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terça-feira, abril 12, 2011

a natureza e o conceito de técnica hoje

A técnica pode ser um instrumento neutro?

Ainda atuais, as ideias de McLuhan são essenciais para compreender a tecnologia e meios de comunicação, diz o filósofo Celso Cândido
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por Anelise Zanoni
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Nem sempre o desenvolvimento da técnica acompanha a evolução das ideias. Da mesma forma, às vezes, os pensadores do presente não conseguem entender com os próprios referenciais o tempo vivido hoje. No caso de Marshall McLuhan, o mundo do pensamento encontrou a vanguarda, o que fez com que o pesquisador canadense se ocupasse, entre as décadas de 1950 e 1960, com a crítica da cultura do meio, do meio enquanto mensagem, ou seja, da mensagem do meio.
Na entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, o filósofo Celso Candido de Azambuja analisa a relação de técnica e novas tecnologias com as referências do autor. Para ele, meios e homens estão em simbiose constante e vivem de mútuas e múltiplas interdeterminações.
“A técnica não é apenas um instrumento neutro o qual manipulamos e que, do conforto de nossos posicionamentos éticos e instrumentos conceituais, podemos dirigir para o bem ou para o mal”, afirma. Considerando os grandes pensadores como “pintores do desvelamento do ser”, o entrevistado acredita que o conhecimento necessário hoje para a tomada de decisões é cada vez mais complexo, o que implica métodos transdisciplinares.
Doutor em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Celso Cândido é professor adjunto da Unisinos e coordenador do curso de Filosofia da instituição. Confira a entrevista.
IHU On-Line – Com o tempo, a técnica evolui, mas o pensamento de McLuhan continua atual. Como você analisa a natureza e o conceito de técnica hoje? 
Celso Candido de Azambuja - Não há dúvidas de que as técnicas evoluíram muito nas últimas décadas, especialmente, as de comunicação. Computadores, celulares, televisores, rádios – todos interconectados por redes globais de comunicação e informação – formam hoje a grande aldeia global. Mas o modo de evolução das ideias é distinto do modo de evolução das técnicas. Nem sempre os pensadores do presente conseguem entender com suas ideias seu tempo.
De um lado, não parece que grande parte da academia e dos intelectuais tenha compreendido este fenômeno comunicativo monumental, espantoso. E, sinceramente, nem parece que estejam muito interessados nisto. Entretanto, de outro lado e diferentemente da famosa Escola de Frankfurt , a qual concentrou sua crítica à industria da “cultura de massas” e cujos efeitos se mostraram muito visíveis com os fenômenos de massas como o nazismo, as duas guerras mundiais, a padronização do estilo, o consumo de massa, entre outros, McLuhan se ocupou com a crítica da cultura do meio, do meio enquanto tal, do meio enquanto mensagem, ou seja, da mensagem do meio.
A partir dessa perspectiva, McLuhan tornou possível uma reflexão acerca do problema do meio, dos efeitos no âmbito das relações, das percepções e da subjetividade humanas. Entendeu que os meios técnicos não são simples máquinas. Que a técnica não é o outro do homem. Que os meios são extensões do homem. Que meios e homens estão, portanto, em simbiose e que vivem de mútuas e múltiplas interdeterminações. Assim, a análise dele centrou-se na tentativa de entender os efeitos dos meios na vida social e dos indivíduos.
Com a evolução e transformação dos meios – ou seja, das extensões do homem – a abordagem e o problema tornou-se fundamental e complexo, porque hoje estamos literalmente mergulhados nas tecnologias de comunicação. E evoluímos para uma situação de interconexão total e visceral. Mas o problema, o desafio lançado por McLuhan, permanece o mesmo: quais os efeitos dos atuais meios de comunicação cada vez mais molecularizados, sofisticados e colados nos corpos dos indivíduos. As ideias do pensador, portanto, continuam atuais e são essenciais para compreender a tecnologia e meios de comunicação. Elas nos fornecem pistas fundamentais para entender que a técnica não é apenas um instrumento neutro o qual manipulamos e que do conforto de nossos posicionamentos éticos e instrumentos conceituais, podemos dirigir para o bem ou para o mal. McLuhan sorria desta ingenuidade, desta superficialidade, desta cegueira que pretendia entender a técnica como um simples instrumento “neutro”.
IHU On-Line – Como você avalia a ideia de que a tecnologia contemporânea tem como meta fundamental manipular e criar novas formas de vida?
Celso Candido de Azambuja - Há uma mutação essencial na evolução da tecnologia e que se refere não apenas à dos instrumentos, mas também à de sua concepção. Podemos indicar pelo menos três grandes e diferentes concepções de tecnologia situadas esquematicamente na Antiguidade, na Modernidade e na atualidade.
Inicialmente, a técnica é puro instrumento, órgão dos instintos, força, luta contra e domínio sobre as forças da natureza: trata-se principalmente de controlar. Em seguida, trata-se de usar as forças da natureza para benefício próprio. Neste contexto, a natureza permanece inviolada.
Na Modernidade, avançamos para uma relação na qual a natureza começa a ser violada. A sociedade industrial penetra na natureza para extrair das suas entranhas as forças necessárias para a produção de bens e a reprodução humana. O resultado, hoje, mais angustiante são os problemas ambientais que este poderoso processo de violação e extração geral na natureza fazem surgir.
Na atual sociedade do conhecimento, com o avanço da tecnociência, a situação é totalmente nova e inédita, espetacular. Trata-se de manipular a matéria para criar novas formas de vida, para transformar as formas de vida. É nesse sentido que se deveria entender a ideia de pós-humano : o da humanidade autoengendrada, autotransformada por suas próprias invenções; porque a manipulação das formas de vida é feita pela própria humanidade.
Aristóteles propunha uma distinção das formas através das quais nós nos relacionamos com a verdade. Além da sabedoria (sofia), da razão intuitiva (nous), da sabedoria prática (phronesis), existiam a ciência (episteme) e a técnica/arte (techne). A técnica era a arte de bem fazer alguma coisa: uma virtude intelectual técnica. A ciência é teorética-prática, suas verdades são eternas e demonstráveis, objetivas.
