É CARNAVAL, ACELERA AÍ !
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Bloco Olodum na Avenida Sete - Politeama Foto: Ivan Ferreira |
Ivete acelerou! O trio elétrico passou reto, não parou um segundo sequer, fez uma graça que só deu para vê-la rapidinho, o chão da praça não balançou direito, o trio pisou fundo, saiu embalado. Tinha de ser assim mesmo? Será que havia um compromisso urgente mais adiante? E então ficamos nós parados, boquiabertos. Faltou aquela pausa nas rodas do caminhão, a grande estrela esqueceu de conter o motor que não tinha tempo. Parar a máquina e aquecer o coração de quem esperou na praça lotada, cheia de muitos fãs. Também queria o prazer de escutá-la, mas com o veículo freado. Não vibrei como antes. Anos atrás, gravei uma música cantada por ela no celular, fiz um clip para o Youtube, não esqueço, ela brilhava mais, deu uma palhinha para o “pipoca” lhe acompanhar, momento que pareceu uma eternidade, minutos contados, presenteados, depois ela seguiu no pique dela, deixando o pessoal estropiado, de pular ao som do trio, alimentado pelos bordões mais cantados, e as mãos levantadas indicava um adeus, enquanto todos ainda tiravam o pé do chão. Seguiu Ivete, e a gente com os olhos de emoção, de suor, cerveja e felicidade, ela seguiu na direção do Relógio de São Pedro, radiante, para a Praça Castro Alves, voltando de novo a incendiar mais gente noutro canto da cidade.
Olha, foi pouco o carinho, quase uma decepção essa passagem, dela, pela Piedade, Ivete acelerou mesmo! Em pleno início da tarde de sábado (07/03). Pensei, seria uma consequência da mutação que sofre o carnaval de Salvador? Cidade da alegria, que em anos recentes vem recebendo recursos de grandes empresas como parceiros dessa inigualável festa, com influência clara desses patrocinadores? Também refleti: a grande indústria de produtos e serviços (de bebidas, eletro-eletrônicos, cosméticos, dos bancos etc) parece desconhecer ou não considerar a importância do crescente contingente da população que ano a ano vem ocupando os pontos centrais dessa festa, o que possibilitou somar, abrir, consequentemente um acentuado e variado volume de comércio, trabalho, temporários, mas de valor significativo para a economia local; pois, é responsável pelo escoamento de tudo que é consumido no interior dessa festa sem fronteiras.
O “pipoca”, em sua maioria é gente simples, a rigor, sem fantasia; sai de qualquer jeito, são tipos fantásticos, ambulantes (que também vivem da e na festa), trabalhadores aproveitando o feriadão, desempregados inclusive (10,7% em janeiro, dado do IBGE), crianças de colo, garotos super-heróis, meninas enfeitadas pelas mães, jovens ansiosos pelo namoro e o primeiro beijo (roubado), malhados espaçosos, pagodeiros remexendo a bunda, o povo da periferia, se acotovelando, todos gente cidadã da grande metrópole, e também a sabedoria dos idosos e aposentados conhecedores dos “antigos carnavais”. Se “atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu”, também não vai quem vê o caminhão “acelerado”, ir embora sem “notar” a vontade dos foliões que esperam tanto ansiosos para curtir o seu ídolo, sentir o som do caminhão parado, escutar (ao vivo) por um tempo juntos, gritar bem alto, ao primeiro chamado.
Sabe, desisti da maratona carnavalesca, nessa hora, voltei pra casa preocupado, magoado, pelo “pipoca”, como um “pipoca”, apesar de não me considerar um ouvinte integral do axé, ou admirador incondicional da Ivete, só esperava algo melhor, na moral.
