domingo, novembro 21, 2010

outra maneira de experienciar

Da Foz a Nascente: O Recado do Rio de Nacy Mangabeira Unger (leitura e fichamento)

“A desertificação do mundo contemporâneo. Senhor da natureza e funcionário da técnica”. A crise atual nos coloca um desafio: o de saber decidir e discernir numa superação criadora deste momento para alcançar um novo patamar de pensamento, outra maneira de experienciar o mundo e a nos mesmos. Um caminho de superação no qual nos defrontamos com uma questão essencial: o que significa ser um ser humano? Que faz parte de uma trama de relações entre os aspectos da vida: condições econômicas, políticas, sociais, históricas precedentes e emergentes, forças espirituais e psíquicas. Obs.: A pergunta diz respeito a identidade do homem, sobre o relacionamento do ser humano, esta civilização, com o real. É uma pergunta a respeito do todo, da vida, do ser. Momentos que potencializa um destino histórico.
      Na cosmologia heliocêntrica o ser humano perde seu ‘lugar mais alto’ e é colocado num espaço infinito. O sol simbolizaria não apenas uma fonte de força e luz, mas também de iluminação de vida, uma centelha divina dentro do próprio ser humano, diferente do antigo geocentrismo que o ensinaria uma atitude de humildade ontológica, o estar no degrau mais baixo de uma escada que conduzia a humanidade dando uma noção de um movimento ascendente até alcançar o sagrado, podendo realizar diferentes graus de humanidade. A percepção do universo perdeu sua densidade simbólica - o universo é visto como apenas uma extensão incomensurável de espaço, mudo e destituído de sentido, esmaga o homem e o apavora, “que responde com o silêncio a seu sentimento religioso e às suas indagações morais mais profundas” [CASSIRER]. Obs.: A expulsão do sagrado do cosmo traz como conseqüência a progressiva divisão entre ciência e sagrado, entre conhecimento e sabedoria. Um mundo dessacralizado passível de cálculo e manipulação pelo sujeito humano. A perspectiva dessacralizante do cosmo é fruto da arrogância do nascente humanismo moderno.
         O homem moderno, ao recusar suas raízes cósmicas, se impõe uma espécie de auto-exílio; e ao tentar suprir esta falta se expressa num anseio insaciável de poder e controle. O ser humano esquece ou sufoca sua capacidade de fazer uma leitura simbólica do real, perdendo sua ligação com o sagrado. O projeto de dominação e controle de tudo que existe (a híbris como virtude máxima) forma o eixo em torno do qual esta civilização gravita. A idéia do lugar do ser humano no universo perde a dimensão tensional entre autonomia e transcendência e assume um caráter unidimensional – a expansão do poderio humano sobre tudo.
Obs.: De maneira crescente, o homem moderno pensa sua liberdade na razão direta de sua capacidade de prescindir de qualquer lei que lhe seja externa, tão mais livre quanto mais ele domina o mundo.
Ser real significa ser um objeto para o sujeito humano. A natureza passa a ser vista como uma reserva de matéria-prima, um objeto de uso, cujo valor reside somente em atender aos desejos humanos. Busca segurança não apenas pelo conhecimento da realidade, mas pela sua dominação. O projeto moderno de dominação da natureza está intimamente vinculado aos ritmos da sociedade industrial. “...uma das dinâmicas mais fatídicas dos tempos modernos: o elo inextrincável entre a dominação da natureza e a dominação do homem...” [leiss].
Obs.: Cria-se a ilusão de que, embora existam desigualdades sociais evidentes demais para serem escamoteadas, todos os homens tem igual poderio sobre a natureza.
O desequilíbrio ecológico e a planetarização de uma sociedade sob a ideologia do individualismo e da pretensa igualdade de todos caminha para uma tecnocracia totalitária, vivendo como “funcionários da técnica” [heidegger], aspectos de um mesmo fenômeno. Toda a humanidade é mobilizada pela exploração e transformação das energias disponíveis, sujeito e objeto são nivelados neste grande reservatório de matéria-prima.
Obs.: Ninguém busca a compreensão de si e do real, com a convicção de estar de posse do controle calculado da realidade.
