"Não há vitória do keynesianismo nem abandono da ideologia liberal", diz Fiori
CLAUDIA ANTUNES
Editora de Mundo da Folha de S.Paulo -
Desde "Poder e Dinheiro" (editora Vozes), de 1998, o cientista político José Luís Fiori se destacou como um estudioso das mudanças recentes do sistema capitalista mundial, com ênfase nos fatores políticos e econômicos que puseram fim à chamada "época de ouro", os 30 anos depois da Segunda Guerra Mundial.
Seu último livro, "O mito do colapso do poder americano" (editora Boitempo), contesta a tese de que a crise econômica originada nos mercados financeiros americanos signifique o declínio da superpotência.
Nesta entrevista por e-mail, Fiori, professor de economia política da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), analisa o momento histórico da ascensão ao poder de Margaret Thatcher, há 30 anos, e diz que a nem a crise atual nem a adoção pelos EUA e países europeus de medidas de intervenção nos mercados para conter a crise significam o abandono do ultraliberalismo associado à ex-premiê britânica.
FOLHA - A eleição de Thatcher é considerada a fronteira entre a era keynesiana e a chamada neoliberal. Ela foi de fato líder dessa mudança?
JOSÉ LUIS FIORI - O epicentro da crise dos anos 70 foi nos EUA. As principais decisões que mudaram a história político-econômica da segunda metade do século 20 também foram tomadas nos EUA. Algumas, antes da eleição de Thatcher.
A inflexão neoliberal no campo acadêmico e político começou nos EUA, já no fim dos anos 60, durante o primeiro governo Nixon [1969-1972]. Os principais responsáveis pela sua política financeira internacional --George Shultz, William Simon e Paul Volcker-- já defendiam o abandono da paridade cambial estabelecida pelo sistema de Bretton Woods e a livre circulação de capitais.
Todos eles viam nessa decisão uma forma de restabelecer o poder mundial das finanças e da moeda norte-americanas, ameaçado pelos déficits comerciais e pela pressão sobre as reservas de ouro dos EUA.
Em 1979, a política de estabilização de Paul Volcker, no governo democrata de Jimmy Carter [1977-1980], foi o verdadeiro ponto de virada na política econômica norte-americana.
Na própria Inglaterra, a virada neoliberal da política econômica também começou antes da eleição de Thatcher, durante o governo trabalhista do premiê James Callaghan [1976-1979], depois da crise cambial de 1976.
O governo trabalhista se dividiu entre os que defendiam uma "estratégia alternativa" de radicalização das políticas de controle de viés mais keynesiano, liderados por Tony Benn, e a ala, vitoriosa, dos que defenderam a ida da Grã Bretanha ao FMI e a adoção de uma política ortodoxa e conservadora que foi assumida pelo governo de Callaghan, em sintonia com o governo social-democrata alemão de Helmut Schmidt [1974-1982], que já havia aderido à mesma ortodoxia muito antes da chegada ao poder de Helmut Kohl [1982-1988]. Apesar de tudo isso, não há a dúvida de que Thatcher que foi transformada pela história na porta-estandarte da "restauração conservadora" do fim do século 20, assim como de todas as políticas e reformas neoliberais preconizadas durante aquele período.
Acho que cabe uma pergunta sem resposta para reflexão dos que se dedicam à análise da história econômica e da política internacional: como entender o fato de que, mesmo depois do que alguns analistas chamam de "fim da hegemonia britânica", seguiu-se considerando a [John Maynard] Keynes [economista britânico] e não a [Harry Dexter] White [assessor econômico de Franklin Roosevelt] a figura forte na criação do Sistema de Breton Woods; que se atribua a [Winston] Churchill [1940-45; 1951-55], mais do que a [Harry] Truman [1945-1953], a paternidade da Guerra Fria; que tenham sido os ingleses e não os norte-americanos os pais do euromercado de dólares, que está na origem do fim de Bretton Woods e da globalização financeira; que seja Margareth Thatcher, e não Ronald Reagan, o símbolo da era neoliberal; que tenham sido os ingleses e não os americanos que tenham liderado os demais países no movimento de estatização bancária para enfrentar a crise financeira de 2008, por cima dos próprios princípios ortodoxos e liberais; e que, finalmente, tenha sido o primeiro-ministro inglês, Gordon Brown, quem anunciou na reunião do G20, em Londres, o fim do Consenso de Washington? Para não falar, numa outra clave, do motivo por que Tony Blair [1997-2007], mais do que Bill Clinton [1993-2000], tenha ficado associado ao anúncio, no ano 2000, da solução anglo-saxônica do enigma do genoma humano?
FOLHA - Qual seria o marco zero do thatcherismo em sua versão internacionalizada? Alguns estudiosos sugerem o abandono, pelos EUA, do padrão ouro? Qual é a sua opinião?
FIORI - O abandono americano do padrão dólar/ouro e o fim do Sistema de Bretton Woods, em 1973, foi um momento importante da virada econômica que deixou para trás a economia política do imediato pós-guerra. Mas é preciso levar em conta o conjunto das mudanças que alteraram a trajetória do sistema mundial, além da questão monetária.
