Horácio caiu da cama. Outra vivência que virou um iceberg e se transformou em um desafio, ele teria que refletir sobre uma das suas evidentes fraquezas – a entrega -, um exercício que parecia fácil, mas que por sua intensidade derramou-se sobre o resto do dia em uma preocupação aflitiva. Tudo seria uma questão de entender a mensagem que recebera ao fim de mais uma caminhada, uma intuição clara, todavia também um aviso, algo que ele até suspeitava vir a qualquer momento no vento, e ele nem deu o primeiro passo, afastou de sua sensível visão qualquer perigo, pois o medo não influenciava sua vida, talvez por não suportar uma certa ordem, um padrão, mas, ele nem tinha conta do real significado dessa vivência até chegar em casa, os seus medos lhe venceriam, por enquanto. O som do coração conspirava e batia desafinado lhe ajudando em sua reflexão prematura.
Há alguns meses ele nem desconfiaria de que retornaria a esse árido terreno, tendo que respirar o ar quente, corredeira de carrapichos, rios rachados e nuvens ralas a lhe apontar direções. Na ausência de perspectivas em lhe aparecer sequer um pequeno oásis, lá ia seu longo olhar no horizonte virando quilômetros de terra seca, nada de avistar qualquer sentimento que servisse ou valesse a pena preencher o seu coração de estudante. O lugar que lhe acolheria mais próximo, ele conhecia, estava acostumado, tinha certeza que duraria, não tinha poesia, mas lhe parecia seguro.
Após horas de caminhada avistou um olho d’água, apressou-se e chegou a um estreito córrego, mais adiante parou e curvou-se pescando algumas flores que flutuavam a beira do que ele chamou de riacho, isso cresceu uns metros mais a frente enchendo um pequeno rio, ele assoviou imitando pássaros, dançou, e continuou com suas migalhas de alegria, contemplando o rastro do sol cair na água doce. No outro lado da margem Horácio percebeu uma agitação que para ele seria apenas mais uma aglomeração de jovens tomando banho, pelados, e outros brincando de jogar pedrinhas achatadas para que contassem quantas vezes elas saltitavam na tensão do espelho líquido. Para ele um passatempo esquecido desde a sua grande infância e adolescência, menos interessante que pescar flores, pétalas de poesia, sabendo que depois elas murchariam e iriam, leves, dobradas em livros em essências mais fortes, independentes dele, e continuariam se juntado a outras sem ligar para a fria correnteza que já lhe tomava meia perna de calça. Horácio sentiu que sua alegria se afastava com a breve partida daqueles jovens que avistara no riacho, atores vigorosos, amantes da farta natureza humana, então, retirou-se cabisbaixo envolvido no calor que restava da emoção das brincadeiras que ainda ressoavam em sua memória, nos últimos raios da tarde. Ele já não era mais assim, disposto ao risco de experienciar tantos sentimentos, movimentos mais fortes que o seu coração poderia suportar. Já pensava duas vezes em atravessar o novo rio, participar dos jogos inevitáveis da vida, das aventuras loucas que o rio lhe apresentava. Sua sorte estava de férias, teria de buscar alguma ajuda para compartilhar a viagem.
Essa sem dúvida foi a experiência mais rápida e fecunda que Horácio já teve numa entrada de primavera. A simplicidade do encontro e a complexidade com que se dissipou o aroma das pétalas em fuga, mais uma tentativa de entrega, um diálogo afetivo interrompido, uma comunicação só permitida pela sua identidade preservada. O significado desse movimento não se rompia, e a energia transferida ou recebida se manteria no seu movimento como o próprio sentimento guardado. A reação de Horácio seria circunstancial, se dando em função do que teve de calar dentro dele por mais uma estação. Ele mexeu em águas profundas aparentemente superficiais, remoinho de emoções fortes, mergulhara no caos, e agora procurava não se entregar a uma correnteza muitas vezes sem fundo e sem volta. A ponte mais próxima servia, antes que se afogasse próximo da beira. Agarrou-se na terceira margem, na certeza de ver um outro dia amanhecendo. Apesar de ter feito muito, a vida continuava constante.
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