A cristalização temática de indagações feitas pela autora encontra-se na configuração da tirania, da servidão e da amizade. Entendendo a força e o segredo da dominação a que o povo se sujeita caindo “...no esquecimento da franquia tanto e tão profundamente que não lhe é possível acordar para recobrá-la (...) Dir-se-ia que não perdeu sua liberdade e sim ganhou sua servidão” [LA BOETIÉ]. O tirano sendo um, reina sobre muitos, pela força dos que o servem. O enunciado da questão desloca o lugar tradicional da liberdade e da servidão: servidão voluntária - vontade de servir, o apoio e fundamento da tirania. A corrente da tirania perpassa a sociedade, a “vontade de servir” dissimula o desejo de participar da tirania, de ser também tirano. A servidão se fundamenta no desejo excessivo, desmedido de tudo possuir e a todos dominar. Os homens recusam a própria liberdade e empenham-se em servir ao tirano, doando-lhe sua vida e mesmo sua morte, enquanto civilização.
Obs.: A tirania do real como exercício de um projeto de domínio, controle e sujeição de tudo que existe constitui-se uma característica determinante de nossa cultura?
Nosso percurso civilizacional é governado por esta tiranização do real, rompe-se o diálogo entre o homem e o mundo, porque este se torna estático, morto, coisificado, contrariamente à percepção do real como transformação constante. A “reificação” não é só do ser humano. Mas de tudo o que vive, de tudo que é. Por estarem mais próximos da tirania, os servis, são também os mais distantes de si mesmos, recuando mais de sua liberdade, abraçando a servidão. A servidão fundamenta-se no desejo de comandar e de possuir o que se comanda. Um ganho ilusório. O ato de aproximar-se do tirano é alienar-se da própria humanidade, viver o perigo da traição constante, perder a possibilidade do amor e da amizade. “... O tirano nunca é amado, nem ama: a amizade é um nome sagrado,...” [LA BOÉTIE].
Obs.: Tomando a questão da tirania e da servidão como arquétipo de nossa inserção no mundo, devemos articulá-la com uma questão fundamental para o homem, sua medida máxima – como ele se relaciona com a morte.
“Não apenas dedicamos nossas vidas ao serviço do tirano, mas aceitamos, por ele, morrer” [LA BOÉTIE]. O desejo de servir e o medo da morte poderiam estar relacionados? A dificuldade de aceitar passar não é a mesma experiência da perda de nós mesmos, do outro, do que quiséramos estáveis e fixo e que nos escapam, coisas permanentemente em transformação? O apego ao que aí está e sua inevitável frustração não nos levariam a um esforço para projetar em algum lugar a possibilidade de permanência? A perpetuação do tirano não será a prova, ainda que ilusória, de que alguém está cima desse fluxo inevitável, que vence a força do tempo, os limites de tudo que vive?
Obs.: A aspiração humana a igualar-se aos deuses tem sua significação na hibris (tal como era vista pelos gregos) que indica desmesura e transgressão, e dá-nos indícios para pensar essa questão.
A questão da morte é o que distingue homens e deuses, pois os deuses têm a imortalidade. Desejar igualar-se aos deuses é, portanto, não passar, querer permanecer, ser também imortal. Em sua ânsia de deter o inevitável fluxo da vida, buscam a estagnação a ilusão da estagnação em forma de torpor ou sono (hypnos), para os gregos, irmão da morte (thanatos). Morte em vida, morte para a realidade que cerca o homem a todo momento, a realidade de seus limites e de sua impermanência. A causa do sofrimento humano residiria antes no apego, na recusa de passar. O tirano representaria e encarnaria o desejo de controle e dominação, tanto a força da tirania quanto o vigor da opção civilazional pela tiranização do real residiriam em sua capacidade sempre maior de legitimar a ilusão de podermos controlar o incontrolável: a inexorável passagem das horas, a mutação constante do “agora”, a indeterminação do futuro. “O deserto cresce” [NIETZSCHE], expressa o sentimento de quem está diante de uma dinâmica de civilização e presencia um momento importante deste processo de desertificação ou a ameaça de destruição de nossos recursos mais vitais (da água, do ar, das espécies vegetais e animais) e de modo mais essencial o esquecimento pelo homem da riqueza do que pode significar ser um ser humano, da condição anímica do homem contemporâneo.
Obs.: O fruto dessa dinâmica se realiza em múltiplos níveis: os vínculos sociais são rompidos em todas as classes sociais; as relações humanas se dissolvem na economia.
