A locomotiva chinesa está realmente levando consigo, na pista de alta velocidade, o resto da Ásia para o nirvana econômico? Na realidade, o crescimento da China tem se realizado às expensas do Sudeste da Ásia. Os baixos salários impulsionaram os fabricantes locais e estrangeiros a deslocar suas operações da zona do Sudeste Asiático, com salários relativamente altos, e deslocá-las para a China. O contrabando maciço de mercadorias da China desbaratou praticamente todas as economias da ASEAN. O artigo é de Walden Bello.
Walden Bello - Huffington Post
Data: 21/03/2010
Com as negociações da Rodada de Doha da Organização Mundial do Comércio, os pesos pesados do comércio internacional se lançaram numa corrida para alinhavar acordos comerciais com sócios menores. A China tem sido um dos países mais agressivos nesse jogo, como se tornou claro em 1° de janeiro, data em que entrou em vigor a Área de Livre Comércio China-ASEAN ou CAFTA (China ASEAN Free-Trade Area).
Apresentada como a maior zona de livre comércio do mundo, a CAFTA agrupará 1,7 bilhões de consumidores com um produto interno bruto de 5,9 trilhões de dólares e um comércio total de 1,3 trilhões de dólares. Com o acordo, o comércio entre a China e Brunei, Indonésia, Malásia, Filipinas, Tailândia e Cingapura, mais de 7000 produtos passaram a circular livres de impostos. Em 2015, os membros mais recentes da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) – Vietnã, Laos, Cambodja e Miamar – irão se somar ao acordo de tarifa zero.
Especialmente em Beijing, as fábricas de propaganda vêm proclamando que o acordo de livre comércio traria “benefícios mútuos” para a China e a ASEAN. Em troca, a retórica triunfal tem estado ausente por parte da ASEAN. Em 2002, ano em que o acordo foi assinado, a presidenta das Filipinas, Gloria Macapagal-Arroyo, aplaudiu a emergência de um “grupo regional formidável”, que rivalizaria com os Estados Unidos e com a União Européia. Parece que os líderes da ASEAN começaram a se dar conta das consequências do que acordaram, que nesta zona de livre comércio a maioria das vantagens serão da China.
À primeira vista parece que a relação China-ASEAN tem sido proveitosa. Ao fim e ao cabo, tem sido um fator-chave de desenvolvimento do Sudeste Asiático a demanda da economia chinesa crescendo a um ritmo frenético, que começou em 2003, depois do baixo crescimento que se seguiu à crise financeira asiática de 1997-98.
Para o conjunto da Ásia, a China foi em 2003 e no começo de 2004 um importante motor de crescimento para a maioria das economias da região, segundo um informe das Nações Unidas, “as importações do país cresceram inclusive mais do que suas exportações, com uma grande proporção das mesmas procedentes do resto da Ásia”. Durante a atual recessão internacional os governos da ASEAN confiaram na China – que registrou uma taxa de crescimento anual de 10,7% no último trimestre de 2009.
Uma visão mais complexa
Porém, a locomotiva chinesa está realmente levando consigo, na pista de alta velocidade, o resto da Ásia para o nirvana econômico? Na realidade, o crescimento da China tem se realizado às expensas do Sudeste da Ásia. Os baixos salários impulsionaram os fabricantes locais e estrangeiros a deslocar suas operações da zona do Sudeste Asiático, com salários relativamente altos, e deslocá-las para a China.
A desvalorização do yuan chinês em 1994 teve o efeito de desviar do Sudeste Asiático parte do investimento estrangeiros direto. A tendência da ASEAN de perder terreno para a China se acelerou depois da crise financeira de 1997. Em 2000, os investimentos estrangeiros diretos na ASEAN reduziram-se a 10% de todo o investimento estrangeiro direto na Ásia em desenvolvimento, que era de 30% na metade dos anos noventa.
O declive continuou durante o resto da década, devido, em parte, segundo o Informe dos Investimentos Mundiais da ONU, à tendência a uma “maior competência da China”. Visto que os japoneses tinham sido os investidores mais dinâmicos da região, foi recebido com muito receio um informe do governo japonês que revelou que 57% das empresas manufatureiras transnacionais japonesas achavam a China mais atrativa que a ASEAN-4 (Tailândia, Malásia, Indonésia e Filipinas).
