínica e escritor. Ensinou Estudos Culturais na New School de NY e foi
professor de antropologia médica na Universidade da Califórnia em Berkeley.
Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo
(patológicas e ordinárias). Escreve às quintas na versão impressa de
"Ilustrada".
Fonte: Folha de São Paulo / Colunistas, 19/07/2012 - 03h00
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