Assim, na Antiguidade, a techne operava em uma dimensão relativamente autônoma da episteme e das demais virtudes intelectuais. Seu poder se circunscrevia aos limites da cidade e da natureza. Trata-se de explorar as potencialidades da natureza dentro de seus próprios limites. Na Modernidade expansionista, a natureza aparecerá como objeto a ser explorado e manipulado pela técnica a fim de satisfazer as necessidades e os interesses humanos. O conhecimento da natureza é neste contexto fundamental. Técnica e ciência se associam na mesma tarefa comum: manipular a natureza para melhor explorá-la. Heidegger  afirmará que na Modernidade a técnica e a ciência eram inseparáveis e tinham se transformado em uma única forma de saber. Hoje, tudo depende da pesquisa e do desenvolvimento tecnocientífico. Nova forma de saber que hegemoniza cada vez mais velozmente os poderes diretivos da civilização atual.
A tecnociência, hoje, tem como fundamento não mais penetrar na natureza para lhe esgotar as forças até seu definhamento. Trata-se, antes de tudo, de um trabalho de recuperação e invenção de formas de vida. De melhoramento da qualidade de vida humana. Do aperfeiçoamento humano por meio da tecnociência. Trata-se de um trabalho de manipulação criadora. Se para Kant  o século XVIII era o do esclarecimento, hoje, indiscutivelmente, vivemos no século da tecnociência.
IHU On-Line – Qual a importância das obras de McLuhan para o pensamento filosófico?
Celso Candido de Azambuja - Não podemos entender nossa atualidade sem o aporte intelectual e a arquitetura conceitual legados por autores como McLuhan. Os grandes pensadores resistem ao tempo. Normalmente visionários, estão sempre além de seu próprio tempo. Eles nos ensinam a olhar o mundo de novas formas, de perspectivas inéditas, com novos olhos; apontam a direção e problemas nunca antes pensados. Tornam visível o que antes nos era invisível. São pintores do desvelamento do ser.
Pensadores como McLuhan, conseguem, com seu trabalho crítico e criativo, nos orientar no pensamento no nosso tempo. O tempo é uma sucessão infindável e complexa de tempos os mais diversos possíveis. As ideias de McLhuan continuam sendo essenciais para entender nossa atualidade marcadamente tecnológica e comunicativa.
Parece-me que a originalidade de sua contribuição ainda não foi esgotada, e os teóricos e pesquisadores da filosofia da comunicação e da tecnologia terão ainda muito trabalho para ser decifrá-la.
IHU On-Line – McLuhan acreditava que algumas mudanças culturais ocorriam devido às mudanças resultantes da tecnologia. Como você relaciona o pensamento dele com a sociedade que valoriza cada vez mais os resultados e o dinheiro?
Celso Candido de Azambuja - O debate ideológico em torno do problema da tecnologia me parece às vezes um pouco simplificador. Em primeiro lugar porque tecnologia é poder. Sendo poder ela não tem uma direção unívoca. Ao mesmo tempo, a noção de tecnologia não pode ser reduzida à sua capacidade de produzir resultados e dinheiro. Não podemos considerar isto como um mal em si. Tudo depende de que resultados e de que dinheiro nós estamos falando. Será que a tecnociência já não está em condições de acabar com a fome no mundo? Não seria este um ótimo resultado?
Não devemos reduzir a complexidade do problema. A tecnologia é condição essencial para a vida humana. Não haveria vida humana sem a técnica, sem estas extensões que tornaram possível aos seres humanos sobreviver às intempéries e aos inimigos naturais.
A tecnologia é poder humano, sim. Quando ela está concentrada, quando se transforma em capital, ela se torna instrumento de poder de uns sobre os outros, de poucos sobre muitos; tal como, por exemplo, as relações de produção em um sistema capitalista clássico. Mas na sociedade do conhecimento, da informação e da comunicação as forças produtivas e tecnológicas estão em contínuo e intensificado processo de desterritorialização e molecularização social. O capital tecnológico e científico encontra-se cada vez mais compartilhado, distribuído e acessível. O que antes era poder de uns poucos, hoje se transformou, está se transformando ainda, em poder de muitos. O computador é um exemplo.
Não podemos fechar os olhos para as mudanças em curso no âmbito das relações de produção e de poder. As forças produtivas estão hoje cada vez mais desterritorializadas, desmaterializadas, tornando mais difícil e complexo seu controle por pequenos ou poucos grupos. O capital tradicional está infiltrado por todos os lados por novas formas e complexas forças produtivas.
Ao mesmo tempo em que a tecnologia moderna de tipo explorador já não é mais tolerada com facilidade, a automação industrial e agrícola liberta o homem de um tipo de trabalho essencialmente reprodutivo e alienante. Cresce atualmente a demanda por serviços, criatividade, inteligência, estratégias. Ao mesmo tempo em que cresce a demanda por qualidade de vida.
Os potenciais culturais, políticos, econômicos e subjetivos da revolução tecnológica das comunicações em pleno curso são extraordinários. Precisamos urgentemente nos alfabetizar nesta nova linguagem emergente hipertextual e intercriativa. Caso contrário, estaremos falando já uma linguagem que ninguém mais entende nem está interessado em entender.
McLuhan, como educador, filósofo, teórico da comunicação e da tecnologia, estava preocupado com os potenciais culturais dos meios, em especial, da televisão, cujo potencial integrador e pedagógico foi por ele desde o princípio ressaltado. Por isso sua preocupação em torno do problema da mensagem dos meios, pois somente com esta compreensão fundamental poderíamos explorar seus verdadeiros potenciais educacionais e culturais.
IHU On-Line – Como a nova interdependência eletrônica recria o mundo à imagem de uma aldeia global?
Celso Candido de Azambuja - A aldeia global que vivemos é a da intercriatividade. Através dos meios eletrônicos de comunicação, tais como os celulares, os computadores, os televisores, a humanidade encontra-se em processo de unificação transcultural.
Diferentemente de uma aldeia global massificada, tal como aquela condicionada pela indústria da cultura de massas durante grande parte do século passado, a aldeia global eletrônica atual é intercriativa, pois convoca seus internautas a uma navegação criativa, autoprodutiva. Ela convoca à produção de uma subjetividade singular, à produção de inventivas narrativas de si e do mundo a respeito das quais os meios precedentes sequer um dia podiam sonhar. Basta olhar a experiência do Google, da Wikipédia, do YouTube, do Twitter, do Facebook  para perceber o que estou querendo dizer. Nestes ambientes, nestas interfaces de comunicação, não é possível mais manter a postura de um espectador que ouve e assiste a sua história ser contada desde fora. Ao contrário, nestes ambientes comunicativos os indivíduos apropriam-se da narrativa de suas vidas, de seus sentimentos, valores, projetos.