Estamos interpelados a viver a experiência do deserto em algum nível ou grau de percepção, quer queiramos ou não. Trata-se do impacto de uma época na qual a vida está sendo negada e que tem seu eixo na racionalização e controle de todas as coisas. Obs.: Realismo é uma palavra-chave do projeto neoliberal, que se quer pragmático e aberto, isento de pretensões totalitárias e ingenuidades utópicas. O já dado é o campo do pragmático, do que é passível de instrumentalização, planejamento e cálculo; o campo do repetitivo onde não há lugar para a criação e a criatividade.
        Os desdobramentos de um processo histórico que leva os indivíduos a um desinteresse e distanciamento tanto do espaço público quanto das esferas transcendentes, vem aumentando correlativamente as prioridades dadas às esferas privadas. A emergência de um modo inédito de civilização e de individualização com a centralidade dada ao indivíduo e seu direito cada vez mais autoproclamado de afirmar sua personalidade como modo determinante de auto-realização, à parte de quaisquer preceitos e parâmetros sociais de pretensão universalista.
Obs.: Esse processo coincidiria com uma pulverização e nivelamento de valores, questões e acontecimentos.
Quando o homem recusa sua própria finitude, aliena-se daquilo que constituiu sua humanidade e tenta dissimular o “sendo” que ele realmente é; em seu lugar, deve reinar o sujeito. O mundo deve se tornar controlável e, para alcançar este objetivo, é preciso “dividir para reinar”. O real, considerado como totalidade aberta e multidimensional, fica dividido em duas instâncias: um ego-sujeito, que passa a ser “a medida de todas as coisas” [PITAGORAS], e um objeto, que deve gravitar em torno dele, fundamento e referencia de tudo que existe. O tirano é este um que se eleva acima dos demais, nega o outro como interlocutor e igual, como par. Fazer a experiência do outro enquanto outro é fazer a experiência do limite (próprio), do mistério, do imprevisível, daquilo que não pode ser tiranizado. Pensar criticamente a representação dicotômica que recusa o caráter constitutivamente conflitivo do real e que isola e nega o outro ameaçador do reino do um (tirano) nos faz reconhecer o significado da contraposição ao um que se constitui na negação do múltiplo, a unidade como embate e combate das diferenças.
Obs.: Na discórdia é que se dá o reconhecimento do um pelo outro. Onde não existe combate, a guerra advém, como projeto de abolição do pólo oposto – implantando a paz dos cemitérios e reinando só.
A liberdade se funda na amizade, a tirania no seu esquecimento. A tiranização do real se funda em uma compreensão distorcida daquilo que significa ser um ser humano. Assumir nossa humanidade é afirmar nossa amizade co-operária com o próprio ritmo da vida: seus riscos, suas perdas, sua provisoriedade. Quando essa amizade é “esquecida”, quando o diálogo e a troca são substituídos pelo projeto de dominação e controle, o homem se isola diante da natureza e diante dos outros homens.
Obs.: Não havendo troca e encontro, antes projeto de domínio, a tiranização do real cria solidão e servidão.
As formas de aniquilamento assumem dimensões planetárias, a imagem do deserto pode simbolizar a força mortífera dos tempos modernos, a ameaça de destruição. A esta dimensão apocalíptica do deserto soma-se outra: o deserto como abandono e indiferença. A palavra indiferença remete tanto à apatia e à desmobilização como ao nivelamento de todas as hierarquias e valores, à neutralização de todas as diferenças, ao desinteresse pelo sentido. Segundo Lipovetsky vivemos uma época do ato de comunicação sobre a natureza do que é comunicado, a indiferença pelos conteúdos, a expressão pela expressão, porém veiculada e ampliada por um médium: [...] Quanto mais os indivíduos se exprimem, menos há que dizer, quanto mais se solicita a subjetividade, mais anônimo e vazio o efeito se revela.
Obs.: A equiparação e a indiferenciação de valores, idéias e experiências caminha de par com a ênfase sempre maior num espaço privado adaptável a todos os comportamentos e gostos, desprovido de referências estáveis; uma “apoteose do temporário” sem ponto de ancoragem.
A desmobilização do espaço público tem seu correlato no hiperinvestimento do privado, na exaltação da personalidade e da subjetividade; na canalização de energias no interesse próprio. Interesse instável e vacilante quanto as “subjetividades” que se constroem como forma de ocultar a experiência do vazio de sentido e valor da sociedade de consumo. Todo esse empenho de inserção produz apenas atomização e isolamento.
