Encontro de Saberes na UNB
- Valor: Gratis
- Fonte: Alexandre L'Omi L'Odò. Quilombo Cultural Malunguinho http://www.alexandrelomilodo.blogspot.com/
A alergia dos signos
Saí rápido do salão indo até o corredor, sentei calmamente para calçar os tênis evitando contar os minutos da espera, sentido certo de que teria mais um encontro prazeroso com Ludmilla, ela me reconhece intimamente e o coração bate acelerado no seu tempo.
Repentinamente Ludmilla aparece na área, levanto a cabeça ao vê-la e começamos a papear na freqüência e intensidade das sinapses elétricas de nossas células. Pra-ra-ti-bum, raios, sinos, o relógio pára. Existe algo valioso entre a gente. O olho não mente quando o coração dispara e provoca o espírito da coisa e o instinto indefectível da carne.
-Você está melhor da alergia (respiratória)? Melhorou da tosse? Fui puxando assunto.
- Sim. Ela respondeu.
Continuei: Eu tive que me tratar quando criança, sempre sofri de alergia (das vias respiratórias)... nós os geminianos - quis pôr a cor dos nossos signos na idéia, sabendo que nascemos quase no mesmo dia, um ontem e o outro hoje -, temos essa característica de somatizar as emoções, uma tendência de sofrer com as alergias trazidas pelas vias aéreas - pensei em falar da terapia como uma responsável pela revolução do meu metabolismo, da renovação da vida e a auto-regulação propiciada, quando mudei meu pensamento complementando minha atitude de maneira diferente, consequência da criatividade, da poesia presente na gente -, mas, temos (nós geminianos) outras benesses, não é?
Ludmilla de imediato completou:
- É, ser (muito) volúvel. E sem dizer mais nada Ludmilla desceu rapidamente os degraus em um inusitado silêncio que ficou no ar me deixando na esperança de abraçá-la mais uma vez.
Fátima que havia “pegado o bonde andando” caiu de pára-quedas e emendou o texto de Ludmilla fazendo uma alusão acintosa, relacionando o modo de ser de meu astral geminiano (o mesmo signo de Ludmilla) ao (um suposto comportamento) “volúvel” ou “muito volúvel” que tinha acabado de ouvir. Uma intervenção no mínimo estranha.
- Ela está falando dela. Comenta Ana Clara convicta e com “ar de psicanalista” atenta às palavras soltas (que na maioria das vezes “de solta não tem nada”) ditas com naturalidade por Ludmilla, mas que para nossa percepção representou um claro lapso.
Mas Fátima retruca com sua perspicácia querendo indicar que foi uma observação óbvia sobre o “volúvel” eu mesmo. Ela como minha melhor amiga sabendo de histórias passadas de certas relações que não guardo segredo pra ninguém, logo ela que considero demais, apontava um fogo amigo poderoso e oportunamente disparado nessa ocasião. Deduzi pelo reforço na expressão dela, apropriada a situação, ao parecer se eximir da autoria temperada com uma pitada de poison, diferente da colocação feita anteriormente por Ludmilla, agora estava mais que munida de inerente “achometro” distorcendo a conotação da palavra “volúvel”, a qual se transformou numa implícita e forte indicação valorativa direcionada ao meu apaixonado coração geminiano. O que Fátima queria informar com esse julgamento?
Em uma sintonia original Ana Clara ratificou: Não falei de você Fátima, não me referi a você quando disse “ela falou dela” (como volúvel) e sim, falei do que ela (Ludmilla) disse mesmo pra si, numa referência (hum) tanto quanto terapêutica que diz: ao falarmos do outro estamos sim, nos revelando.
Levantei apressando os movimentos descendo as escadas tentando acompanhar Ludmilla, a chamei com a voz meio nervosa em um tom agudo suave mesclado de sorrisos:
- Isso é uma séria colocação... Ludmilla, pera aí, venha cá! Insisti. Mas ela se foi, entrando na noite úmida, reparei que logo foi acolhida por alguém que a esperava do outro lado da rua.
Respirei. Pausa. Só pretendia esticar um pouco mais o nosso papo gostoso, de admiração mútua e instigante, numa maior aproximação de nossas energias. A lua nos ignorou passando pela emoção daquele curto instante de nosso encontro interrompido.
Fátima também já chegara ao térreo se distanciando, eu e Ana Clara combinávamos uma “carona” minha, a pé, até o seu carro.