Avalio que estamos entrando em uma era em que os modelos de governança de tipo republicanos serão os mais adequados não apenas técnica, mas também subjetivamente para dar conta dos nossos problemas cada vez mais complexos. Os meios tecnológicos em expansão atualmente tornaram possível – e eu diria mesmo necessária – a participação cada vez mais direta dos cidadãos nesta aldeia, através de uma forma de comunicação ativa, da informação processada em alta escala, do conhecimento compartilhado, das redes de integração social e política.
O conhecimento hoje necessário para a tomada de decisões é cada vez mais complexo, implicando necessariamente um método transdisciplinar. É preciso assim saber articular redes de saberes decisórias, propositivas, múltiplas, em escala mundial. Na medida em que a tecnologia e conhecimento se tornam compartilhados, também o poder é compartilhado.
IHU On-Line – Para McLuhan, o livro individualiza e o rádio unifica. Com a chegada de meios como Facebook e Twitter estamos valorizando o pensamento escrito, mas não a individualização. Como você avalia esse comportamento?
Celso Candido de Azambuja - O livro individualiza não somente porque reproduz um pensamento escrito. É porque convoca à introspecção, à imaginação e à reflexão. O livro tende ao isolamento e isto tão mais acentuadamente nas culturas quentes.
O pensamento escrito esteve circunscrito ao território do papel e do livro impresso durante muito tempo. De tal modo que acabamos por identificar o escrito impresso com o próprio pensamento escrito. Mas este já esteve inscrito em outros suportes, tais como em pedras, tábuas, metais. Platão  chegou a elaborar uma séria crítica aos pensamentos escritos com letras. Denunciou tal atividade como inapropriada e como forma de falsificar a verdadeira sabedoria que só o embate dialético oral seria capaz de produzir.
Acontece que o pensamento escrito tem atualmente uma nova interface através da qual pode presentificar-se. Trata-se de um suporte em si mesmo dinâmico que, por sua natureza, dá novo dinamismo à palavra escrita. Antes da internet, o tempo de processamento da palavra escrita era complemente diferente. A escrita digital é fluída, móvel. A palavra se movimenta na tela e viaja à velocidade da luz no espaço. É uma situação diferente. O pensamento escrito libertou-se das amarras do texto impresso. Ele movimenta-se livre nas telas e redes intercontinentais de comunicação.
Deste modo, o pensamento escrito tornou-se instrumento ágil de comunicação, ao mesmo tempo em que seu poder cresceu em toda parte. Hoje, se você não souber ler e escrever um e-mail, você estará completamente por fora. A escrita, na rede, é intercriativa, fragmentada, veloz. Ela convida ao diálogo. Se você não teclar, não irá se comunicar.
Esta nova plasticidade do texto está muito mais próxima da velocidade de renovação dos saberes e do modo como se pode aproximar da verdade em nossos dias. E não há dúvidas que já supera em muito o potencial civilizacional do livro e do pensamento escrito impresso.
IHU On-Line – Para McLuhan, a cultura do alfabeto predispõe o homem a dessacralizar seu modo de ser. Como fica a relação do ser nos dias atuais?
Celso Candido de Azambuja - As sociedades orais são naturalmente mais coesas, mais coletivas, mais afetivas – mais frias no sentido mcluhniano – comparadas com as sociedades da escrita alfabética. Nas culturas onde predomina a oralidade as crenças, os mitos, as lendas, jogam peso também maior na articulação dos sentidos e significações sociais. O alfabeto dota o homem de uma potência de esclarecimento que o projeta para além das suas crenças, mitos, verdades da sua comunidade.
A oralidade convoca à participação, é um meio frio, aproxima. A escrita isola. O alfabeto projeta o homem para além de seu próprio universo imaginário, unificando os homens culturalmente, ainda que não politicamente. Isto força o homem a sair de si mesmo, quer dizer, sair de seu próprio universo fechado de significações.
O mundo da escrita alfabética é cada vez mais humano no sentido de que o horizonte dos problemas humanos se coloca para ser respondido no âmbito da própria palavra humana. Os enigmas, os problemas, as questões passam a ser definidas no embate puramente humano.
Grande parte da cultura oral é marcada pelo recurso ao mito, aos cultos de adivinhação. Platão, como disse antes, fará a denúncia do empobrecimento do discurso através do recurso ao texto escrito com letras. Com os sofistas que escrevem seus discursos, portanto, a sabedoria teria chegado ao seu fim, lamenta Platão. Entretanto, a força do meio literário, o obriga a fazer sua luta contra o movimento sofista através do recurso da palavra escrita. Os diálogos escritos foram sem dúvida uma tentativa de resgatar o que o texto escrito anunciava: a morte da dialética. A escrita alfabética arrastou Platão e todos os que vieram depois. Reinou praticamente absoluta até o advento dos meios eletrônicos no século XX. Hoje, como já dissemos, encontra-se em pleno processo de reinvenção e ressignificação.
É neste contexto de reinvenção e ressignificação não apenas da escrita, mas também e talvez principalmente da linguagem hipertextual, que os indivíduos estão construindo suas narrativas autoprojetadas. Nessa autoconstrução generalizada de nossos dias, penso que o problema do sentido do ser pode ser colocado para além da massificação e da impessoalidade que predominaram na era dos mass media.
Se, como pretendia Parmênides,  o ser que é possível ser é o ser que é pensado, o ser que é possível ser pensado hoje, na era eletrônica, é aquele que somente pode se compreender através de uma nova perspectiva: transdisciplinar, transcultural, transmidiática, polifônica. É o ser de uma enorme complexidade cujas potencialidades e modos de aparecer são de uma riqueza extraordinária. É nesta irreversível – e desejável – pluralidade de formas de vida, moral, religiosa, política e estética através da qual o ser do humano em nossa época se revela e se transforma que reencontraremos a pergunta pelo sentido de nossa existência.
Fonte: IHU On-line

