por Paulo Kliass
A História da humanidade está marcada por um
processo contínuo e crescente de desenvolvimento das forças produtivas e de
avanço do ser humano sobre o espaço natural. E isso se deu desde os primeiros
registros de organização social, ainda sob a forma de coletores ou caçadores
até o quadro atual de atividades que colocam em risco a sobrevivência do
planeta e da própria espécie.
Dessa foram se sucedendo os saltos propiciados pela
evolução das sucessivas formações sociais e pelo desenvolvimento
técnico-científico. Fixação territorial das comunidades e início das atividades
de agricultura e pastoreio, marcando o início dessa exploração e conquista do
homem sobre a natureza. Domínio de técnicas para geração de energia a partir de
recursos naturais (fogo). Consolidação de grupos sociais vivendo em espaços
urbanos, afastados dos processos associados à produção de alimentos.
Descobertas de novas formas de geração de energia (hidráulica), inovações para
aumento da produtividade agrícola e início do processo de transformação
produtiva sob a forma artesanal. Utilização em escala crescente dos bens da
natureza para consolidar as bases estruturais da sociedade, como os minerais e
a madeira para construir ferramentas, bens de uso, meios de transporte,
residências, palácios, monumentos, estradas e outros.
O salto industrial e o aprofundamento da degradação
Uma mudança de qualidade nesse processo foi a
inovação tecnológica que veio a propiciar a evolução da manufatura e o advento
da produção em escala industrial. O desenvolvimento científico revolucionou
setores fundamentais como saúde e transportes, possibilitando a redução da
mortalidade, o aumento populacional e o deslocamento de bens e pessoas nas
regiões e entre continentes. As descobertas relativas às fontes de energia de
combustível fóssil (carvão e petróleo) impulsionaram a conquista do homem sobre
a natureza, exatamente no momento em que o modo capitalista de produção se
afirmava como hegemônico em escala internacional. Produção e consumo em massa
se assentavam sobre o modelo colonialista em expansão, onde os países europeus
imprimiam a marca da super exploração dos recursos humanos e naturais dos
demais continentes.
Com exceção das populações tradicionais que
conviviam em harmonia com a natureza e isoladas do ímpeto do chamado
“progresso”, o avanço do modelo capitalista de espoliação do espaço natural não
encontrava barreiras. Por outro lado, as próprias experiências socialistas do
século XX não buscaram alternativas que não estivessem baseadas no extrativismo
e no produtivismo exacerbados. Tudo se passava como se o processo civilizatório
fosse sinônimo de avanço irracional da sociedade humana sobre o espaço natural.
Os resultados mais recentes desse processo milenar
estão mais do que conhecidos. O fato, porém, é que apenas ao longo das últimas
décadas os riscos de sobrevivência do planeta começaram a se tornar mais
evidentes e aceitos. Poluição generalizada e devastadora, aquecimento global,
elevação do nível dos oceanos, desastres nucleares, efeitos perversos do uso
indiscriminado de agrotóxicos e fertilizantes, incapacidade de dar conta de
resíduos e lixo, conseqüências negativas e desconhecidas a respeito do uso de
transgênicos, aprofundamento da falta de água: eis apenas alguns dos dramas que
a sociedade deveria enfrentar seriamente nos tempos atuais. Esses fenômenos
causados pela ação direta do homem aliam-se à dinâmica própria de alteração dos
ecossistemas e as conseqüências tornam-se ainda mais imprevisíveis.
Desenvolvimento sustentável “versus” economia verde
Porém, parece claro que a questão ambiental não é
uma questão isolada. Ela não pode estar dissociada da questão econômica e da
questão social. A degradação da Terra ocorre justamente pelos interesses
envolvidos no atual modelo de exploração econômica, onde a busca do lucro a
curto prazo e a exploração da força de trabalho são partes integrantes do mesmo
processo. As características da desigualdade e da concentração, tão típicas do
capitalismo, se fazem presentes no que se refere à distribuição dos recursos
naturais. A Conferência da ONU sobre o Meio Ambiente de 1992 consagrou o
conceito de “modelo sustentável”. E essa idéia força vinha sempre associada com
a necessidade de enfocar o tema da sustentabilidade em seus 3 eixos
interdependentes: a) ambiental; b) econômico; c) social.