Daí pensei:
Existiu uma acusação fria, de ser volúvel? Seria uma direta fatal (segundo Fátima, em seu papo reto), ou não passou simplesmente de uma declaração contextualizada sobre o jeito de amar dos geminianos?
Sei que possivelmente posso estar errado na interpretação, dessa coisa de ser o destinatário do “volúvel”, mas de uma certeza eu tenho, indubitavelmente escrevo aqui sobre essa condição inverossímil, nesse momento:
- Declarar “eu te amo”, confessar estar apaixonado faz tanta diferença, detona uma força atômica orgânica. E digo e repito de uma única vez por todas, quando mudo meu taco de direção (pois confio nele), é porque tomei todo o cuidado na completa confirmação de que o outro (o “feminino”) não está em sintonia de nenhum diálogo afetivo. Um não como razão, é sinal de ficar fora da parada, considero um não, um não. Respeito profundamente as escolhas, nem aprofundo em nóias. No máximo roubo um beijo para jogar uma pá de cal (se acontecer a rejeição) e descomplico o processo abrindo espaços; posso sofrer com minha liberdade de opção, sem evitar buscar superar meus processos, para continuar vivendo sem a dúvida que trava o crescimento, tentar ser mais feliz com minhas próprias asas, amar como animal saudável e caminhar por outras praias com sentimentos sem as pedras do rancor ou ciúmes que pesem. Leve desenlaço. Afinal, diz-se que coração dos outros é terra que ninguém anda, só se sente, e é importante permanecer bem se for verdadeiro! O que mais posso dizer?
Como esbarrar num amor que nos transforme? O filme "Tinha que Ser Você" dá uma dica preciosa |
QUANDO A VIDA da gente está emperrada (o que não é raro), será que faz sentido esperar que um encontro, um amor, uma paixão se encarreguem de nos dar um novo rumo? Provavelmente, sim -no mínimo, é o que esperamos: afinal, o poder transformador do encontro amoroso faz o charme de muitos filmes e romances.
Os especialistas validam nossa esperança. Jacques Lacan, o psicanalista francês, dizia, por exemplo, que o amor é o sinal de uma "mudança de discurso", ou seja, na linguagem dele, de uma mudança substancial na nossa relação com o mundo, com os outros e com nós mesmos. Claro, resta a pergunta: o que significa "sinal" nesse caso?
Duas possibilidades: o amor surge quando está na hora de a gente se transformar ou, então, é por amor que a gente se transforma. Não é necessário tomar partido: talvez as duas sejam verdadeiras.
Seja como for, volta e meia, alguém me pede uma receita: como esbarrar num amor que nos transforme? A resposta trivial diz que os encontros acontecem a cada esquina: difícil é enxergá-los e deixar que eles nos transformem, ou seja, difícil é ter a coragem de vivê-los. Aqui vai um exemplo.
O filme "Tinha que Ser Você", escrito e dirigido por Joel Hopkins, além de ser uma pequena dádiva, oferece uma "dica" preciosa sobre as condições que fazem que um amor "engate". É a história de um encontro ao qual os protagonistas tentam dar uma chance -a chance de transformar suas vidas.
Parêntese. Harvey (Dustin Hoffman) está na casa dos sessenta, e Kate (Emma Thompson) na dos cinquenta. É possível ver no filme uma parábola em prol da idéia de que nunca é tarde demais para deixar que um amor nos dê um novo rumo.
O título original, "Last Chance Harvey" (última chance Harvey), iria nessa direção: é agora ou nunca. Pode ser, mas talvez toda chance que a vida nos dá seja mesmo a nossa última.
Fora isso, o filme começa nos mostrando que a vida de Harvey é tão emperrada quanto a de Kate. Em ambos, há uma certa decepção por não conseguir (ou não ter conseguido) aventurar-se a viver seus sonhos -ser pianista de jazz para Harvey, e romancista para Kate. Os dois estão sozinhos e conformados com uma certa mediocridade afetiva: Kate se encaminha para ser a filha que cuidará para sempre da velha mãe, e Harvey já desistiu de ser o pai da filha de quem ele se distanciou, muitos anos antes, no divórcio que o separou da mãe dela.
Em suma, Harvey e Kate estão precisando de uma mudança.