Já descansado, liguei a TV, lá estava o prefeito João falando algo para ser ouvido; o entrevistador obtinha como resposta os números da arrecadação (R$ 15 milhões) obtida por meio de parcerias com o setor privado, verba para ser alocada nas necessidades da organização e montagem do carnaval, recursos oriundos de patrocinadores para serem empregados no evento que atrai centenas de milhares de turistas e muito mais baianos que investem antecipadamente, e esperam por isto o ano inteiro. O carnaval vem se profissionalizando mais e mais a cada ano. Tudo isso seria muito bom caso a “pipoca” desfrutasse igualmente dessa festa tanto quanto os foliões do circuito Barra-Ondina, lugar onde parece receber cuidados distintos, maiores recursos, melhor estrutura (circuito de monitoramento digital com transmissão de dados e imagens por fibra ótica, iluminação especial, câmeras permanentemente ligadas em tudo que acontece etc), maior fluxo de trios, artistas nacionais de destaque, o foco das principais emissoras de televisão, uma vista de matéria global e internacional. Os helicópteros sobrevoam o circuito de ângulos inimagináveis, as câmeras revelam (quase) tudo por suas lentes. Há uma política de segurança mais inteligente atuando que impõe respeito. É, vemos se formar uma distribuição diferenciada dos foliões no novo traçado que forma o carnaval soteropolitano. Números e projeções antecipam dados sobre “o melhor carnaval dos últimos anos”, são ótimas as expectativas para os investidores e parceiros do Estado e da Prefeitura.
A busca de melhores oportunidades de negócio e de lucro amplia o brilho produzido pelo grande evento, que é mostrado e observado por gente de todo o planeta. Hoje mais que nacional, é internacional, e os esforços são redobrados para que ele fique com uma cara ainda mais profissional, empresarial, globalizado. Obviamente, o carnaval caiu nas mãos do poder do grande mercado, e nesse processo vai enriquecendo os grandes grupos econômicos, e é uma mina muito valiosa para os polpudos ganhos de estrelas globais, que arrastam a alegria dos foliões e dos patrocinadores com cacife e lastro para investimentos rentáveis.
É evidente, o carnaval depois de eletrizado (por Dodô, Osmar e Armandinho), está ficando elitizado. Há foliões com espaços privilegiados, benefícios da crescente profissionalização do carnaval, tudo de bom, pois pagam por uma “festa particular”, embora se realize bem no bojo de um caldeirão de energia popular. O sucesso da festa se comprova quando ressaltado através de breves informes institucionais, indicando menos violência na estatística oficial, apresentando resultados “extremamente positivos” do ponto de vista de determinadas variáveis de controle, principalmente as relacionadas com a segurança publica. Na verdade, o planejamento atual repete o dos carnavais passados, e além disso mostra que os problemas de transporte (coletivo, táxi) para atender a grande demanda, agravou-se ainda mais nesse período, inclusive com a migração acentuada de foliões para o circuito Barra-Ondina, que mesmo com toda boa intenção dos governos e o jogo de interesses dos produtores, se mostra realmente insustentável. Resta ver outras informações diretamente ligadas ao tratamento dado ao meio ambiente (as praias do circuito Dodô ao final do carnaval mostram danos ambientais sérios, causados pelo lixo acumulado e resíduos deixados pelos foliões que se vão), sobre o trabalho e a saúde da população envolvida no evento, dados de consumo geral e dos camarotes, o orçamento dos grandes trios, a distribuição de renda promovida nesse período, os reais impactos na economia local.
Paulatinamente, o carnaval vai deixando de ser, digamos, como era. Sem saudosismos. Isso sob um ponto de vista que é bom para alguns, no melhor sentido econômico. Vemos o crescimento de um carnaval que é reflexo de grandes marcas, de empresas multinacionais de peso, que leva os ídolos para demandas de outras regiões, países, com outra agenda, com contratos milionários, objetivando mais os interesses desses mercados, segmentos específicos, que “importam” foliões de qualquer lugar, que aumentam expectativas e os recursos necessários para o Estado e município aplicarem na grande festa, portanto, mais ganhos para as empresas e comerciantes.