Não é intenção deste artigo sugerir um balanço dos
resultados obtidos com a Rio + 20. Mas, de toda forma, parece consensual a
avaliação de que muito pouco foi realizado pelos governos, pelos organismos
multilaterais e pelas grandes corporações multinacionais a respeito do tema ao
longo dessas duas décadas. Como foram vinte anos dominados pelo discurso
neoliberal e pela crença na supremacia absoluta nas forças do mercado para
buscar as soluções ditas “mais eficientes”, muito pouco foi efetivado em termos
de regulação, fiscalização e controle das atividades comprometedoras do
equilíbrio do planeta – seja em escala global, nacional ou local.
Como a Conferência oficial deste ano ainda se
pautou pela inércia da influência política e ideológica dos anos de chumbo do
liberalismo irracional, as questões do mercado e da iniciativa privada
terminaram por ganhar mais espaço nos debates e na até mesmo na Declaração
Final. Aliás, essa foi uma das reclamações apresentadas pelas organizações
envolvidas com a realização da Cúpula dos Povos, evento paralelo ao oficial da
diplomacia e dos governos, organizado por um sem número de entidades envolvidas
com o tema pelo mundo afora.
Uma das novidades do documento final da Rio + 20,
“O futuro que queremos”, é a presença do conceito de “economia verde”. Apesar
de pouco esclarecedor e merecedor de uma multiplicidade de definições, o fato é
que ele abre espaço para as tentativas de consolidar a mercantilização do meio
ambiente – fenômeno já em marcha há décadas. No entanto, antes de avançar por
aqui, é importante deixar registrado que, ao longo das 59 páginas do texto da
ONU, a expressão “economia verde” sempre aparece acompanhada da expressão “no
contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza”. Ou seja,
há quem avalie que o termo ainda não se expressaria como um caminho
exclusivamente de mercado para a crise ambiental.
Os instrumentos da mercantilização
Porém, a Declaração Final não é muito mais do que
isso: apenas uma declaração de intenções. A realidade das dinâmicas econômica,
política e social operam em uma velocidade bem superior à das negociações
diplomáticas. E, aliás, isso é até natural e compreensível. Portanto,
aproveitando-se dessa distância, o conceito de “economia verde” já está há um
bom tempo sendo utilizado pelos governos, implementado pelas grandes empresas e
divulgado pelos meios de comunicação como a grande panacéia para todos os males
que o capitalismo tem provocado sobre o ecossistema. Só que a problemática é
bem mais complicada do que aparenta.
Assim, em sua tendência a universalizar as relações
mercantis, o atual sistema econômico passou a incorporar a dimensão do “meio-ambiente”
também como instrumento de acumulação e dinamização do mercado. Os primeiros
esboços concentraram-se na área de emissão de gases do efeito estufa (GEE). A
partir das determinações previstas no Protocolo de Kyoto, lançado em 1997,
começaram a surgir os “créditos de carbono”, que vieram a se constituir em
instrumentos de negociação no próprio mercado financeiro. Com isso, as empresas
que conseguissem reduzir seu volume de emissão de GEE teriam direito a emitir
esses títulos de crédito de carbono, que passaram a ser precificados e
negociados no mercado. De acordo com os padrões estabelecidos atualmente, um
crédito de carbono equivale à redução de 1 tonelada de dióxido de carbono
(CO2).
