Nossa espécie é a única, entre os mamíferos, que desconhece o ciclo
Por Contardo Calligaris
Robert Wright publicou dois meses atrás um livro, "The Moral Animal" (Pantheon Books). Não fosse hoje a tradução de um seu recente artigo no Caderno Mais! (págs. 6-4 e 6-5) o subtítulo do livro –"Eis porque somos do jeito que somos"– seria, aliás, suficiente para jogar a coisa no lixo sem tardar. Pois revela um artifício barato para nos adormecer. Convidado a descobrir o porquê, o leitor talvez esqueça de perguntar: mas somos mesmo do jeito que diz o senhor Wright?
Este escolheu, como é de praxe, autoridades presumíveis para escrever frases elogiosas na contracapa do seu livro: por exemplo – conhecidos no Brasil– Frank Sulloway, autor de "Freud Biólogo da Mente" e Peter Kramer, autor de desprezível best seller pseudomédico: "Escutando o Prozac".
De fato, Wright tem em comum com Sulloway um interesse pela biologia como campo onde os fenômenos psíquicos deveriam se explicar. Mas sua escolha de Peter Kramer é mais reveladora.
Kramer ficou famoso por propor o uso de um antidepressivo, o Prozac, como panacéia de nosso tempo, transformador da subjetividade. Chegou até imaginar um futuro diferente para uma humanidade prozaquiana e sorridente.
Wright não deveria gostar de Kramer. Ele é demasiado convencido de que nossa natureza é feita de genes para apreciar as promessas da quimioterapia intervencionista. Mas a aliança com Kramer se dá de outro jeito. Ambos participam de um clima geral onde triunfa a convicção que o real, biológico ou químico que seja, oferece ou oferecerá as respostas para todos os problemas.
Nada surpreendente. Nossa cultura deixa aos poucos de se referir a valores simbólicos, exalta a autonomia do indivíduo, mas chora sobre os belos tempos das certezas perdidas e conclama, com razão, que faltam critérios éticos. A época em que vivemos oferece duas opções substitutivas: em vez de critérios, encontramos imagens positivas ou negativas de homens e mulheres com os quais é recomendado se identificar ou não.
Em vez de sabedorias tradicionais, encontramos a autoridade do que é apresentado como a irresistível evidência do real, biológico, científico. Assim, parte da dita "comunidade homossexual" recebeu como ótima notícia a hipótese da existência de um gene da homossexualidade. Os lugares-comuns racistas de nossa cultura acharam, satisfeitos, fundamento no retorno dos testes de inteligência (cuja "cientificidade" está contestada há várias décadas).
O texto de Wright publicado neste número do Mais! vai nos dizer qual é a diferença científica entre homens e mulheres. O "gênero", Wright anuncia, não é uma construção cultural. Ele não vai perder tempo com incertas influências sociais, conjunturas familiares ou conflitos de ideais; vai nos dizer como as coisas estão assim por "natureza". Na verdade, ele vai promover ao estatuto de verdades naturais os lugares-comuns ideológicos que lhe parecem representar a realidade.
Se Wright tivesse tomado conhecimento dos trabalhos de Robert Stoller (de "Sex and Gender", Science House, 1968, até o último, "Presentations of Gender", Yale Univ. Press), talvez descobrisse que a patologia é às vezes de melhor conselho do que uma duvidosa normalidade.
Stoller mostrou que o sexo biológico de um sujeito não é constitutivo da identidade sexual. É possível ser homem ou mulher biologicamente (cromossomos, genitais externos etc.) e, apesar disso, se viver como do sexo oposto.
Esta vivência é a identidade de gênero, que se constitui a partir de uma série de fatores culturais, que ele enumerou cuidadosamente: a designação do sexo do recém-nascido pelos pais, a influência das atitudes dos pais, os padrões de manejo de seu corpo e as sensações, corporais e genitais, que confirmam ou não a designação pelos pais.
Estes fatores nunca teriam sido inventariados se Stoller não tivesse dedicado parte de seu trabalho clínico ao estudo de transexuais. Ele foi forçado a constatar a existência (e a relevância) de fatores determinantes da identidade de gênero, outros que o sexo biológico.
Além da diferença entre sexo biológico e identidade de gênero, se perfila um problema. Nem o sexo biológico, nem a identidade de gênero comandam as condutas sexuais de um sujeito.