Obs.: Neste contexto, o processo desertificação se dá como deserção, abandono do espaço comum. O modo como se deu a planetarização do mundo contemporâneo, sob a égide do capital transnacional tem seu correlato na fragmentação que parece atravessar todos os níveis da sociedade.
O estado de isolamento, alheio aos destinos do outro, emerge tanto nas formas de produzir e viver da sociedade capitalista “digital-informatizada”, como pela exclusão social de todos que não conseguem uma adequação às novas “necessidades” do mercado. É o reverso da solidariedade social e das utopias humanistas com força política. O irracionalismo se alastra como um grande incêndio diante da miséria das relações e sentimentos humanos, num mundo inteiramente racionalizado pela economia. Apesar da retórica da democracia e da tolerância, o neoliberalismo é o fruto tardio de uma ideologia que considera o sucesso financeiro um fim em si mesmo. “[...] O deus do mercado não admite nenhum outro deus além de si mesmo e tolera apenas aquilo que se submete incondicionalmente a seus métodos” [KURTZ].
Obs.: Um dos traços do momento histórico atual é a contrafação dos dois pólos (unidade e diferença, cosmo e convivência humana), seja do um, seja do múltiplo.
A dinâmica distorcida do um se expressa como uma “globalização” que se dá com o esmagamento das singularidades de cada povo em nome de um projeto que pretende nivelar e homogeneizar as diferenças, tendo como critério a toda-poderosa funcionalidade das coisas dentro da economia de mercado. A própria dinâmica de realização da técnica impulsiona a vida humana no sentido do desenraizamento e da perda de referências. O sistema impõe uma homogeneização em todos os pontos do planeta. O desenraizamento do homem contemporâneo vê seu mundo destituído de caráter simbólico, que não se constitui como alteridade nem permite o diálogo.
Obs.: Sob o comando da vontade de poder, da recusa do sagrado, da necessidade compulsiva de reduzir a natureza e os outros homens à condição de objetos de sua ganância, ele perde simultaneamente a noção de seu lugar no universo e o contato com potencialidades constitutivas de sua humanidade. Torna-se o sem-terra.
“A revolução reverente: uma experiência sertaneja”. A metáfora do deserto expressa a realidade de um tempo destituído, mas também podemos descobrir um outro sentido, a do deserto como lugar que contêm em si múltiplas possibilidades de renovação e virtualidades da criação.
Pensar a crise é pensar também as possibilidades de sua superação. As forças de renovação e regeneração do tecido social se expressam de múltiplas maneiras e em níveis diversos, no plano individual, no plano dos movimentos sociais e correntes de pensamento.
Obs.: O questionamento ao modelo desenvolvimentista representado pela construção de barragens, surge a partir de fatos fundamentais para a população, mas irrelevante para a lógica do “desenvolvimentismo”, como espaços que guardam significados culturais e espirituais profundos: a ligação com os antepassados, com a própria história, com a terra natal. A lógica instrumental de dominação e exploração da natureza se contrapõe uma outra lógica.
Outro exemplo desse movimento de destruição: as embarcações paradas na companhia de navegação. O rio São Francisco sempre foi um caminho líquido a ligar as populações, acessível a todos, mantendo os laços afetivos, e a unidade cultural do povo barranqueiro, mas as manobras de interesses das grandes empresas de ônibus modificaram a forma de vida tradicional do povo são-franciscano. O desmatamento das matas ciliares, a implantação de projetos de irrigação salinizando e desertificando os solos do vale, a poluição do rio por dejetos industriais, lixo e esgotos urbanos; a construção de grandes barragens expulsaram populações inteiras de seu lugar, desequilibrando o meio ambiente e modificando completamente o ritmo do rio. A organização tradicional de “fundo de pasto” que era de uso comunitário, para criação de caprinos, foi limitada pela grande propriedade que se apoderou de todas as terras em volta. Apesar do incomensurável sofrimento, apesar da desagregação ética e social, ainda há lugares no Brasil nos quais o povo consegue preservar uma tessitura de símbolos, mitos e rituais, que, ainda que fragilizada e fragmentária, expressa uma relação com a vida que se dá para além dos marcos da racionalidade instrumental e da dicotomia sujeito-objeto. A sensibilidade poética, o sentimento do sagrado, a capacidade de colocar-se à escuta da natureza, correspondem às dimensões do ser humano que não dependem do saber acadêmico e não se expressam de um modo único, podendo eclodir tanto na palavra erudita quanto na linguagem do povo simples. Trata-se uma postura diante da vida que é, em si mesma, uma via de conhecimento, uma atitude de pensar, uma dimensão do pensar.