Obstáculos numa relação comercial
O comércio tem sido uma outra área de preocupação, talvez maior. O contrabando maciço de mercadorias da China desbaratou praticamente todas as economias da ASEAN. Por exemplo, a indústria do calçado vietnamita sofreu muito com 70-80% das lojas do Vietnã vendendo sapatos chineses contrabandeados.
No caso das Filipinas, um estudo recente de Joseph Francia e Errol Ramos, da Aliança para o Livre Comércio, mostra que a indústria do calçado local também foi fortemente golpeada pelo contrabando de mercadorias chinesas. E mais, há uma ampla série de mercadorias que têm sofrido efeitos negativos, entre elas o aço, o papel, cimento, petroquímicos, plásticos e lajotas de cerâmica. Eles dizem que “muitas empresas filipinas, inclusive as que são globalmente competitivas, tiveram de fechar ou reduzir a produção e o emprego, devido ao contrabando”.
Devido ao contrabando, as cifras oficiais publicadas pela China, através de sua embaixada em Manila, que mostram que a balança de bens manufaturados e industriais da Filipinas é positiva, são questionáveis.
A CAFTA pode razoavelmente legalizar todo esse contrabando e piorar ainda mais, com isso, os já negativos efeitos das importações chinesas sobre a indústria da ASEAN.
A débâcle da "Colheita Precoce" tailandesa
Quando se trata de agricultura, as tendências estão mais claras. Inclusive sem acordo de câmbio livre, por exemplo, as Filipinas têm já um déficit de 370 milhões de dólares com a China.
Recentemente, estive em Benguet, uma área-chave de produão de frutas e verduras do país. Os agricultores estavam desanimados, quase resignados a serem destruídos pelo esperado dilúvio das mercadorias chinesas. Um funcionário do governo nacional lhes avisou de que sua única oportunidade de sobreviver era a invocação de restrições comerciais, baseando-se em queixas de que as importações chinesas não cumpriam as normas sanitárias – uma ação perigosa que poderia acarretar medidas de vingança. O governador da província se queixou de que a CAFTA atuava com má-fé, visto que a maioria dos agricultores não sabiam que as Filipinas tinham assinado o acordo lá em 2002.
Queixas igualmente amargas surgiram na Tailândia, onde o impacto do acordo Colheita Precoce com a China, sob os auspícios da CAFTA, tem estado melhor documentado.
Sob este acordo, a Tailândia e a China acordaram em eliminar imediatamente as tarifas de mais de 200 frutos e produtos agrícolas. A Tailândia exportaria frutas tropicais a China, enquanto que as frutas de inverno da China seriam escolhidas para o acordo de tarifa-zero. Contudo, as expectativas de um benefício mútuo se evaporaram em poucos meses. À Tailândia coube o cumprimento da parte do acordo.
Como anotado numa análise, “apesar do alcance limitado do acordo colheita precoce entre Tailândia e China, houve um impacto considerável sobre os setores por ele abarcados. O 'impacto considerável' foi o de eliminar os produtores de alho e cebolas roxas do norte da Tailândia e prejudicar as vendas de frutas e verduras de zonas temperadas dos Royal Projects [Foundation of Thailand]. Os jornais assinalaram que oficiais do sul da China se negavam a baixar as tarifas, como estipulava o acordo, enquanto o governo tailandês eliminou as barreiras aos produtos chineses.
O ressentimento dos produtores tailandeses de frutas e verduras diante dos resultados do acordo com a China contribuiu para o desencanto generalizado com o programa mais amplo de livre comércio do governo Thaksin Shinawatra. A oposição ao livre comércio foi um aspecto importante das mobilizações populares que culminaram num golpe militar que pôs esse regime abaixo em setembro de 2006.
