Favelização das cidades
por Ari de Oliveira Zenha
por Ari de Oliveira Zenha
"Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem."
Manuel Bandeira
O capitalismo tem transformado sistematicamente as cidades em mega cidades e mais ainda, em hipercidades com população superior a 20/30 milhões de habitantes.
O desenvolvimento urbano que o capitalismo impõe ao mundo desde o seu surgimento historicamente teve e tem como centro reprodutor e de atuação as cidades. É aí que o capital se instala como modo de produção. Os assentamentos urbanos têm evoluído urbanisticamente trazendo consigo grandes núcleos urbanos que vão, na medida em que crescem, transformando estes – núcleos urbanos – numa fusão e apropriação em seu entorno das regiões rurais. Já é comum andarmos quilômetros e quilômetros dentro deste complexo de imbricamento, não sabendo aonde termina a região urbana e começa a rural, é o que os urbanistas chamam de hibridação rural/urbana.
O que tem ocorrido mais intensamente desde o inicio da década de 1980 é que, as grandes cidades aonde se localizavam as chamadas cidades industriais, têm assistido ao desaparecimento maciço das fábricas tendo como resultado a desindustrialização destas, é a urbanização sem industrialização. Este processo dual e contraditório – crescente urbanização sem crescimento econômico e emprego – tem colocado para o mundo o crescimento desmesurado da favelização urbana.
Na cidade de São Paulo as favelas, em 1970, eram de 1,2% de sua população, passando em 1993 para 19,8%, crescimento vertiginoso e explosivo de uma média anual de 16,4% ao ano na década de 1990.
Este processo de desertificação industrial não é recente no modo de produção capitalista, já ocorreu na Inglaterra nos primórdios do capitalismo e ocorreu e ocorre até hoje em todo o mundo capitalista.
O aumento generalizado da favelização é gritante no mundo, é mais intenso nos países em desenvolvimento e nos países do Terceiro Mundo aonde o crescimento urbano vem ocorrendo de forma alarmante, descontrolada e miserabilista.
O capitalismo neoliberal concebido a partir de 1970 patrocinado pelo Consenso de Washington - 1989 - colocou a situação ainda mais grave e angustiante para a maioria da sua população, expandindo vertiginosamente as favelas e cortiços. Os favelados compõem 6,0 % da população urbana nos países desenvolvidos e chega a 78,2% nos países menos desenvolvidos.
Num levantamento realizado em 2003 pela UN-Habitat coloca o Brasil com 36,6% de sua população urbana vivendo em favelas e cortiços, representando quase 52 milhões de pessoas. A maior favela do mundo encontra-se no México com quatro milhões de habitantes. Na cidade do Rio de Janeiro 23 favelas encontram-se dentro desta e 77 são periféricas.
Na cidade de São Paulo a pesquisadora Suzana Taschner diz o seguinte: “(...) o governo do Partido dos Trabalhadores (PT), a partir de 1989, tentou regularizar e melhorar a ‘imensa cidade ilegal’ dos pobres. Embora as reformas do PT tenham produzido alguns resultados admiráveis, infelizmente, com as melhorias o submercado imobiliário se consolida na favela. Terrenos e casas tornam-se bens de consumo e o preço dispara”. Os resultados do empreendimento do PT foram os surgimentos da “favela dentro da favela”, onde surgem os cortiços, onde se alugam quartos aos mais pobres dentre os pobres, como diz Mike Davis.
Nas favelas da cidade do Rio de Janeiro, devido à falta de espaço urbano (terra), aparece a procura crescente por aluguel de cômodos. Segundo Suzana Taschner com a verticalização das favelas mais antigas surgem prédios de quatro a seis andares, em geral para serem alugados.
Ao mercantilizar a terra urbana dos favelados, o sistema capitalista mundializado, de forma imperativa e implacável os considera como lixos humanos, pois para o capitalismo a existência do ser humano não passa de mais uma mercadoria a ser comercializada no grande mercado globalizado.
Diante disso o primeiro e mais famoso empreendimento de condomínios fechados (arquitetura do medo) construído no Brasil chamado Alphaville é uma verdadeira cidade na periferia, “cercada e americanizada na grande São Paulo”. Segundo Mike Davis, citando a brasileira Teresa Caldeira, diz o seguinte: (...) “a segurança é um dos principais elementos da publicidade e obsessão de todos os envolvidos”. Na prática, isso tem significado justiça com as próprias mãos contra criminosos e vadios invasores, enquanto a juventude dourada da própria Alphaville pode fazer loucuras; um morador citado por Caldeira afirma: “(...) a lei existe para os mortais comuns, não para os moradores de Alphaville”.
Outro exemplo está na cidade do Rio de Janeiro onde um condomínio fechado (vertical) encravado no bairro nobre da Barra da Tijuca é todo cercado por muros altos e cercas eletrificadas, ocupa bem dizer todo um quarteirão e seus proprietários vivem em uma verdadeira concha apartada do mundo real. Este condomínio tem campo de golfe, pista de Cooper, piscinas, restaurante, lojas de conveniência, heliporto, sauna, academia de ginástica, cercas eletrificadas, segurança 24 horas, garagem para quatro carros, na sua grande maioria importado e blindado.
Nos fins de semana o heliporto chega a ficar congestionado, pois helicópteros descem e sobem levando seus moradores para suas mansões cinematográficas em Angra dos Reis (RJ). Tudo é vigiado 24 horas por câmeras e seguranças. Só para ilustrar, quando se vai utilizar a parte de piscinas, restaurante, academias, etc., o trabalhador que controla a entrada nesses recintos, está vestido como um serviçal com roupas que fazem lembrar os serviçais da nobreza inglesa. As trabalhadoras que servem aos usuários das piscinas vestidas todas de branco dos pés à cabeça, estão impecáveis para os requisitos e deleite de luxo e limpeza de seus moradores burgueses e da alta classe media.
O servilismo dos trabalhadores destes condomínios é constrangedor, pois eles se colocam em uma posição de inferioridade, de submissão e de serventia aos desejos e caprichos de seus moradores, chegando com isso, às raias do absurdo a que um ser humano pode se sujeitar. Em várias mesas a língua falada é o inglês. Os salões de festa são todos com ar condicionado, ou seja, enquanto seus moradores fazem suas festas (durante o dia) a uma temperatura de 20 a 23 graus, do lado de fora a temperatura está próxima aos 40 graus. Mas, por ironia, a vista que se tem ao se alcançar os fundos desse condomínio é contrastante: ao longe, nas encostas, nos morros, está a maior favela do Rio de Janeiro e do Brasil, a favela da Rocinha, como querendo dizer: olhem, estamos aqui!
Ari de Oliveira Zenha é economista.
Fonte: Caros Amigos | Matéria, 15/09/2010.
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