Paralaxe Cognitiva e o Discurso Ideológico da Esquerda - Parte 1
A análise das contradições entre discurso ideológico e prática política constitui um dos temas centrais da crítica conservadora contemporânea. O conceito de "paralaxe cognitiva" — definido como a capacidade de manter simultaneamente dois sistemas de pensamento mutuamente contraditórios sem reconhecer explicitamente a incompatibilidade entre eles — oferece uma ferramenta analítica para examinar o posicionamento da esquerda política em relação ao capitalismo democrático. Ao investigar a tese de que existe uma dissonância estrutural entre a retórica anticapitalista da esquerda e sua dependência prática das estruturas do sistema que afirma combater, descobre-se uma complexa relação entre a teoria e a práxis das organizações e movimentos da esquerda.
O termo "paralaxe cognitiva" foi popularizado no ambiente intelectual conservador brasileiro por Olavo de Carvalho, inspirado nas reflexões do filósofo Eric Voegelin sobre a consciência revolucionária. Para Carvalho, a paralaxe cognitiva representa "a capacidade da mente ideologizada de sustentar dois padrões de pensamento mutuamente excludentes, operando em níveis diferentes de consciência, sem jamais confrontá-los diretamente".
Esta estrutura mental permite que um indivíduo ou movimento político defenda princípios abstratos — igualdade radical, abolição da propriedade privada, superação do capitalismo — enquanto suas ações concretas contradizem sistematicamente esses princípios. Roger Scruton observa fenômeno similar ao descrever o "duplo pensamento" da esquerda intelectual, que "denuncia privilégios enquanto os usufrui, condena hierarquias enquanto as perpetua, e ataca o sistema que lhe garante voz e sustento".
O anticapitalismo constitui elemento identitário central da esquerda desde o século XIX, e Karl Marx estabeleceu as bases desta crítica ao caracterizar o capitalismo como sistema de "exploração sistemática do trabalho pelo capital", gerador de alienação, desigualdade e antagonismo de classes. Esta tradição crítica atravessou o século XX e permanece viva no discurso progressista contemporâneo.
A retórica anticapitalista contemporânea apresenta o capitalismo não meramente como modelo econômico imperfeito, mas como estrutura moralmente condenável — "sistema opressor", "máquina de desigualdade", "regime de exploração". Thomas Sowell nota que esta linguagem carregada moralmente cumpre função estratégica: "transforma questões econômicas complexas em confrontos morais simples, facilitando a mobilização política ao custo da precisão analítica".
A contradição manifesta-se quando examinamos a prática concreta dos movimentos e intelectuais de esquerda em democracias capitalistas. Como observa Paul Hollander em seu estudo clássico sobre intelectuais progressistas, existe "padrão recorrente de denúncia apaixonada ao capitalismo combinada com usufruto sistemático de seus benefícios".
Universidades constituem epicentros da crítica anticapitalista, produzindo teorias sobre desmantelamento do capitalismo, críticas à mercantilização do conhecimento e denúncias da lógica de mercado. Paradoxalmente, estas mesmas instituições:
• Operam como corporações, com estruturas administrativas burocratizadas
• Estimulam a doutrinação ideológica através de base bibliográfica e avaliações seletivas pelo viés ideológico
• Dependem de doações de fortunas capitalistas
• Investem fundos patrimoniais em mercados financeiros
• Comercializam propriedade intelectual através de patentes
Russell Kirk observou que "a academia progressista construiu castelos de crítica anticapitalista sobre fundações capitalistas, sem jamais reconhecer a ironia estrutural desta posição". Críticos do capitalismo utilizam intensivamente tecnologias e plataformas produzidas por corporações multinacionais — Google, Meta, Apple, Amazon — para disseminar mensagens anticapitalistas. Como nota David Horowitz, "a revolução anticapitalista do século XXI é patrocinada inadvertidamente pelos maiores capitalistas da história".
Influenciadores progressistas monetizam conteúdo anticapitalista através de publicidade e patrocínios.
Jornalistas que denunciam o "capitalismo predatório" dependem de conglomerados midiáticos, consórcios, privados para suas carreiras. A contradição raramente é tematizada.
