A irresponsabilidade moral da ideologia sem reflexão
No início dos anos 90 encontrei e levei para casa a edição, com licença editorial para o Círculo do Livro por cortesia da Editora Nova Fronteira mediante acordo com Éditions Gallimard, do “O Livro do Riso e do Esquecimento” do Milan Kundera. Ainda não havia lido “A Insustentável Leveza do Ser" que logo depois busquei para juntar à pilha de livros que me interessava sobre a mesa do escritório. Era imprescindível a leitura desse exemplar que também reforçava aquela reflexão e tratava com primazia literária o entusiasmo das ideias absolutas, expondo a irresponsabilidade moral das ideologias que matam sem reflexão nenhuma.
'O Livro do Riso e do Esquecimento', de Milan Kundera, denuncia os perigos do entusiasmo da cegueira ideológica. A reflexão que está colocada se desdobra em paralelo com outras obras do autor, especialmente 'A Insustentável Leveza do Ser', e que também é enriquecida com contribuições de pensadores como Albert Camus e Hannah Arendt.
Milan Kundera aborda, com amargura e lucidez, o papel dos "entusiastas" na construção dos regimes comunistas da Europa Central. Ele rejeita a visão simplista de que tais regimes foram frutos de criminosos perversos. Pelo contrário: surgiram de idealistas sinceros, convencidos de estarem abrindo caminho para o paraíso na Terra. Esses idealistas, ao aceitarem prisões, perseguições e assassinatos como etapas justificáveis da construção utópica, tornaram-se assassinos em nome do bem. E quando o "paraíso" mostrou-se ilusório, os mesmos defensores apelaram à ingenuidade: "Fomos enganados! Acreditávamos!" Kundera denuncia aqui a irresponsabilidade moral camuflada pela fé política, que pode ser também uma desculpa para uma pura covardia. A sinceridade de uma crença não absolve a participação nos crimes que ela desencadeia.
Em 'A Insustentável Leveza do Ser', Kundera retrata os efeitos humanos dessa repressão. O personagem Tomas perde sua profissão por manter sua integridade moral diante do regime. A obra sugere que a leveza de não se comprometer é ilusória, pois também implica custos éticos. A filósofa Hannah Arendt, em 'As Origens do Totalitarismo', também tratou da banalização da maldade, onde indivíduos comuns, sem maldade pessoal, tornam-se cúmplices de sistemas destrutivos. Para Arendt, o perigo está em obedecer cegamente, sem refletir.
Albert Camus, em 'O Homem Revoltado', alerta que o homem que mata em nome da justiça transcendente acaba por instaurar novos infernos na Terra. A revolta legítima, segundo ele, deve ser limitada pela consciência.
Kundera se alinha a essa visão crítica: os horrores da História não vieram apenas da crueldade consciente, mas também da paixão cega por ideias absolutas.
O alerta de Kundera é claro: toda ideologia que se propõe absoluta, que dispensa o indivíduo e o espírito crítico, pode gerar tragédias, e a história, os fatos, comprova a sua repetição - mesmo quando nasce de corações "inocentes".
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