quarta-feira, março 02, 2011

falei e daí...

PEQUENOS PRECONCEITOS, GRANDES PRECONCEITOS
Os preconceitos estão no que se fala e no que não se fala, no rabo de olho, no riso que desqualifica, na atitude cínica, na falta de atitude, nas coisas mais simples e corriqueiras que incorremos que mostra quem somos e torna-se parte do que somos por não questionar, parte por deixar-se aproximar do pior e acreditar no que os outros vão achar, julgar, condenar, pelo que é o certo (deles), para não sermos considerados como diferentes. Simplesmente andamos calados diante dos fatos, e de tudo que nos “pega de surpresa”. Os preconceitos se espalham fácil como folhas reviradas ao vento.
Abrir as janelas da consciência, fazer escolhas que sejam felizes, expressar e experimentar o que nunca foi considerado antes desse estado. Quando aprenderemos o que mudar e quando mudar – a hora das revoluções também passa-, abandonar o discurso do medo, das resistências, das coisas horríveis que nos metem na cabeça, o terror, os riscos, coisas demais, e internalizamos passivamente sem conseguir nos despojar delas.
***
Um dia você acorda diferente, fazendo reflexões que rasgam o véu do desconhecido,  do domínio do trivial, observando uma saída no conhecido fim do túnel. Sensações permitem abrir certas questões antes intocáveis, que nos impediam de conhecer pelos nossos  sentidos, qual a direção; muitas vezes o que nos dizem nos confunde, o discurso conservador confunde, são muitas vezes grandes bobagens aprendidas ao longo dos últimos anos, atualmente com crise, mais uma droga maldita, “peixe vendido” por uma gente careta, coisas gravadas de preconceitos que podem até parecer menores, mas que crescem junto com a gente que sustenta velhos paradigmas, e daí viram grandes preconceitos, ditadores de uma falsa ordem, condicionando comportamentos, padrões globalizados, sem nenhum questionamento. Uma coisa leva a outra, e poucas vezes ao seu contrário, a sua negação.
Seguir se perguntando aonde ir, porque, como, quando rever e recusar tanto preconceito, tatuados na alma e abraçar oportunidades melhores de vida, fazer uma escolha honesta, sacudir a poeira mostrando algo melhor de si, muito além de mirar o mesmo por do sol, o mesmo brilho do mar, o luar metafísico, a mão quente de quem nos acompanha paciente. Não dá para ficar parado, acostumado a um lugar, a pensamentos sólidos, as retas cartesianas, às linhas previsíveis das leis do mercado. 
***
Ao se enxergar no espelho do egoísmo do uso danoso do meio ambiente, vemos as chuvas inundado cidades, o asfalto aflorando muito lixo, carência de saneamento básico, o concreto da cor da lama escorrida do barranco derretendo sobrados e barracos. Rios subindo pelas margens desmatadas, o povo salvando suas poucas coisas, uma televisão queimada, roupas quase surradas, levantam a mobília encharcada, a geladeira vira barco, os bichos sem espírito são arrastados. Uma tragédia anunciada.
***
Do meio de janelas com grades, trancadas pela concorrência da violência, vão se abrindo olhares pelas frestas e levantam-se páginas da história que colocaram na estante do passado, aquelas anotações em vermelho por décadas, agora bandeiras desbotadas com desenhos de instrumentos, estrelas, ferramentas que deviam ser ideais, não armas. Os marcadores separam firmes as partes do diário de uma memória mantida muito tempo fechada. Em suas entrelinhas os segredos das mudanças ficavam fora da vista, num lugar distante, mas ressurgem. Ainda há o silencio dos pensadores, quer confiar pequenas porções desses sentimentos que pareciam inseguros, mas supostamente felizes achavam-se perdidos, e duram ali sobre folhas choradas, quietos, solitários e não reconhecidos. Os que passaram a fazer parte do coro oficial não contam mais, são peças aproveitadas pela engrenagem.
***
Hoje, é quase impossível se manter em um estado estacionário, lacrado por um selo que a todo tempo é rompido pelo imprevisível, pela insatisfação, necessidades que deságuam, que entram pela informação digital, que vão numa onda de sustos e tintas libertárias diárias. Pelo espontâneo que assanha as áreas mínimas da liberdade, arrastam tudo mais que pareça intensamente humano de direito, agora revelando um desejo que permita a entrega ao novo estado, essa incontrolável vontade de rebelar-se, agora mais sensível, independente de preconceitos, sem homofobias, sem desqualificar alguma cor, com um senso inquestionável de justiça, sem medida aparente. Despreconceituosa mente. Contudo, esse é um vôo para o que se quer ser sem saber exatamente para onde. Uma fugaz semente plantada no presente sem ideia do que será mais tarde.  
***
Ás vezes fico com saudade de mim. Na hora do almoço vejo as notícias sangrentas, mídia “marrom chocante” - que a imprensa de jornais impressos fazia ontem, e a televisiva repete com sucesso hoje. E os sentimentos nesse minuto de grande horror? Ali comendo a mesma comida, mais cara, não sei se choro ou abano a cabeça, uma tragédia no acidente de transito ao vivo e em cores. Sinto saudade do que já não sou mais. Tudo é muito bruto, o sistema embrutece o cidadão.
Parece que paramos... no mesmo lugar, mas com outro jeito de enxergar, um comportamento assim, sensível. Inadvertidamente passamos a aceitar as diferenças, não guardando estranhezas, mas estamos diante de situações indefinidas, duras, o plano é áspero, o capital injusto mas ainda suportável para muitos. E agora ousar sair fora desse caos conhecido parece ilegal, se ver além do antigo, do que desacreditamos, do que já não somos mais. Esse é um pensamento que dói, não removido, não resolvido.
Apesar de tudo, continuar é preciso, navegar é preciso, agir por um outro estado que nunca use os mesmos privilégios restritos, elitistas, nunca preserve desafios sociais desiguais desde o nascimento, estado acelerador de ganhos privados e gestor do capital especulador; prioridades do “idiot savant”, ortodoxos, cheios de si, com teorias sem qualquer código de ética.
Viver é uma necessidade. E as mudanças surgem como uma corrente marítima descontrolada, numa ressaca que invade e busca qualquer liberdade mesmo com uma consciência imperfeita das diferenças que já fazem parte do novo ponto de equilíbrio.

domingo, janeiro 23, 2011

objetivação do mundo: "racionalidade Iluminista" e reducionismo do Universo

Esta frase de Woody Allen pode definir o seu rascante e irônico modo de encarar o mundo ao seu redor: 
Sinto-me profundamente aliviado pelo fato de o Universo ser finalmente explicável. Começava a convencer-me de que o problema estava em mim.”
Uma frase emblemática que resume um modo de enxergar o Outro. Uma expressão perfeitamente encaixada e coerente da ideia de "objetivação do mundo" permitida pelo "reducionismo científico" originada da racionalidade do Iluminismo; racionalismo que passa a ser útil, para explicar, "analisar e representar" todos os códigos, signos e saberes presentes na Natureza, transferindo para o outro - uma maneira de isentar-se das consequências ? -,  com esse "modelo", as questões essenciais e responsabilidades sobre a organização da vida, da ética do conhecimento e utilização do meio ambiente; ou seja, das reais soluções que a cada dia se desvinculam da reais condições humanas.

segunda-feira, janeiro 10, 2011

“Sabe com quem está falando?”

