Pessoa e Borges: quanto a mim, eu
por Sabrina Sedlmayer, Edições Vendaval, Lisboa, 2004.
DO ENCONTRO
(...)
Sabemos que os caminhos se bifurcaram, e o encontro em Lisboa entre o sedentário Pessoa, de 35 anos, e o viajante Georgie, então com 24 anos, nunca ocorreu. Entretanto, se se tivessem encontrado, prossegue Monegal, qual seria o teor da conversa? Borges faria uma defesa do Ultraísmo, corrente vanguardista à qual estava vinculado? Pessoa, que nesse tempo já estava afastado das vanguardas, precisamente do Interseccionismo, tendo até perdido o seu fiel companheiro do tempo de Orpheu, Mário Sá-Carneiro, demonstrando o seu enfado e a sua desilusão diante do livro Sodoma Divinizado, de Raul Leal? Borges falaria da sua primeira publicação intitulada Fervor de Buenos Aires e do seu anseio de se tornar um bardo bonarense? Discorreriam acerca da literatura inglesa? Descobririam um universo de livros, uma galeria de autores em comum?
Curiosamente, na carta, Borges fala de amizade. Sabemos que de Homero a Cícero, passando por Aristóteles, depois por Montaigne, a amizade sempre foi vista como uma das mais altas virtudes humanas, capaz de implantar em nós a reciprocidade e a cumplicidade [4]. Ausente da prática filosófica por muito tempo graças a censura cristã, que a considerava um amor desviado, por não ser dirigido a Deus, mas a um ser finito, Borges resgata esse tema marginal e identifica-o, novamente, como exercício de livre-arbítrio e de correspondência. Mas, nesse caso específico, para funcionar como elemento atenuante, um deslocamento da figura do precursor. Ou seja, anulando a seqüência temporal, defendendo a horizontalidade em detrimento da verticalidade, a amizade permitiria a ilusão identitária de que ambos escritores se constituiriam ao mesmo tempo, e que a literatura é um campo de encontro entre semelhantes, e, por ser diversificado, propício ao deslocamento. O eu torna-se ele (desejo de Pessoa, desejo de Borges):
A amizade perfeita se torna indivisível. Cada um se entrega tão inteiramente que não existe nada mais para se dividir. Ao contrário, lamenta-se não ser duplo ou triplo ou múltiplo e não ter várias almas para as entregar todas ao mesmo tempo.[5]
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