Por que o encontro de Harvey e Kate teria mais sucesso do que os encontros às escuras que Kate se permite, de vez em quando? Por que eles não balbuciariam apenas a estupidez inibida que é habitual nesses casos? Simples, mas crucial: a conversa deles começa com uma sinceridade quase cínica. A "cantada" inicial de Harvey é o oposto do fazer de conta que é a regra das relações sociais, pois Harvey se apresenta confessando o fracasso de sua vida.
Logo, Harvey e Kate passeiam por Londres discorrendo e se conhecendo. Os espectadores descobrirão se eles saberão dar uma chance ao encontro ou, então, voltarão cada um para seu "conforto".
O passeio pela cidade evoca dois filmes de Richard Linklater, que estão entre meus preferidos, "Antes do Amanhecer", de 1995, e "Antes do Pôr-do-sol", de 2004.
No primeiro, Jesse (Ethan Hawke) e Celine (Julie Delpy) encontram-se, passam um dia nas ruas de Viena e, enfim, separam-se. No segundo, eles se encontram de novo, em Paris, nove anos depois, e, também passeando, imaginam, de alguma forma, a outra vida que poderia ter sido a deles se, no fim daquele dia em Viena, eles tivessem apostado no futuro de seu encontro.
Aqui, uma recomendação prosaica que emana dos três filmes: se você procura um grande encontro amoroso, sempre use calçados confortáveis, porque nunca se sabe por quantos quilômetros se estenderão suas deambulações amorosas.
Brincadeira à parte, os filmes de Linklater talvez sejam mais tocantes -entre outras coisas, porque eles conferem uma beleza melancólica a uma desistência que é muito parecida com as renúncias às quais nos resignamos a cada dia. Mas o filme de Hopkins, "Tinha que Ser Você", é mais generoso, porque ele nos deixa com uma sugestão: o diálogo que leva ao amor, que dá a cada um a vontade de se arriscar, não surge da sedução e do charme, mas da coragem de nos apresentarmos por nossas falhas, feridas e perdas.
Pessoa e Borges: quanto a mim, eu
por Sabrina Sedlmayer, Edições Vendaval, Lisboa, 2004.
DO ENCONTRO
(...)
Sabemos que os caminhos se bifurcaram, e o encontro em Lisboa entre o sedentário Pessoa, de 35 anos, e o viajante Georgie, então com 24 anos, nunca ocorreu. Entretanto, se se tivessem encontrado, prossegue Monegal, qual seria o teor da conversa? Borges faria uma defesa do Ultraísmo, corrente vanguardista à qual estava vinculado? Pessoa, que nesse tempo já estava afastado das vanguardas, precisamente do Interseccionismo, tendo até perdido o seu fiel companheiro do tempo de Orpheu, Mário Sá-Carneiro, demonstrando o seu enfado e a sua desilusão diante do livro Sodoma Divinizado, de Raul Leal? Borges falaria da sua primeira publicação intitulada Fervor de Buenos Aires e do seu anseio de se tornar um bardo bonarense? Discorreriam acerca da literatura inglesa? Descobririam um universo de livros, uma galeria de autores em comum?
Curiosamente, na carta, Borges fala de amizade. Sabemos que de Homero a Cícero, passando por Aristóteles, depois por Montaigne, a amizade sempre foi vista como uma das mais altas virtudes humanas, capaz de implantar em nós a reciprocidade e a cumplicidade [4]. Ausente da prática filosófica por muito tempo graças a censura cristã, que a considerava um amor desviado, por não ser dirigido a Deus, mas a um ser finito, Borges resgata esse tema marginal e identifica-o, novamente, como exercício de livre-arbítrio e de correspondência. Mas, nesse caso específico, para funcionar como elemento atenuante, um deslocamento da figura do precursor. Ou seja, anulando a seqüência temporal, defendendo a horizontalidade em detrimento da verticalidade, a amizade permitiria a ilusão identitária de que ambos escritores se constituiriam ao mesmo tempo, e que a literatura é um campo de encontro entre semelhantes, e, por ser diversificado, propício ao deslocamento. O eu torna-se ele (desejo de Pessoa, desejo de Borges):
A amizade perfeita se torna indivisível. Cada um se entrega tão inteiramente que não existe nada mais para se dividir. Ao contrário, lamenta-se não ser duplo ou triplo ou múltiplo e não ter várias almas para as entregar todas ao mesmo tempo.[5]