“LEMBRA-TE QUE ÉS MORTAL”*
Um poder que se serve, em vez de servir, é um poder que não serve.
Os romanos na Antiguidade tinham um hábito muito importante: todas as vezes que um general, um líder importante, voltava de uma dura batalha com uma retumbante vitória, ele entrava na cidade de Roma e tinha que deixar o exército do lado de fora, num grande campo aberto, que era chamado de Campo de Marte – dedicado ao deus da guerra. O general subia numa biga, aquele carro de combate com dois cavalos, conduzida por um escravo. O líder se apoiava na lateral da biga para ser aclamado pelo povo. E atravessava toda a cidade de Roma até o senado, onde seria agraciado com a maior honraria que um general poderia receber naquela época: uma bandeja com folhas de palmeira em cima. Era uma honra inacreditável. Tanto que, contam os cristãos, no Domingo de Ramos se faz um tapete com folhas de palmeira para Jesus de Nazaré. Qual o outro nome que a gente dá em português para uma bandeja de prata? Salva. Portanto, o general ia receber no senado uma salva de palmas. Com o tempo, a salva de palmas foi substituída por aplausos, dado que as nossas mãos parecem mesmo com folhas de palmeira.
O general ia em direção ao senado e, por lei, um segundo escravo acompanhava a biga a pé. Esse segundo escravo tinha uma obrigação legal: a cada quinhentas jardas, ele tinha que subir na biga e soprar no ouvido do general a seguinte frase: “Lembra-te que és mortal”. A biga se deslocava mais quinhentas jardas, e ele sussurrava novamente o alerta.
Isso serve para nós, humanos, que muitas vezes nos orgulhamos de um poder estranho, o poder sobre a natureza, o de domar os rios, o de construir, o poder sobre as pessoas. A finalidade central do poder é servir. Eu costumo dizer que um poder que se serve, em vez de servir, é um poder que não serve. Um das questões centrais da ética é regularmos as nossas relações de maneira que o poder possa servir em vez de se servir. Nós somos um animal tão arrogante que nem aceitamos sermos chamados de animal. Algumas pessoas acham que tem “gente que vale” e “gente que vale menos”: minigente, nanogente, subgente. Gente que é menos, por causa da cor da pele, do sotaque que usa, do dinheiro que carrega, da escolaridade que tem, do cargo que ocupa, do país que nasceu, da religião que pratica.
Quando alguém tem essa postura, o reflexo na ética é muito forte. Ética não é uma fachada que você ou eu usamos. Quando uma pessoa discute ética, quando uma empresa traz o tema à tona, ela manifesta uma coragem em assumir que a discussão sobre ética não é uma discussão cínica, na qual fingimos aderir. É uma coisa séria. Afinal de contas, se estamos falando de ética, estamos falando na capacidade de supormos que existem relações entre as pessoas que têm de preservar a dignidade do outro e a sua própria dignidade.
O que é um ser humano? Quem somos nós? Quem sou eu para dizer assim: “Sabe com quem está falando?” Quem sou eu para achar que posso fazer o que eu quiser nos negócios, na política? Quem sou eu para achar que posso praticar a corrupção, o desvio, a quebra ética? Quem sou eu para achar que eu sou mais e, os outros, menos?
Há pessoas que apequenam a vida, apequenam com o preconceito, apequenam com a arrogância, apequenam com a venda da própria alma. O que você responde quando alguém pergunta: “Você sabe com quem está falando?” Qual seria uma resposta possível? Poderíamos responder o que é um ser humano? Há várias respostas, uma delas, a clássica, de Aristóteles, do século IV a.C.: “O homem é um animal racional”. Ou Pascal, do século XVI, que disse: “O homem é um caniço pensante”, uma coisa frágil e volúvel pensante, ou a definição de que mais gosto, que de Fernando Pessoa, que diz: “ O homem é um cadáver adiado”.
A ética é a proteção da integridade, é a capacidade de ter princípios. A ética é a capacidade de saber, sim, que dilemas vivemos – na família, no trabalho, na empresa, na concorrência -, mas que isso está ligado a que princípios nós defendemos.
É preciso colocar em destaque uma frase do grande beneditino francês, que escreveu Gargântua, Pantagruel, no século XVI, François Rabelais, que disse: “Conheço muitos que não puderam quando deviam porque não quiseram quando podiam”.
Se a gente pode e a gente quer, a gente deve.
(*) Texto retirado do livro de Mario Sergio Cortella, Qual é a tua obra? : inquietações propositivas sobre gestão, liderança e ética. 6 ed. Petropólis, RJ: Vozes, 2009.

domingo, janeiro 09, 2011

"Talvez, o imponderável nos salvará."