Obs.: A capacidade humana de espantar-se, de maravilhar-se, como princípio originário e constitutivo de todo filosofar, origem de algo, é a fonte de sua natureza.
Nesta dimensão do pensar, o ato de conhecer não é somente uma operação lógica, um ato do intelecto. Não se reduz a uma experiência empírica. Acolhe a presença dos seres e das coisas, o conhecimento é afinidade e correspondência. É dessa correspondência que provém a possibilidade de reconhecer a alegria do outro através da própria alegria. Tal experiência transcende a dicotomia sujeito-objeto, há um denominador comum do qual partilham, ou compartilham, todas as coisas, e que não se revela como uma coisa, mas como uma força de reunião e de tensão entre diferenças. Este reconhecimento do que é “comum a todos” constitui uma das principais vertebrações do pensamento pré-socrático. A sabedoria, ou “o sábio”, to sophon, reside em reconhecer esse comum-a-todos. Na medida em que acolhe a presença dos seres e das coisas, o ato de pensar é philia, afinidade e amizade. A amizade, entendida como inserção do homem no mundo, postura existencial, passa por uma abertura fundamental ao dinamismo do real, do qual somos também expressão. Essa abertura é solidária da capacidade humana de maravilhar-se, de encantar-se, de acolher a presença do extraordinário no ordinário; afirma uma outra ordem através da qual os diversos níveis de realidade podem ser compreendidos. O ser que se coloca em estado de afinidade e de consonância com os demais seres pode ouvir a sua voz e conhecer os seus mistérios.
Obs.: O conhecimento não é o resultado de um acúmulo de informações; não é fruto exclusivo da vontade humana, é uma benção dada àquele que está em consonância com o sagrado, receptivo aos sinais da natureza e solidário à vida em suas múltiplas manifestações. O encanto permeia a dimensão do real.
A “divina radiância” (que) “extinguiu-se na história do mundo” [HEIDEGGER], é a morada, o abrigo do extraordinário, cuja irradiação o ser humano vê somente quando habita a morada que corresponde à sua natureza mais essencial. A natureza é também a ambiência do encanto, do mistério, do extraordinário. Esta sensibilidade para fazer uma leitura simbólica do cosmo, dos fenômenos da natureza e dos ritmos da vida é uma dimensão constitutiva do homem, mesmo quando é negada, como o foi e ainda é nas sociedades modernas. Seu discurso realiza um constante vai-e-vem entre o sentimento do sagrado, a amizade com os seres da natureza e a solidariedade ao outro ser humano. Neste modo de ser, a solidariedade tem um sentido não somente ético, mas cognitivo.
Obs.: Esse diálogo pressupõe a relação entre um eu e um tu; não pode acontecer entre um sujeito e um objeto. A natureza retrai-se, “ela se abusa e vai embora”, quando o ser humano projeta a sombra de sua voracidade sobre as coisas.
        "Da Foz a Nascente". O morar autêntico ou genuíno significando o preservar, que não é apenas não causar danos tem uma dimensão positiva, ativa, de deixar algo na paz de sua natureza, de sua força originária. O salvar significando o deixar-ser. É mais que o sentido de resgatar do perigo. É restituir, dar condições de se revelar naquilo que lhe é mais próprio [HEIDEGGER]. Deixa que cada ser desabroche na plenitude.
Obs.: O morar genuíno difere da dominação que está ligada a todo fazer, todo pensar, nos quais há projeção da sombra da vontade do homem sobre as coisas transformando-as em objetos de sua propriedade como espoliação, como o conhecer, na concepção moderna.