E a “pipoca” como fica? Tem opção, tem lugar, tem praça, é o que nisso tudo? Certamente tem a emoção, e o coração batendo forte. A cantora Daniela, rainha do axé, num certo instante, de cima do trio, desabafou: “quando cheguei aqui, não queriam preto aqui, não queriam gay, nem lésbica... hoje pode tudo aqui... somos tudo isso, podemos ser o que quiser, somos gente”. Um discurso emblemático, de uma mulher guerreira, sem demagogia, espontânea e sem hipocrisia. Achei um desafio e tanto se dirigir ao povo, ao “pipoca”, colocando essa questão publicamente, assim na lata, expondo-se em cima do palco ambulante, o trio elétrico.
O compositor e cantor, Moraes Moreira, em entrevista cedida a tv Record, após o “encontro de trios” (vi mais trios no Arrastão da Barra-Ondina na quarta-feira de cinzas), também declarou: “no carnaval da Bahia pode tudo, só não pode se esquecer do povo, do “pipoca”, que não pode ficar marginalizado fora das cordas...”. Também sou “pipoca”, sim! Apertado entre as cordas esticadas dos blocos e as paredes das casas de comércio e os edifícios da avenida, porque? Sou parte dessa maioria da população que incrivelmente faz acontecer o carnaval popular. Somado aos vários fatores sócio-econômicos que influem, aqui não pontuados, somos empurrados para a margem mesmo, socados por cordeiros mal preparados, cutucados ostensivamente e intimidados pela passagem da tropa policial, porque quando o pau come a repressão sempre baixa o pau no “pipoca” -sabe-se lá, “são todos pretos, quase brancos, quase pretos...” -, talvez pobres vagabundos, sem noção de autoridade, a violência solta, quem sabe; uns ignorantes da lei, uns sem educação. Muitos vagam pela arquitetura anárquica do centro da cidade e pelas imediações do circuito Osmar, “sem lenço, sem documento”, sem direção, são assemelhados a “penetras” na grande festa do “novo circuito” do carnaval.
O calor no asfalto aumenta, o verão desaba do céu, esquenta ainda mais. O “pipoca” compra quatro “piriguetes” por cinco reais na promoção, bebe uma “batida do diabo” numa barraca improvisada perto dos sanitários químicos, mastiga uma comida exposta à poeira e ao tempo, belisca um “churrasco de gato” na farofa, abatido não se sabe onde, contrariando os avisos da Saúde pública, que preventivamente cuida das DST e AIDS, distribuindo camisinhas para o folião desprevenido para o sexo seguro. O “pipoca” carrega a lôra fria no latão por dois reais, bebidas de tipos variados, tem de todo preço, que são comercializadas livremente – “aquela verde é de menta”-, excessos. Levam à boca a garrafa d’água, as bolhas frescas do refrigerante, embalagens depositadas no “líquido gelado” do isopor encardido e remendado, onde bóiam outras latas, outras “coisas”, tudo junto ao mesmo tempo agora. O trocado que traz escondido do “dono” é para matar a sede insaciável, minimizar a fome de um estômago que ronca o dia todo sob um sol que arde, esturricante. Todos circulam obrigatoriamente pra lá e pra cá esperando um trio, o seu ídolo, que demora demais, e na espera se batem uns com os outros sem qualquer intenção, e riem à toa, mesmo que seja curtíssimo o tempo que passem em companhia da alegria tão aguardada; o folião “pipoca” se acha muito bem preparado para o carnaval, feliz no meio desse inferno na terra, chapa fervente, purgatório de processos e patologias humanas. Quer extravasar, brincar até cair, cansado, grogue, inconsciente da realidade, tontos com toda essa infalível droga , que pode conduzir, tanto ao drama, à overdose, quanto ao devaneio, ao delírio de estar no paraíso. Há quem percorra o caminho do meio.