Edgar Morin, mestre do pensamento, às vésperas de seus 90 anos
A morte da mãe quando criança, a ocupação nazista, a Resistência. Mas também as viagens, as mulheres, os estudos que o tornaram famosos. Agora, às vésperas dos 90 anos, o "Diderot do século XX", que previu os danos da globalização, confessa ter "bebido a vida". E pensa nos mais jovens: "Nós nos iludimos com o comunismo e o consumismo. Eles perderam o futuro. Precisam de esperança".
A reportagem é de Anais Ginori, publicada no jornal La Repubblica, 02-01-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
"Se eu fosse guiado só pela luz da razão, diria que o mundo vai rumo à catástrofe, que estamos à beira do abismo. Todos os elementos que temos sob os olhos nos prospectam cenários apocalípticos. Mas, na história da humanidade, existe o imprevisto, aquele fato inesperado que muda o curso das coisas. Eis porque, no fundo, sou otimista".
Mesmo quando se trata de olhar para o longo prazo, Edgar Morin não renuncia ao seu famoso "pensamento complexo", que ele teoriza já há 40 anos. Tese, antítese, síntese. A sua marca de fábrica. Unir os opostos, abraçar saberes diversos, como explicou nos seis volumes do Méthode, a obra enciclopédica escrita entre 1967 e 2006, que já lhe valeu o apelido de "Diderot do século XX".
Morin é um pensador poliédrico, culturalmente onívoro. Filósofo, sociólogo, antropólogo, uma bibliografia feita de mais de 50 títulos, ensaios que vão da elaboração do luto aos novos mitos do espetáculo, da ecologia à reforma do welfare. Em poucos meses, ele irá completar 90 anos. O Le Monde lhe dedicou um número especial. Segundo o Nouvel Observateur, ele é um dos "gigantes do pensamento" do século passado. Diante do computador, no pequeno escritório do seu apartamento da rua Saint-Claude, debaixo das velhas tipografias de Marais, ele trabalha no seu novo livro. Ele será dedicado à esperança. "Sim, gostaria de restituí-la aos jovens que sentem que perderam o futuro. Nós tínhamos a fé no progresso, nos iludimos antes com o comunismo e depois com o consumismo. A democracia ainda parecia a fórmula perfeita de convivência. Agora, esse horizonte foi arrebatado".
Jamais trocaria de lugar com um jovem de 20 anos de hoje, embora caminhe lentamente na casa vazia, ajudando-se com uma bengala. Há dois anos, morreu sua terceira esposa, Edwige Lannegrace, à qual dedicou um livro, Edwige l'inséparable. Com a modelo e atriz canadense Johanne Harelle, que conheceu nos EUA, havia passado os barulhentos anos 60 viajando pela América Latina. Grande sedutor, conta ter "bebido a vida". Não deixou faltar nada.
Nascido em 1921, na comunidade judaica sefardita do bairro de Menilmontant, correu o risco de morrer durante as fases do parto, junto com a mãe Luna, gravemente doente do coração. "Os médicos lhe haviam aconselhado a não ter filhos. Ela havia escondido a sua patologia até do meu pai Vidal". A mãe sobreviveu por milagre, acudiu o filho único como um pequeno príncipe, mas nove anos depois foi vítima de um infarto. "Aquela morte foi a minha Hiroshima", lembra. Não por acaso, o seu primeiro livro de antropologia, publicado em 1951, intitula-se L'homme et la mort e analisa, dentre outras coisas, o conceito de "resiliência", a capacidade de resistir aos choques.
Resistência
Durante a ocupação nazista, encontrou a sua segunda família. Entrou nas forças de combate da Resistência, na facção liderada por François Mitterrand. Foi assim que Edgar Nahoum, para o registro civil, tornou-se Edgar Morin, nome de batalha que manterá também depois da guerra. Aprendeu a se esconder, a comprar as informações, a antecipar os movimentos da polícia. Um dia, estava chegando a Lyon para um encontro. Teve um pressentimento, decidiu não ir. O amigo que o esperava foi capturado, torturado e morto. 
Na clandestinidade, conheceu Violette Chapellaubeau, primeira mulher e mãe das duas filhas Irène e Véronique. No dia da Libertação, entrou em Paris a bordo de um automóvel militar, hasteando a bandeira junto com a amiga escritora Marguerite Duras. Logo decidiu partir para Baden-Baden. Em 1946, dois anos antes do filme de Roberto Rossellini, escreveu O Ano Zero da Alemanha, um conta sobre o país em ruínas, uma tentativa de entender como a nação de Goethe e de Beethoven pôde provocar a barbárie do nazismo.
Até os 30 anos, acreditou no Sol do Porvir. "Fui um comunista de guerra, porque deu a prioridade à luta contra o nazismo, ignorando, porém, os defeitos do stalinismo. Mas em tempos de paz, assim que começaram os processos e as "purgas", rasguei a minha carteirinha". 
Em 1951, foi definitivamente expulso da direção do Partido Comunista Francês por ter criticado, em um artigo, o Grande Timoneiro Mao Tse Tung. "O partido era como uma igreja, um ambiente sagrado – lembra –, algo inimaginável para os jovens de hoje".
"Direitista de esquerda"
Morin escreveu naqueles anos Autocritique, memórias de um ex-comunista, gênero destinado a fazer prosélitos não só na França. Hoje, considera-se um droitier gauchiste. "À direita, porque, segundo a tradição revolucionária, quero defender as liberdades, e à esquerda, porque penso que há necessidade de radicalidade". De Karl Marx, ao qual dedicou um pequeno ensaio no ano passado, diz que "foi um formidável profeta da globalização capitalista, mas não viu que o homo faber, o homem produtor, era também ohomo economicus, e que o homo sapiens era também o homo demens, a loucura humana que se manifesta em toda a história da humanidade".
Em 2008, Nicolas Sarkozy citou a "política de civilização" teorizada por Morin em um discurso seu. Ele fez saber que não gostou. "Duvido que o presidente conheça os meus trabalhos e o significado real dessa expressão", repete ainda, com um movimento de incômodo. Para Morin, a "política de civilização" consiste no retorno da supremacia da política sobre a economia, do público sobre o privado. "Os partidos de esquerda aceitaram de cima para baixo o liberalismo, sem entender que antes era preciso discutir regras e salvaguardas dos direitos. Com a globalização econômica, tivemos coisas positivas, como a circulação das pessoas e das ideias, mas integramos também os ritmos de trabalho da China".
No seu álbum pessoal, conserva fotos com muitos líderes da esquerda francesa, de Maurice Thorez a Mitterrand, com os quais frequentemente polemizou. Porém, todas as vezes que a gauche está em dificuldade, Edgar Morin é consultado como um oráculo. Todos, também os seus inimigos, lhe reconhecem uma grande capacidade de farejar o esprit du temps, o espírito do tempo, título de um estudo seu de 1962. 
Batizou os anos 60 como a geração yé yé, os jovens dependentes do consumismo. Em 1993, publicou um panfleto sobre a Terra-Pátria, antes que o ambientalismo se tornasse uma moda. Previu o retorno dos nacionalismos e da xenofobia na Europa. "Fiquei chocado ao ver o que a França fez com os ciganos, um povo perseguido há séculos, que foi mandado aos campos de concentração pelos nazistas". Morin não tem medo de se encontrar em posições politicamente incômodas. Inclinou-se para o lado dos palestinos durante a Intifada, foi falar na universidade de Sarajevo debaixo das bombas.
Metamorfose
Enquanto fala, continua consultando os e-mails no computador. "Já sou dependente desta coisa", brinca. Ainda viaja para conferências, principalmente para o Brasil, onde há diversos cursos dedicados ao seu trabalho. Recém recebeu um convite para ir à China. O seu sonho, hoje, seria ver nascer uma nova fase da esquerda. "Não há segredos. As duas palavras que devemos redescobrir são solidariedade e responsabilidade. Em sentido ético, mas também político. A ideia de um único partido de esquerda me parece destinada ao fracasso, porque contém forças que sempre se combateram e que dificilmente podem superar as suas diversidades internas.  Pelo contrários, é preferível uma coalizão que una as esquerdas, sem que ninguém deva renegar sua própria origem, seguindo um processo que eu chamo de metamorfose".
Na natureza, explica, a lagarta se autodestrói para se tornar uma crisálida e depois uma borboleta. Muda, mas permanece o mesmo ser vivo. "É exatamente o contrário do conceito de fazer 'tábula rasa', como diz o slogan da Internacional. Eu penso, ao contrário, que devemos seguir em frente, sempre integrando o nosso passado".
O medo é a nova ideologia. Um sentimento que paralisa as consciências, a doença deste século. Quando estourou a crise, Morin se separou do coro. "É uma extraordinária oportunidade para repensar o nosso estilo de vida, o momento em que se pode finalmente aprender com os próprios erros. Infelizmente, não está acontecendo isso, e ainda estamos dentro do túnel. Lembremos que Adolf Hitler chegou ao poder de modo absolutamente legal, justamente depois de uma longa crise econômica".
Talvez, o imponderável nos salvará. Aquilo que nem acadêmicos como Edgar Morin se arriscam a prever. A pequena Atenas que resiste ao império da Pérsia, fazendo nascer a filosofia e a democracia. A URSS que, em 1941, expulsa os nazistas às portas de Moscou e preanuncia o fim da guerra. "Já aconteceu, acontecerá de novo", confia Morin, com o tom de quem ainda tem muito a estudar. Quando se está à beira do abismo, não há tempo para se entediar.
Fonte: IHU, 09/01/2011

domingo, novembro 21, 2010

outra maneira de experienciar

Da Foz a Nascente: O Recado do Rio de Nacy Mangabeira Unger (leitura e fichamento)