           O que não pode ser reduzido unicamente ao apreender do pensamento do cálculo são ontofanias - modos de revelação do ser que possibilitam múltiplos sentidos e levam a níveis diversos de experiência; o morar significando preservar ou salvar; o deixar-ser propicia aos mortais a condição de um novo enraizamento. “Aqueles que sabem habitar, morar no sentido pleno, sabem respeitar a terra e seus seres, acolhem e preservam, deixam o próximo ser o próximo e o distante ser distante, reconhece o sagrado, assume a morte. (...) O homem precisa ter raízes para alcançar o amplo domínio do espírito” [HEIDEGGER]. A filosofia moderna que fundamenta o desenvolvimento da tecnologia faz uma relação inteiramente nova do homem com o mundo, com seu lugar no mundo. Que aparece unicamente como objeto, computado, controlado. “o pensar que calcula” [HEIDEGGER], é indispensável, mas é uma dimensão do pensamento que só designa a prática do saber, mas “um modo de comportamento” determinante do tipo de ação e atitude do homem, que só reconhece como real a ação prevista, organizada, planificada.
Obs.: A planetarização que aboliu todas as fronteiras (espaciais e temporais) coloca um desafio, o de aprender a lidar com o poder da técnica. Para isso precisa compreender o seu sentido. Por não estar preparado para esta transformação radical o ser humano vive um desenraizamento de sua essência.
Desenraizamento não só causado por fatores externo nem como efeito da negligência humana, mas do espírito da época. Aprender a lidar com esse poder tecnológico é cuidar sempre para que essa relação seja de independência [HEIDEGGER]. Viver entre as coisas do mundo tecnológico, mas sem ser dominado por elas, e aceitar o fato de que desconhecemos o sentido profundo desse momento. Aceitar esse pensamento tecnológico como único modo de pensamento alienaria o homem de sua natureza essencial. O mundo tecnológico não é o único modo segundo o qual as coisas podem ser, objetos de um sujeito egocentrado e onipotente.
Obs.: Tal processo provém de um esquecimento do sentido do ser, um ofuscamento, empobrecimento do próprio ser humano, que é simultaneamente o esquecimento de nossa identidade autêntica. A disposição de “deixar-se” os seres e a abertura em favor do mistério dão-nos a possibilidade de um novo enraizamento, o re-encontro, morada originária, presentificada sempre ao ser que se dispõe a ser por ela acolhido.
Precisamos de um saber que conviva com o mistério, com a alteridade, com outras modalidades de relacionamento com o real. O mistério não é aquilo que não pode ser explicado. Também não é o ainda-não-conhecido, é aquilo que, podendo ser explicado, nunca pode ser exaurido, porque é fonte (arqué) no seu revelar permanente.
Obs.: O saber em consonância com este princípio sempre vigente é um saber organizado pela experiência, pelo ritmo, pela alternância, pela dialética. Organiza um modo de ser, uma ética. Um saber do mistério reside em compreender o ritmo do planeta.
.
Referência
UNGER, Nancy Mangabeira. Da Foz a Nascente: O Recado do Rio. Campinas; Unicamp, 2001.

Nenhum comentário:

na tela ou dvd

  • 12 Horas até o Amanhecer
  • 1408
  • 1922
  • 21 Gramas
  • 30 Minutos ou Menos
  • 8 Minutos
  • A Árvore da Vida
  • A Bússola de Ouro
  • A Chave Mestra
  • A Cura
  • A Endemoniada
  • A Espada e o Dragão
  • A Fita Branca
  • A Força de Um Sorriso
  • A Grande Ilusão
  • A Idade da Reflexão
  • A Ilha do Medo