A experiência tailandesa da Colheita Precoce criou consternação não apenas na Tailândia, mas em todo Sudeste Asiático. Ela fez crescer o temor de que a ASEAN se converta no desaguadouro dos setores muito competitivos da indústria e agricultura chineses, o que faria baixarem os preços devido ao trabalho urbano barato na China e ao trabalho ainda mais barato dos imigrantes das zonas rurais que chegam às cidades mais próximas. Contudo, esses temores nas bases da população caíram nos ouvidos moucos dos governantes da ASEAN que têm sido extremamente relutantes a contrariar a China.
O ponto de vista chinês Para os funcionários chineses, os benefícios de um tratado de livre comércio com a ASEAN, para o seu país estão claros. O objetivo da estratégia, segundo o economista chinês Angang Hu, é integrar mais completamente a China na economia global, como o “centro da indústria manufatureira mundial”. Uma parte central do plano consistiria em abrir os mercados da ASEAN aos produtos manufaturados chineses.
A China considera o Sudeste Asiático, que apenas absorve algo como 8% das suas exportações, como um importante mercado, com um potencial enorme para absorver ainda mais mercadorias, o que é especialmente importante, tendo em conta a crescente popularidade dos sentimentos protecionistas nos Estados Unidos e na União Européia.
A estratégia comercial da China é um “modelo meio aberto”, argumenta Hu: “comércio aberto ou livre do lado exportador e protecionista do lado importador”.
A ASEAN beneficiária? Apesar das boas palavras de Arroyo e outros líderes, em 2002, quando o acordo foi firmado, o que está muito menos claro é como pode a ASEAN beneficiar-se da relação ASEAN-China. Os benefícios não virão certamente da fabricação intensiva de mão de obra, em que a China goza de vantagem imbatível por conta de seu trabalho barato. Os benefícios tampouco viriam da alta tecnologia, já que inclusive os EUA e o Japão têm medo da notável habilidade da China em mover-se rapidamente na direção da indústria de alta tecnologia, inclusive enquanto consolida sua vantagem na produção intensiva de mão de obra.
Tampouco a agricultura da ASEAN sairá beneficiária. Como a experiência do acordo Colheita Precoce, entre Tailândia e China mostrou, a China é claramente super-competitiva numa ampla gama de produtos agrícolas. Desde produtos temperados a produtos semi-tropicais, assim como na transformação dos produtos agrícolas. O Vietnã e a Tailândia poderiam ser capazes de defender-se na produção de arroz, a Indonésia e o Vietnã, na do café, e as Filipinas na do côco e seus derivados, mas é possível que não haja produtos a serem acrescidos à lista. Ademais, mesmo se a ASEAN, sob as regras da CAFTA, pudesse ganhar ou conservar competitividade em algumas áresa de manufatura e de comércio, não é provável que a China se afaste do que Hu chama de seu modelo “meio aberto” de comércio internacional. A experiência tailandesa da Colheita Precoce ressalta a eficácia dos obstáculos administrativos que podem atuar como barreiras não tarifárias na China.
No que concerne às matérias primas, a Indonésia e a Malásia têm petróleo, que é escasso na China; e a Malásia tem estanho e borracha, e as Filipinas têm azeite de dendê e metais. A China, porém, está reproduzindo amplamente a antiga divisão colonial do trabalho, com a qual recebe recursos naturais e produtos agrícolas de baixo valor agregado e vende às economias do Sudeste Asiático produtos manufaturados de alto valor agregado.
Estancadas as negociações multilaterais sobre o comércio na OMC, os grandes países comerciais embarcaram numa corrida para celebrarem acordos comerciais com sócios mais fracos. A China está se convertendo no país com mais êxito neste jogo, tendo conseguido criar a maior área de livre comércio mundial.
Para a China os benefícios estão claros. Para seus sócios no Sudeste Asiático, nem tanto. E mais: com a provável erosão de sua indústria e agricultura locais, o Sudeste Asiático pagará um alto preço por um mau acordo.
(*) Walden Bello é colunista sênior de Política Externa, é economista e analista da “Focus on the Global South”, com sede em Bangkok, preside a Coalizão para a Abolição da Dívida e é professor de sociologia da Universidade das Filipinas.
Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: Carta Maior
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