“A desertificação do mundo contemporâneo. Senhor da natureza e funcionário da técnica”. A crise atual nos coloca um desafio: o de saber decidir e discernir numa superação criadora deste momento para alcançar um novo patamar de pensamento, outra maneira de experienciar o mundo e a nos mesmos. Um caminho de superação no qual nos defrontamos com uma questão essencial: o que significa ser um ser humano? Que faz parte de uma trama de relações entre os aspectos da vida: condições econômicas, políticas, sociais, históricas precedentes e emergentes, forças espirituais e psíquicas. Obs.: A pergunta diz respeito a identidade do homem, sobre o relacionamento do ser humano, esta civilização, com o real. É uma pergunta a respeito do todo, da vida, do ser. Momentos que potencializa um destino histórico.
      Na cosmologia heliocêntrica o ser humano perde seu ‘lugar mais alto’ e é colocado num espaço infinito. O sol simbolizaria não apenas uma fonte de força e luz, mas também de iluminação de vida, uma centelha divina dentro do próprio ser humano, diferente do antigo geocentrismo que o ensinaria uma atitude de humildade ontológica, o estar no degrau mais baixo de uma escada que conduzia a humanidade dando uma noção de um movimento ascendente até alcançar o sagrado, podendo realizar diferentes graus de humanidade. A percepção do universo perdeu sua densidade simbólica - o universo é visto como apenas uma extensão incomensurável de espaço, mudo e destituído de sentido, esmaga o homem e o apavora, “que responde com o silêncio a seu sentimento religioso e às suas indagações morais mais profundas” [CASSIRER]. Obs.: A expulsão do sagrado do cosmo traz como conseqüência a progressiva divisão entre ciência e sagrado, entre conhecimento e sabedoria. Um mundo dessacralizado passível de cálculo e manipulação pelo sujeito humano. A perspectiva dessacralizante do cosmo é fruto da arrogância do nascente humanismo moderno.
         O homem moderno, ao recusar suas raízes cósmicas, se impõe uma espécie de auto-exílio; e ao tentar suprir esta falta se expressa num anseio insaciável de poder e controle. O ser humano esquece ou sufoca sua capacidade de fazer uma leitura simbólica do real, perdendo sua ligação com o sagrado. O projeto de dominação e controle de tudo que existe (a híbris como virtude máxima) forma o eixo em torno do qual esta civilização gravita. A idéia do lugar do ser humano no universo perde a dimensão tensional entre autonomia e transcendência e assume um caráter unidimensional – a expansão do poderio humano sobre tudo.
Obs.: De maneira crescente, o homem moderno pensa sua liberdade na razão direta de sua capacidade de prescindir de qualquer lei que lhe seja externa, tão mais livre quanto mais ele domina o mundo.
Ser real significa ser um objeto para o sujeito humano. A natureza passa a ser vista como uma reserva de matéria-prima, um objeto de uso, cujo valor reside somente em atender aos desejos humanos. Busca segurança não apenas pelo conhecimento da realidade, mas pela sua dominação. O projeto moderno de dominação da natureza está intimamente vinculado aos ritmos da sociedade industrial. “...uma das dinâmicas mais fatídicas dos tempos modernos: o elo inextrincável entre a dominação da natureza e a dominação do homem...” [leiss].
Obs.: Cria-se a ilusão de que, embora existam desigualdades sociais evidentes demais para serem escamoteadas, todos os homens tem igual poderio sobre a natureza.
O desequilíbrio ecológico e a planetarização de uma sociedade sob a ideologia do individualismo e da pretensa igualdade de todos caminha para uma tecnocracia totalitária, vivendo como “funcionários da técnica” [heidegger], aspectos de um mesmo fenômeno. Toda a humanidade é mobilizada pela exploração e transformação das energias disponíveis, sujeito e objeto são nivelados neste grande reservatório de matéria-prima.
Obs.: Ninguém busca a compreensão de si e do real, com a convicção de estar de posse do controle calculado da realidade.
A cristalização temática de indagações feitas pela autora encontra-se na configuração da tirania, da servidão e da amizade. Entendendo a força e o segredo da dominação a que o povo se sujeita caindo “...no esquecimento da franquia tanto e tão profundamente que não lhe é possível acordar para recobrá-la (...) Dir-se-ia que não perdeu sua liberdade e sim ganhou sua servidão” [LA BOETIÉ]. O tirano sendo um, reina sobre muitos, pela força dos que o servem. O enunciado da questão desloca o lugar tradicional da liberdade e da servidão: servidão voluntária - vontade de servir, o apoio e fundamento da tirania. A corrente da tirania perpassa a sociedade, a “vontade de servir” dissimula o desejo de participar da tirania, de ser também tirano. A servidão se fundamenta no desejo excessivo, desmedido de tudo possuir e a todos dominar. Os homens recusam a própria liberdade e empenham-se em servir ao tirano, doando-lhe sua vida e mesmo sua morte, enquanto civilização.
Obs.: A tirania do real como exercício de um projeto de domínio, controle e sujeição de tudo que existe constitui-se uma característica determinante de nossa cultura?
Nosso percurso civilizacional é governado por esta tiranização do real, rompe-se o diálogo entre o homem e o mundo, porque este se torna estático, morto, coisificado, contrariamente à percepção do real como transformação constante. A “reificação” não é só do ser humano. Mas de tudo o que vive, de tudo que é. Por estarem mais próximos da tirania, os servis, são também os mais distantes de si mesmos, recuando mais de sua liberdade, abraçando a servidão. A servidão fundamenta-se no desejo de comandar e de possuir o que se comanda. Um ganho ilusório. O ato de aproximar-se do tirano é alienar-se da própria humanidade, viver o perigo da traição constante, perder a possibilidade do amor e da amizade. “... O tirano nunca é amado, nem ama: a amizade é um nome sagrado,...” [LA BOÉTIE].
Obs.: Tomando a questão da tirania e da servidão como arquétipo de nossa inserção no mundo, devemos articulá-la com uma questão fundamental para o homem, sua medida máxima – como ele se relaciona com a morte.
“Não apenas dedicamos nossas vidas ao serviço do tirano, mas aceitamos, por ele, morrer” [LA BOÉTIE]. O desejo de servir e o medo da morte poderiam estar relacionados? A dificuldade de aceitar passar não é a mesma experiência da perda de nós mesmos, do outro, do que quiséramos estáveis e fixo e que nos escapam, coisas permanentemente em transformação? O apego ao que aí está e sua inevitável frustração não nos levariam a um esforço para projetar em algum lugar a possibilidade de permanência? A perpetuação do tirano não será a prova, ainda que ilusória, de que alguém está cima desse fluxo inevitável, que vence a força do tempo, os limites de tudo que vive?
Obs.: A aspiração humana a igualar-se aos deuses tem sua significação na hibris (tal como era vista pelos gregos) que indica desmesura e transgressão, e dá-nos indícios para pensar essa questão.