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Ivete no circuito Barra-Ondina Foto: Dilson Silva/AgNews |
Percebe-se claramente a velha política da boa vizinhança de alguns políticos, dançam no meio do povo dando seu recado, no Campo Grande é muito comum, fazem o agá no lugar e hora certos, e são elogiados pelos artistas saídos do povo, novos ganhadores da loteria dos patrocínios, aquela verba, que dá expressão a muitos talentos do gosto popular, fazedores da alegria “aqui e agora” do “bloco da pipoca”. A Praça Castro Alves quase nem aparece mais na televisão, insiste-se em revitalizá-la (Saulo Fernandes deu uma força a alguns artistas que ficaram fora da mídia), pensa-se em retomá-la como parte do grande circuito (“ano que vem, Daniela Mercury voltará para a Avenida Sete, circuito Osmar, depois de dois anos afastada”) será, ou é só boato? A Praça tem uma importância histórica, é a origem do carnaval, os braços do poeta, mas parece que o encontro de trios ficou para o apagar das luzes, só para o bloco da “pipoca”.
O Pelourinho, também, é parte desse circuito histórico, resgata o “carnaval da magia”, das marchinhas, e tem a presença de artistas como Mariene de Castro, Sarajane, Gerônimo, Pepeu, Moraes Moreira e grupos que, estiveram mais presentes em carnavais passados, hoje animam com o samba de roda, afoxé, samba reggae, frevo e com repertórios que marcaram época. Lá tem shows sobre palco fixo, muita gente bonita de todo lugar, o “pipoca” brinca livremente, arrasta a sandália, interage no encontro com artistas reconhecidos, compositores e cantores da boa música baiana, brasileira. A TVE (órgão oficial que tem um papel importante na manutenção desse circuito) é a única que se destaca nessa divulgação, as demais, fazem matérias relâmpagos, dão um tapinha e logo voltam para o circuito Dodô ou para o Campo Grande. Até onde irá a magia do Pelourinho? Da Praça do Poeta? Também, devo ressaltar, não mostram (muito) do carnaval de bairro na grande mídia. Certo é, que o mapa da folia mudou, fez-se outro, a geografia econômica do carnaval foi redesenhada.
Ironicamente, justamente o povo que compra as centenas de milhares de cd’s e dvd’s (e os artistas reconhecem isto), mal pode ver o seu ídolo. Um comércio fantástico que premia produtores, cantores e autores, empresários agentes econômicos vitoriosos desse mercado “oligopolizado”, de estrelas globalizadas, um excelente negócio. Infelizmente, os consumidores representados pelo “bloco da pipoca” (acredito que a maioria presente nas ruas durante o carnaval) ficam sem o devido retorno do seu ídolo, dos organizadores, das instituições, e ainda assim continuam sendo admiradores, fãs não atendidos, mesmo com o direito legítimo de ser feliz, brincar uma festa melhor, que poderia ser realmente melhor. Afinal, a divulgação de uma vendagem superior a 500 mil discos é boa para quem? Na passagem, Ivete agradeceu ao público da praça por todo seu sucesso de vendas, mas ficou devendo aquela paradinha, um simples agrado para o seu público fiel da Piedade.
Embora isso tudo esteja acontecendo, o carnaval dos baianos ainda se mantém popular, pois existem os blocos afro (Ilê Ayê, Filhos de Gandhy, Olodum, Araketu, Muzenza, Male Debalê etc) que “mesmo desfilando quando as câmeras estão desligadas", eles constituem o melhor dessa festa maravilhosa. Sem esquecer da presença significativa, também importante, dos demais blocos tradicionais (Mudança do Garcia, Os Corujas, Pinel, As Muquiranas, Inter, Traz a Massa etc), pois, eles oferecem uma participação popular decisiva na construção do carnaval baiano, com sua base cultural, presente na beleza musical, percussiva, rítmica, das melodias e na expressão corporal, que são riquezas da criatividade das composições e danças populares. A força do carnaval é essencialmente de natureza coletiva, surge das comunidades. Felizmente temos esse outro lado, da face original da festa, com seus talentos artísticos, que exige prioridade, atenção, das autoridades, uma maior preocupação e importância dos recursos obtidos através de parcerias interessadas no grande evento. Esses componentes de características arraigadas no trabalho social, cultural, plural e inclusivo, simultaneamente popular e universal, são sustentados na matriz da alma popular e suas relações de generosa distribuição da alegria, sem o que não seria "o melhor carnaval do mundo".
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