O objetivo implícito é que ele seria um mecanismo
de estimular a substituição de processos produtivos “sujos” por novos processos
“limpos”. O termo genérico desse tipo de ação ficou conhecido como “mecanismo
de desenvolvimento limpo” (MDL) e contaria com algum tipo de regulação e
fiscalização por parte da ONU, de maneira a evitar que os títulos de crédito de
carbono pudessem ser objeto de fraude e descontrole. O crescimento do volume de
títulos emitidos e a generalização de sua negociação criaram um verdadeiro
mercado, com todo tipo de produto financeiro associado. O crédito de carbono
tem uma cotação nas Bolsas de Mercadorias, tendências de alta, expectativas de
queda, operações de mercado futuro e por aí vai. Como todos os títulos
similares, está bastante sujeito a muita especulação.
Mais recentemente, outros instrumentos financeiros
passaram a ser incorporados à prática dos grandes grupos multinacionais, mas
ainda não são objeto de regulação e controle institucional. Trata-se do
procedimento de “redução de emissão por desmatamento e degradação evitados”
(REED), por meio do qual as corporações e seus empreendimentos de larga escala
buscam obter ganhos econômicos a partir de iniciativas que possam diminuir o
ritmo de destruição ambiental, como a redução de áreas de floresta ou
comprometimento de áreas envolvidas com extração mineral. E aqui novamente o
mercado financeiro pode atuar como facilitador dos negócios e da alavancagem de
projetos, pois tudo se consolida em emissões de títulos que passam a ter um
valor e são negociados nos mercados mobiliários por todos os cantos do planeta.
E como quase tudo no mercado opera com base na especulação, o que dizer de
operações sem nenhum lastro no setor real da economia?
Busca de alternativas à solução de mercado
Além disso, vale ressaltar que outros elementos da
natureza já estão submetidos ao regime de mercantilização ou correm o risco de
virem a passar pelo mesmo processo. É o caso da terra e do solo para atividades
agropecuárias, extrativas e as demais no espaço urbano. A água, em sua condição
de bem essencial para a vida, começa a dar os sinais de escassez preocupante em
escala global e não apenas nas regiões historicamente afetadas pela seca. Os
mares e oceanos pelo potencial energético, de alimentação e de pesquisa, além
da questão estratégica de ser utilizado como meio de transporte. Os ares e a
atmosfera por sua característica fundamental do oxigênio, além de outras como
água, ventos e chuvas.
Portanto, a incorporação do conceito de economia
verde no documento final da Rio+ 20 reflete o estágio atual da correlação de
forças a nível internacional. Há setores fortemente interessados em que a
dimensão do meio-ambiente continue nessa trajetória crescente de
mercantilização, com abertura de novos espaços de negócios em nome da salvação
do planeta. Porém, é preciso que se denuncie a incapacidade das forças de
mercado em darem conta dessa árdua tarefa, inclusive porque sua preocupação
maior é com o lucro imediato e não com a viabilidade no longo prazo.
A solução passa por buscas de uma abordagem
integradora da sustentabilidade, incorporando suas dimensões econômica, social
e ambiental. Afinal, não se pode exigir de países do interior do continente
africano o mesmo “sacrifício” que se propõem a efetuar as populações dos países
escandinavos. Uns ainda sobrevivem em péssimas condições, passam fome,
apresentam elevadas taxas de mortalidade, não têm acesso às mínimas facilidades
do padrão de vida do mundo dito desenvolvido. Outros se permitem até mesmo
falar em estagnação econômica, pois atingiram um padrão social típico do Estado
do bem estar.
O nível gritante de desigualdade sócio-econômica
exige que os diferentes sejam tratados de forma diferenciada. Assim, a trilha
para se alcançar uma humanidade mais justa e homogênea em termos de qualidade
de vida não deve repetir a mesma trajetória equivocada, em particular a do
padrão dos últimos 50 anos. No entanto, transformar o meio ambiente em
mercadoria e operar apenas por meio de referência de preços artificialmente
construídos tampouco se apresenta como solução para os graves problemas de nosso
tempo.
Paulo
Kliass é Especialista em
Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor
em Economia pela Universidade de Paris 10.
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