  • A Intérprete
  • A Invenção de Hugo Cabret
  • A Janela Secreta
  • A Lista
  • A Lista de Schindler
  • A Livraria
  • A Loucura do Rei George
  • A Partida
  • A Pele
  • A Pele do Desejo
  • A Poeira do Tempo
  • A Praia
  • A Prostituta e a Baleia
  • A Prova
  • A Rainha
  • A Razão de Meu Afeto
  • A Ressaca
  • A Revelação
  • A Sombra e a Escuridão
  • A Suprema Felicidade
  • A Tempestade
  • A Trilha
  • A Troca
  • A Última Ceia
  • A Vantagem de Ser Invisível
  • A Vida de Gale
  • A Vida dos Outros
  • A Vida em uma Noite
  • A Vida Que Segue
  • Adaptation
  • Africa dos Meus Sonhos
  • Ágora
  • Alice Não Mora Mais Aqui
  • Amarcord
  • Amargo Pesadelo
  • Amigas com Dinheiro
  • Amor e outras drogas
  • Amores Possíveis
  • Ano Bissexto
  • Antes do Anoitecer
  • Antes que o Diabo Saiba que Voce está Morto
  • Apenas uma vez
  • Apocalipto
  • Arkansas
  • As Horas
  • As Idades de Lulu
  • As Invasões Bárbaras
  • Às Segundas ao Sol
  • Assassinato em Gosford Park
  • Ausência de Malícia
  • Australia
  • Avatar
  • Babel
  • Bastardos Inglórios
  • Battlestar Galactica
  • Bird Box
  • Biutiful
  • Bom Dia Vietnan
  • Boneco de Neve
  • Brasil Despedaçado
  • Budapeste
  • Butch Cassidy and the Sundance Kid
  • Caçada Final
  • Caçador de Recompensa
  • Cão de Briga
  • Carne Trêmula
  • Casablanca
  • Chamas da vingança
  • Chocolate
  • Circle
  • Cirkus Columbia
  • Close
  • Closer
  • Código 46
  • Coincidências do Amor
  • Coisas Belas e Sujas
  • Colateral
  • Com os Olhos Bem Fechados
  • Comer, Rezar, Amar
  • Como Enlouquecer Seu Chefe
  • Condessa de Sangue
  • Conduta de Risco
  • Contragolpe
  • Cópias De Volta À Vida
  • Coração Selvagem
  • Corre Lola Corre
  • Crash - no Limite
  • Crime de Amor
  • Dança com Lobos
  • Déjà Vu
  • Desert Flower
  • Destacamento Blood
  • Deus e o Diabo na Terra do Sol
  • Dia de Treinamento
  • Diamante 13
  • Diamante de Sangue
  • Diário de Motocicleta
  • Diário de uma Paixão
  • Disputa em Família
  • Dizem por Aí...
  • Django
  • Dois Papas
  • Dois Vendedores Numa Fria
  • Dr. Jivago
  • Duplicidade
  • Durante a Tormenta
  • Eduardo Mãos de Tesoura
  • Ele não está tão a fim de você
  • Em Nome do Jogo
  • Encontrando Forrester
  • Ensaio sobre a Cegueira
  • Entre Dois Amores
  • Entre o Céu e o Inferno
  • Escritores da Liberdade
  • Esperando um Milagre
  • Estrada para a Perdição
  • Excalibur
  • Fay Grim
  • Filhos da Liberdade
  • Flores de Aço
  • Flores do Outro Mundo
  • Fogo Contra Fogo
  • Fora de Rumo
  • Fuso Horário do Amor
  • Game of Thrones
  • Garota da Vitrine
  • Gata em Teto de Zinco Quente
  • Gigolo Americano
  • Goethe
  • Gran Torino
  • Guerra ao Terror
  • Guerrilha Sem Face
  • Hair
  • Hannah And Her Sisters
  • Henry's Crime
  • Hidden Life
  • História de Um Casamento
  • Horizonte Profundo
  • Hors de Prix (Amar não tem preço)
  • I Am Mother
  • Inferno na Torre
  • Invasores
  • Irmão Sol Irmã Lua
  • Jamón, Jamón
  • Janela Indiscreta
  • Jesus Cristo Superstar
  • Jogo Limpo
  • Jogos Patrióticos
  • Juno
  • King Kong
  • La Dolce Vitta
  • La Piel que Habito
  • Ladrões de Bicicleta
  • Land of the Blind
  • Las 13 Rosas
  • Latitude Zero
  • Lavanderia
  • Le Divorce (À Francesa)
  • Leningrado
  • Letra e Música
  • Lost Zweig
  • Lucy
  • Mar Adentro
  • Marco Zero
  • Marley e Eu
  • Maudie Sua Vida e Sua Arte
  • Meia Noite em Paris
  • Memórias de uma Gueixa