Também em 1973 ocorreu o primeiro choque do preço do petróleo, que jogou por terra a base energética do "milagre econômico" pós-Segunda Guerra e encharcou o sistema financeiro mundial com os petrodólares. Naquele ano, os EUA reconheceram sua derrota na Guerra do Vietnã, depois de iniciar sua reaproximação diplomática com a China.
É impossível dizer hoje, com certeza, o que foi mais importante para as transformações mundiais das últimas décadas do século 20, se o fim do padrão ouro, por exemplo, ou o inicio da parceria China-EUA.
O que você chama de "marco zero do thatcherismo" é uma soma de decisões e acontecimentos anteriores e posteriores à eleição de Thatcher, que envolveram alterações na distribuição do poder mundial que foram a um só tempo causa e consequência da própria mudança do sistema monetário internacional.
Basta dizer que o próprio abandono americano do padrão ouro foi uma estratégia consciente de poder, que enfraqueceu os países mais fracos e fortaleceu os países mais fortes, dentro do sistema mundial, mas sobretudo fortaleceu o poder global dos EUA, cuja elite governante nunca teve duvidas sobre o função estratégica de sua moeda.
FOLHA - A tese mais comum entre os analistas de esquerda é que o thatcherismo foi a reação conservadora a uma crise de sobreprodução nos países capitalistas centrais. Ela teria vindo não para desregulamentar, mas para regulamentar a favor do capital. O senhor concorda?
FIORI - Dizer que a reação conservadora dos anos 80 foi determinada por uma crise de sobreprodução e pela necessidade de regulamentar a favor do capital é no mínimo uma simplificação grosseira. Todas as grandes crises econômicas internacionais sempre tiveram e têm algo a ver, do ponto de vista puramente econômico,com algum grau de sobreacumulação e subconsumo, em algum ponto do sistema econômico mundial.
Mas isso não explica a especificidade de cada crise. É impossível acreditar que a gigantesca transformação mundial depois da década de 1970 foi apenas resposta a mais uma crise de sobreprodução nos países capitalistas centrais.
As crises têm um papel central na análise marxista do capitalismo. Mas elas também acabaram ocupando um papel às vezes que favorece distorções no imaginário da esquerda: toda nova crise capitalista seria sempre anúncio do fim do capitalismo.
O problema é que depois que as crises passam, como o capitalismo não terminou e a revolução não aconteceu, a maioria desses analistas acaba encontrando uma nova explicação funcional para a crise. A crise não era terminal, era apenas uma solução oportuna para um problema estrutural do capital, inventada pelo próprio capital e sua classe dirigente.
Isso já aconteceu com a crise econômica de 1870, e voltou a acontecer com as crises de 1930 e 1970, e está acontecendo de novo com a crise de 2008. Talvez fosse hora de parar de repetir o mesmo erro e aprender um pouco com a história.
FOLHA - A crise econômica atual trouxe de novo ao primeiro plano as teses do economista John Maynard Keynes. Trata-se de abandono completo do liberalismo?
FIORI - Não há hoje, no campo da política econômica, uma vitória teórica do keynesianismo nem um abandono da ideologia liberal. Todas as medidas que vêm sendo tomadas para enfrentar a crise são uma reação emergencial e pragmática frente à ameaça de colapso do poder dos Estados, das moedas e dos bancos, e, como consequência, da produção e do emprego.
Foi uma mudança de política imposta pela força dos fatos e não por uma nova convicção teórica ou ideológica dos governantes mundiais. É como se estivéssemos assistindo à inversão automática da famosa frase de Thatcher: "There is no alternative".
Só que o novo consenso nasceu de forma abrupta e sem nenhum entusiasmo ou mobilização política, ao contrário do que aconteceu com a virada liberal-conservadora dos anos 80.
É verdade que as teorias de origem neoclássica e as políticas ortodoxas saíram do primeiro plano. Mas elas permanecem atuantes em todos as frentes de resistência às políticas em curso. Além disso, as novas políticas não significam a morte da ideologia econômica liberal porque, ao contrário do que pensa o senso comum, o keynesianismo também é liberal.
Keynes era um liberal, e sua teoria recupera algumas teses essenciais do ultraliberalismo econômico dos fisiocratas do século 18 e do próprio liberalismo de Adam Smith. Os fisiocratas franceses consideravam indispensável um "tirano esclarecido" para o bom funcionamento das sociedades de mercado. E o próprio Smith defendia a necessidade do Estado para assegurar o funcionamento da sua mão invisível, sempre que fosse necessário proteger os capitais nacionais ou realizar investimentos de infraestrutura que não fossem cobertos pelo capital privado.
Talvez por isso os trabalhistas e os social-democratas europeus tenham trocado com tanta naturalidade as teses keynesianas pelas politicas neoliberais na década de 70, assim como estão se convertendo de novo ao ideário keynesiano.
Do meu ponto de vista, os neoclássicos e os keynesianos pertencem à mesma família ideológica liberal, e, em política econômica, defendem estratégias que podem ser complementares e que muito provavelmente são indissociáveis dentro do capitalismo. Na verdade, são retóricas e políticas econômicas que atendem a interesses e a funções diferentes, mas intercambiáveis, dependendo do tempo e do lugar.
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