Paralaxe Cognitiva: Contradições entre Discurso e Prática - Parte 2
O caso brasileiro contemporâneo oferece um exemplo particularmente revelador de paralaxe cognitiva institucional no domínio judiciário. O Supremo Tribunal Federal (STF), concebido constitucionalmente como guardião da Carta Magna e árbitro da separação de poderes, tem sido acusado de praticar precisamente aquilo que deveria coibir: a usurpação de funções constitucionalmente atribuídas a outros poderes.
A paralaxe cognitiva manifesta-se na seguinte contradição: no discurso oficial, o STF apresenta-se como defensor intransigente da Constituição, da democracia e do Estado de Direito; na prática, segundo críticos, a Corte tem exercido funções legislativas através de interpretações expansivas que não apenas aplicam, mas efetivamente criam normas jurídicas, invadindo a competência do Poder Legislativo.
Como observa o constitucionalista Ives Gandra Martins (2015), essa postura judicial representa uma inversão da lógica republicana: o poder não-eleito, que deveria ser o mais restrito justamente por carecer de legitimidade democrática direta, tornou-se o mais expansivo, operando com discricionariedade que ultrapassa os limites constitucionais estabelecidos.
O garantismo penal, originalmente concebido por Luigi Ferrajoli (1989) como sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado para proteção dos direitos individuais, tem sido reinterpretado no contexto brasileiro como ferramenta de ativismo judicial. A ironia da paralaxe cognitiva é evidente: uma doutrina que visa limitar o poder estatal é instrumentalizada para expandir o poder de uma instituição estatal específica — o judiciário.
Lenio Streck (2017) identifica esse fenômeno como "protagonismo judicial", no qual juízes substituem suas preferências pessoais pela vontade do legislador democraticamente eleito, sob o pretexto de realizar "justiça substancial" ou proteger direitos fundamentais. A contradição reside em que essa prática, embora apresentada como defesa da democracia, efetivamente subtrai do povo e seus representantes eleitos a capacidade de autodeterminação legislativa.
Hermenêutica Constitucional ou Legislação Pretoriana?
A distinção entre interpretação constitucional legítima e criação judicial de normas tem sido objeto de intenso debate. Ronald Dworkin (1986) defendeu que juízes inevitavelmente fazem escolhas normativas ao interpretar textos legais, mas essa concessão teórica não equivale a carta branca para legislação judicial.
No contexto brasileiro, decisões sobre temas como união homoafetiva, criminalização da homofobia, aborto de anencéfalos, e execução provisória de pena têm gerado controvérsia precisamente porque, para críticos, representam não interpretação, mas inovação normativa — função reservada ao legislador pelo artigo 2º da Constituição Federal, que estabelece a independência e harmonia entre os poderes.
Como aponta Dimitri Dimoulis (2018), a expansão do controle de constitucionalidade no Brasil transformou o STF em uma instância revisora de todas as decisões políticas fundamentais, invertendo a presunção de constitucionalidade das leis e tornando o processo legislativo refém de antecipações sobre o que a Corte considerará aceitável.
A estrutura da contradição pode ser formulada assim:
Discurso declarado: "Somos guardiães da Constituição, respeitamos a separação de poderes, e nossa função é aplicar, não criar, o direito."
Prática observada: Decisões que criam obrigações não previstas em lei, que invertem jurisprudência consolidada por razões extrajurídicas, que impõem políticas públicas sem previsão orçamentária, e que substituem o juízo de oportunidade e conveniência do administrador e do legislador pelo juízo subjetivo do magistrado.
O Paradoxo da Judicialização da Política
A judicialização da política no Brasil, fenômeno analisado por Oscar Vilhena Vieira (2008) como transformação do STF em "Supremocracia", revela outra camada da paralaxe cognitiva: quanto mais o judiciário expande seu poder sobre questões políticas, mais vulnerável torna-se à politização — precisamente o que sua função de árbitro imparcial deveria evitar.
Ministros que se apresentam como técnicos apolíticos engajam-se em ativismo que pressupõe escolhas valorativas profundamente políticas. A neutralidade judicial, valor declarado, convive com decisões que claramente privilegiam determinadas visões de mundo sobre outras — escolhas que, em uma democracia funcional, caberiam aos representantes eleitos.
Consequências Sistêmicas
A paralaxe cognitiva do ativismo judicial brasileiro produz efeitos deletérios para a democracia:
1. Deslegitimação do processo legislativo: Por que cidadãos investiriam energia no processo democrático se decisões fundamentais serão tomadas por 11 pessoas não-eleitas?