  • Menina de Ouro
  • Meninos não Choram
  • Milagre em Sta Anna
  • Mistério na Vila
  • Morangos Silvestres
  • Morto ao Chegar
  • Mudo
  • Muito Mais Que Um Crime
  • Negócio de Família
  • Nina
  • Ninguém Sabe Que Estou Aqui
  • Nossas Noites
  • Nosso Tipo de Mulher
  • Nothing Like the Holidays
  • Nove Rainhas
  • O Amante Bilingue
  • O Americano
  • O Americano Tranquilo
  • O Amor Acontece
  • O Amor Não Tira Férias
  • O Amor nos Tempos do Cólera
  • O Amor Pede Passagem
  • O Artista
  • O Caçador de Pipas
  • O Céu que nos Protege
  • O Círculo
  • O Circulo Vermelho
  • O Clã das Adagas Voadoras
  • O Concerto
  • O Contador
  • O Contador de Histórias
  • O Corte
  • O Cozinheiro, o Ladrão, Sua Mulher e o Amante
  • O Curioso Caso de Benjamin Button
  • O Destino Bate a Sua Porta
  • O Dia em que A Terra Parou
  • O Diabo de Cada Dia
  • O Dilema das Redes
  • O Dossiê de Odessa
  • O Escritor Fantasma
  • O Fabuloso Destino de Amelie Poulan
  • O Feitiço da Lua
  • O Fim da Escuridão
  • O Fugitivo
  • O Gangster
  • O Gladiador
  • O Grande Golpe
  • O Guerreiro Genghis Khan
  • O Homem de Lugar Nenhum
  • O Iluminado
  • O Ilusionista
  • O Impossível
  • O Irlandês
  • O Jardineiro Fiel
  • O Leitor
  • O Livro de Eli
  • O Menino do Pijama Listrado
  • O Mestre da Vida
  • O Mínimo Para Viver
  • O Nome da Rosa
  • O Paciente Inglês
  • O Pagamento
  • O Pagamento Final
  • O Piano
  • O Poço
  • O Poder e a Lei
  • O Porteiro
  • O Preço da Coragem
  • O Protetor
  • O Que é Isso, Companheiro?
  • O Solista
  • O Som do Coração (August Rush)
  • O Tempo e Horas
  • O Troco
  • O Último Vôo
  • O Visitante
  • Old Guard
  • Olhos de Serpente
  • Onde a Terra Acaba
  • Onde os Fracos Não Têm Vez
  • Operação Fronteira
  • Operação Valquíria
  • Os Agentes do Destino
  • Os Esquecidos
  • Os Falsários
  • Os homens que não amavam as mulheres
  • Os Outros
  • Os Românticos
  • Os Tres Dias do Condor
  • Ovos de Ouro
  • P.S. Eu te Amo
  • Pão Preto
  • Parejas
  • Partoral Americana
  • Password, uma mirada en la oscuridad
  • Peixe Grande e Suas Histórias Maravilhosas
  • Perdita Durango
  • Platoon
  • Poetas da Liberdade
  • Polar
  • Por Quem os Sinos Dobram
  • Por Um Sentido na Vida
  • Quantum of Solace
  • Queime depois de Ler
  • Quero Ficar com Polly
  • Razão e Sensibilidade
  • Rebeldia Indomável
  • Rock Star
  • Ronin
  • Salvador Puig Antich
  • Saneamento Básico
  • Sangue Negro
  • Scoop O Grande Furo
  • Sem Destino
  • Sem Medo de Morrer
  • Sem Reservas
  • Sem Saída
  • Separados pelo Casamento
  • Sete Vidas
  • Sexo, Mentiras e Vídeo Tapes
  • Silence
  • Slumdog Millionaire
  • Sobre Meninos e Lobos
  • Solas
  • Sombras de Goya
  • Spread
  • Sultões do Sul
  • Super 8
  • Tacones Lejanos
  • Taxi Driver
  • Terapia do Amor
  • Terra em Transe
  • Território Restrito
  • The Bourne Supremacy
  • The Bourne Ultimatum
  • The Post
  • Tinha que Ser Você
  • Todo Poderoso
  • Toi Moi Les Autres
  • Tomates Verdes Fritos
  • Tootsie
  • Torrente, o Braço Errado da Lei
  • Trama Internacional
  • Tudo Sobre Minha Mãe
  • Últimas Ordens
  • Um Bom Ano
  • Um Homem de Sorte
  • Um Lugar Chamado Brick Lane
  • Um Segredo Entre Nós
  • Uma Vida Iluminada
  • Valente
  • Vanila Sky
  • Veludo Azul
  • Vestida para Matar
  • Viagem do Coração
  • Vicky Cristina Barcelona
  • Vida Bandida
  • Voando para Casa
  • Volver
  • Wachtman
  • Zabriskie Point