Em suma, a mãe natureza (que, segundo Wright, misteriosamente coincide sempre com a tia evolução) mal dá conta do sexo anatômico. E este é apenas um fator lateral na constituição da identidade de gênero. A escolha de origem sexual e a orientação de nossas fantasias sexuais é outra história.
Quando Wright defende a idéia de uma diferença "natural" entre homens e mulheres, fala ou uma ingenuidade ou uma besteira. Que homens e mulheres sejam anatomicamente diferentes, já nos demos conta. Que as diferenças psíquicas entre eles como conjuntos estejam inscritas nos genes e decorram dos sexos anatômicos, aparece simplesmente falso.
Mas a maior prova da natureza ideológica e não-científica do trabalho de Wright é interna a seu discurso. Para Wright, a natureza é a evolução. Mas ele invoca a evolução para justificar uma espécie de metafísica natural das diferenças nos papéis sexuais e sociais. Parece que a evolução parou, é sempre conjugada ao passado (por exemplo: "durante a evolução, era geneticamente custoso...").
Por que parou, parou por quê? Um pensamento evolucionista consiste em pensar as mudanças, por inscritas geneticamente que sejam. Mas as mudanças são, para Wright, só as que já aconteceram, "nos tempos da evolução".
Tomamos sua tese central. Wright parte da idéia de que as mulheres são mais reservadas sexualmente que os homens, sabidamente mais caçadores, porque as mulheres reproduzem menos e portanto devem cuidar mais da qualidade dos genes dos parceiros. Os homens adoram jogar genes ao acaso, para as gerações futuras.
A pretensa constatação inicial (que as mulheres são menos promíscuas) é antes de mais nada um preconceito. Desta constatação preconceituosa, Wright deduz uma teoria fantasiosa do desejo sexual, o qual serviria aos imperativos de uma boa seleção genética para a continuação da espécie.
Ora, podemos até imaginar Henrique 8º transando com Ana Bolena e se excitando com a réplica que Hollywood lhe atribuiu: "Vou te encher de filhos”. Certamente o desejo sexual pode se sustentar com as imagens da procriação. Mas será que alguém se excita pensando nos genes que lança para a posteridade? Imagino que Wright se defenderia dizendo que a determinação do desejo pelas leis da evolução se situa aquém ou além da consciência. Embora eu pense que desejo minha parceira pelos seus belos olhos, essas fantasias estão sempre ao serviço superior de minha genética paixão de melhorar a visão das gerações futuras. E maldito seja quem deseja mulher míope!
Wright poderia ter refletido um instante no fato, banal, que a sexualidade humana tem justamente a propriedade de ser completamente desnaturada. Nossa espécie é a única, entre os mamíferos, que desconhece o ciclo; as mulheres não são férteis durante a menstruação, como fêmeas de mamíferos no cio, e a excitação sexual não depende nada da reprodução.
O próprio evolucionismo não é nenhuma norma ou lei da natureza, é a interpretação de uma contingência histórica da competição entre as espécies. A evolução darwiniana não implica nenhuma finalidade interna os seres, humanos ou outros. Mas a posição de Wright desliza de Darwin a Lamarck: ele começa por considerar a evolução selecionando as espécies que melhor se perpetuam e reproduzem e acaba imaginando que as regras da boa reprodução dirigem a sexualidade.
Ou seja, começa com Darwin (a evolução seleciona) e acaba com Lamarck (a função da perpetuação da espécie cria nossa sexualidade e nossa vida social como um órgão). Pode ser que a espécie humana seja ou venha a ser perfeitamente suicida. Certamente não pode ser que nossa compreensão de nós mesmos seja decidida pelas necessidades da reprodução.
Caso contrário, entra-se em uma armadilha teórica: como é que não dispomos de um gene ecológico que nos faça preservar nosso ambiente? Os genes da boa evolução podem ou não ser malthusianos?
Os feminismos que Wright discute e contesta em seu artigo são um adversário aparentemente fácil. Talvez defendam mesmo posições ideológicas pouco compatíveis ou contraditórias com as formas do desejo feminino em nossa cultura.
Quando, por exemplo, MacKinnon declara que cada relação heterossexual é um estupro, faz política e não ciência. Mas sua afirmação, pelo que deixa entrever de uma contradição - não resolvida entre dimensões diferentes da fantasia sexual feminina, carrega mais verdade do que o texto de Wright. Opor às afirmações feministas, por extremas e sintomáticas que sejam, um moralismo banal camuflado de inelutabilidade evolucionista, é estúpido demais.
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