2. Infantilização da sociedade civil: A transferência de decisões políticas para o judiciário subtrai da esfera pública o debate necessário para maturação democrática.
3. Insegurança jurídica: Se a lei significa o que o STF disser que significa, e essa interpretação pode mudar conforme a composição da Corte, a previsibilidade jurídica — fundamento do Estado de Direito — evapora.
4. Corrosão da separação de poderes: O sistema de freios e contrapesos perde eficácia quando um poder assume funções de outro sem mecanismos de controle.
Como argumenta Ran Hirschl (2004) em "Towards Juristocracy", a expansão global do poder judicial não necessariamente fortalece a democracia; pode, ao contrário, representar uma forma de elites jurídicas preservarem seu poder contra processos democráticos majoritários.
A Auto-Atribuição de Poderes Ilimitados
Um aspecto particularmente problemático da paralaxe cognitiva judicial brasileira é a auto-atribuição de competências. O STF tem julgado casos nos quais ele próprio define os limites de seu poder — uma evidente situação de conflito de interesses institucional. Como observa Nuno Garoupa (2011), sistemas jurídicos saudáveis estabelecem mecanismos externos de controle sobre o judiciário; quando a Corte suprema torna-se juiz de suas próprias prerrogativas, o sistema de accountability colapsa.
A contradição atinge seu ápice quando o STF, invocando a defesa da democracia, adota medidas que restringem liberdades democráticas fundamentais (como inquéritos sem prazo definido, relativização do devido processo legal, ou criminalização de discurso político), invertendo a relação meio-fim: a democracia deixa de ser o valor protegido para tornar-se instrumento retórico de legitimação de poderes extraordinários.
É necessário reconhecer que defensores do ativismo judicial apresentam argumentos que merecem consideração. Luís Roberto Barroso (2009) argumenta que em contextos de disfuncionalidade legislativa, omissão do Executivo, ou ameaça a direitos fundamentais de minorias, o judiciário deve atuar proativamente. Essa visão, contudo, pressupõe juízes-filósofos platônicos, imunes às paixões políticas, e sobretudo fiéis as suas prerrogativas de função — pressuposto empiricamente questionável diante dos fatos que todos presenciam na realidade brasileira.
Além disso, como nota Jeremy Waldron (1999) em "Law and Disagreement", sociedades democráticas caracterizam-se por desacordos morais profundos sobre direitos fundamentais. Transferir essas decisões do legislativo para o judiciário não elimina o desacordo; apenas o remove do domínio público para câmaras judiciais, empobrecendo o debate democrático.
O exemplo do ativismo judicial brasileiro é particularmente instrutivo: mostra como instituições podem inverter completamente sua função declarada. Quando guardiães tornam-se transgressores, quando árbitros tornam-se jogadores, quando intérpretes tornam-se legisladores, testemunhamos não apenas hipocrisia individual, mas colapso estrutural da arquitetura institucional que sustenta o Estado Democrático de Direito.
A consciência da paralaxe cognitiva deve nos tornar mais humildes em nossas certezas, mais céticos de nossas próprias racionalizações, e mais dispostos a examinar as contradições que sustentam nossas próprias posições — sejam elas políticas, ideológicas ou institucionais. Como escreveu F. Scott Fitzgerald, "a marca de uma inteligência de primeira classe é a capacidade de manter duas ideias opostas na mente ao mesmo tempo e ainda assim conservar a capacidade de funcionar."
O desafio não é eliminar a paralaxe cognitiva - uma tarefa quase impossível -, mas desenvolvê-la em direção à honestidade intelectual: reconhecer abertamente nossas contradições, trabalhar para reduzi-las onde prejudicam nossa integridade, e aceitar aquelas que são inevitáveis dadas as complexidades da existência social moderna. Mais importante ainda, devemos estabelecer mecanismos institucionais que limitem o poder de indivíduos e instituições de agir contra seus próprios princípios declarados - sistemas de accountability que funcionem independentemente da virtude pessoal dos atores.
Em última análise, a paralaxe cognitiva persiste porque oferece vantagens: permite mobilização retórica sem comprometimento prático, distinção moral sem sacrifício material, expansão de poder sob pretexto de restrição. Sua superação exige não apenas clareza, mas honestidade intelectual, coragem moral para alinhar discurso e prática - mesmo quando esse alinhamento implica perda de privilégios, poder ou prestígio.
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