Partidos de esquerda em democracias capitalistas participam de processos eleitorais garantidos por constituições liberais, financiam campanhas através de doações privadas, e quando no poder, administram economias capitalistas sem transformá-las estruturalmente. Como argumenta William F. Buckley Jr., "a esquerda democrática aprendeu a parasitar o sistema que teoricamente deseja destruir".
A União Soviética oferece caso paradigmático. Enquanto proclamava construir sociedade sem classes, desenvolveu sistema de privilégios para a nomenklatura tão pronunciado quanto as capitalistas. Robert Conquest documentou extensivamente como "a elite soviética usufruía luxos materiais — carros importados, dachas exclusivas, acesso a bens ocidentais — negados à população comum, tudo sob retórica de igualdade socialista".
A Venezuela sob Chávez e Maduro exemplifica a paralaxe cognitiva contemporânea. O regime denunciava neoliberalismo e imperialismo capitalista enquanto suas elites acumulavam fortunas em bancos suíços, compravam propriedades em Miami, e dependiam da exportação de petróleo para mercados capitalistas globais.
A persistência desta contradição sugere que não se trata de mero acidente ou hipocrisia individual, mas de funcionalidade estratégica e sistêmica. A paralaxe cognitiva cumpre dupla função:
Mobilização Retórica - O discurso anticapitalista radical mobiliza bases, cria identidade de grupo, estabelece distinção moral contra adversários políticos. Como observa James Burnham, "a retórica revolucionária opera independentemente da viabilidade prática, sendo avaliada por eficácia mobilizadora, não por coerência lógica".
Sobrevivência Prática: A aceitação tácita e usufruto das estruturas capitalistas garantem recursos materiais, visibilidade midiática, proteções legais e espaço de atuação. Theodore Dalrymple nota que os "intelectuais de esquerda não buscam realmente destruir o sistema — buscam posição privilegiada dentro dele, posição que deriva precisamente de sua crítica ao sistema".
As implicações desta dinâmica produz consequências para a saúde democrática:
1. Erosão da Confiança: A percepção pública de incoerência entre discurso e prática corrói confiança em instituições e lideranças políticas.
2. Radicalização do Debate: A retórica anticapitalista extrema polariza discussões, dificultando compromissos pragmáticos necessários à governança democrática.
3. Deslegitimação da Crítica: Contradições evidentes enfraquecem críticas legítimas que se poderia fazer a excessos e injustiças reais do sistema.
O rigor e a honestidade intelectual exige reconhecer limitações desta análise. Primeiro, contradições entre ideais e prática — afetam todo espectro político. Segundo, participar de um sistema não invalida automaticamente críticas a ele; caso contrário, toda reforma seria impossível.
Contudo, a questão específica permanece: movimentos que se definem fundamentalmente pela oposição ao capitalismo, mas dependem estruturalmente dele para existir, enfrentam contradição que merece escrutínio. Como argumenta Anthony Daniels (Theodore Dalrymple), "não se trata de proibir críticas ao capitalismo, mas de exigir que críticos reconheçam honestamente sua dependência daquilo que criticam". Nesse contexto a hipocrisia é abertamente usual e faz parte da prática normalizada de ações e contradições da esquerda no mundo.
A análise da paralaxe cognitiva aplicada ao discurso anticapitalista da esquerda revela padrão de contradição estrutural: no plano teórico, o capitalismo é denunciado como sistema de exploração a ser superado; no plano prático, suas estruturas são indispensáveis à sustentação material, institucional e comunicacional da própria crítica anticapitalista.
Esta contradição não representa necessariamente má-fé individual, mas fenômeno sistêmico que permite à esquerda manter relevância política através de retórica radical enquanto opera confortavelmente dentro das instituições que critica e condena. Como observa Roger Scruton, "a esquerda contemporânea não busca realmente destruir o capitalismo — busca controlá-lo, moralizá-lo, e extrair dele recursos materiais e simbólicos que garantam sua posição de crítico privilegiado".
O desafio intelectual não é simplesmente denunciar hipocrisia, mas compreender como e por que esta contradição persiste, que funções cumpre, e que alternativas existiriam para movimentos políticos que buscam genuinamente transformar sistemas dos quais necessariamente fazem parte. A paralaxe cognitiva revela menos sobre defeitos morais específicos e mais sobre tensões inerentes à crítica social radical em sociedades abertas — sociedades que, ironicamente, apenas democracias capitalistas têm tolerado sistematicamente.
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