A questão da morte é o que distingue homens e deuses, pois os deuses têm a imortalidade. Desejar igualar-se aos deuses é, portanto, não passar, querer permanecer, ser também imortal. Em sua ânsia de deter o inevitável fluxo da vida, buscam a estagnação a ilusão da estagnação em forma de torpor ou sono (hypnos), para os gregos, irmão da morte (thanatos). Morte em vida, morte para a realidade que cerca o homem a todo momento, a realidade de seus limites e de sua impermanência. A causa do sofrimento humano residiria antes no apego, na recusa de passar. O tirano representaria e encarnaria o desejo de controle e dominação, tanto a força da tirania quanto o vigor da opção civilazional pela tiranização do real residiriam em sua capacidade sempre maior de legitimar a ilusão de podermos controlar o incontrolável: a inexorável passagem das horas, a mutação constante do “agora”, a indeterminação do futuro. “O deserto cresce” [NIETZSCHE], expressa o sentimento de quem está diante de uma dinâmica de civilização e presencia um momento importante deste processo de desertificação ou a ameaça de destruição de nossos recursos mais vitais (da água, do ar, das espécies vegetais e animais) e de modo mais essencial o esquecimento pelo homem da riqueza do que pode significar ser um ser humano, da condição anímica do homem contemporâneo.
Obs.: O fruto dessa dinâmica se realiza em múltiplos níveis: os vínculos sociais são rompidos em todas as classes sociais; as relações humanas se dissolvem na economia.
Estamos interpelados a viver a experiência do deserto em algum nível ou grau de percepção, quer queiramos ou não. Trata-se do impacto de uma época na qual a vida está sendo negada e que tem seu eixo na racionalização e controle de todas as coisas. Obs.: Realismo é uma palavra-chave do projeto neoliberal, que se quer pragmático e aberto, isento de pretensões totalitárias e ingenuidades utópicas. O já dado é o campo do pragmático, do que é passível de instrumentalização, planejamento e cálculo; o campo do repetitivo onde não há lugar para a criação e a criatividade.
        Os desdobramentos de um processo histórico que leva os indivíduos a um desinteresse e distanciamento tanto do espaço público quanto das esferas transcendentes, vem aumentando correlativamente as prioridades dadas às esferas privadas. A emergência de um modo inédito de civilização e de individualização com a centralidade dada ao indivíduo e seu direito cada vez mais autoproclamado de afirmar sua personalidade como modo determinante de auto-realização, à parte de quaisquer preceitos e parâmetros sociais de pretensão universalista.
Obs.: Esse processo coincidiria com uma pulverização e nivelamento de valores, questões e acontecimentos.
Quando o homem recusa sua própria finitude, aliena-se daquilo que constituiu sua humanidade e tenta dissimular o “sendo” que ele realmente é; em seu lugar, deve reinar o sujeito. O mundo deve se tornar controlável e, para alcançar este objetivo, é preciso “dividir para reinar”. O real, considerado como totalidade aberta e multidimensional, fica dividido em duas instâncias: um ego-sujeito, que passa a ser “a medida de todas as coisas” [PITAGORAS], e um objeto, que deve gravitar em torno dele, fundamento e referencia de tudo que existe. O tirano é este um que se eleva acima dos demais, nega o outro como interlocutor e igual, como par. Fazer a experiência do outro enquanto outro é fazer a experiência do limite (próprio), do mistério, do imprevisível, daquilo que não pode ser tiranizado. Pensar criticamente a representação dicotômica que recusa o caráter constitutivamente conflitivo do real e que isola e nega o outro ameaçador do reino do um (tirano) nos faz reconhecer o significado da contraposição ao um que se constitui na negação do múltiplo, a unidade como embate e combate das diferenças.
Obs.: Na discórdia é que se dá o reconhecimento do um pelo outro. Onde não existe combate, a guerra advém, como projeto de abolição do pólo oposto – implantando a paz dos cemitérios e reinando só.
A liberdade se funda na amizade, a tirania no seu esquecimento. A tiranização do real se funda em uma compreensão distorcida daquilo que significa ser um ser humano. Assumir nossa humanidade é afirmar nossa amizade co-operária com o próprio ritmo da vida: seus riscos, suas perdas, sua provisoriedade. Quando essa amizade é “esquecida”, quando o diálogo e a troca são substituídos pelo projeto de dominação e controle, o homem se isola diante da natureza e diante dos outros homens.
Obs.: Não havendo troca e encontro, antes projeto de domínio, a tiranização do real cria solidão e servidão.
As formas de aniquilamento assumem dimensões planetárias, a imagem do deserto pode simbolizar a força mortífera dos tempos modernos, a ameaça de destruição. A esta dimensão apocalíptica do deserto soma-se outra: o deserto como abandono e indiferença. A palavra indiferença remete tanto à apatia e à desmobilização como ao nivelamento de todas as hierarquias e valores, à neutralização de todas as diferenças, ao desinteresse pelo sentido. Segundo Lipovetsky vivemos uma época do ato de comunicação sobre a natureza do que é comunicado, a indiferença pelos conteúdos, a expressão pela expressão, porém veiculada e ampliada por um médium: [...] Quanto mais os indivíduos se exprimem, menos há que dizer, quanto mais se solicita a subjetividade, mais anônimo e vazio o efeito se revela.
Obs.: A equiparação e a indiferenciação de valores, idéias e experiências caminha de par com a ênfase sempre maior num espaço privado adaptável a todos os comportamentos e gostos, desprovido de referências estáveis; uma “apoteose do temporário” sem ponto de ancoragem.
A desmobilização do espaço público tem seu correlato no hiperinvestimento do privado, na exaltação da personalidade e da subjetividade; na canalização de energias no interesse próprio. Interesse instável e vacilante quanto as “subjetividades” que se constroem como forma de ocultar a experiência do vazio de sentido e valor da sociedade de consumo. Todo esse empenho de inserção produz apenas atomização e isolamento.
Obs.: Neste contexto, o processo desertificação se dá como deserção, abandono do espaço comum. O modo como se deu a planetarização do mundo contemporâneo, sob a égide do capital transnacional tem seu correlato na fragmentação que parece atravessar todos os níveis da sociedade.
O estado de isolamento, alheio aos destinos do outro, emerge tanto nas formas de produzir e viver da sociedade capitalista “digital-informatizada”, como pela exclusão social de todos que não conseguem uma adequação às novas “necessidades” do mercado. É o reverso da solidariedade social e das utopias humanistas com força política. O irracionalismo se alastra como um grande incêndio diante da miséria das relações e sentimentos humanos, num mundo inteiramente racionalizado pela economia. Apesar da retórica da democracia e da tolerância, o neoliberalismo é o fruto tardio de uma ideologia que considera o sucesso financeiro um fim em si mesmo. “[...] O deus do mercado não admite nenhum outro deus além de si mesmo e tolera apenas aquilo que se submete incondicionalmente a seus métodos” [KURTZ].
Obs.: Um dos traços do momento histórico atual é a contrafação dos dois pólos (unidade e diferença, cosmo e convivência humana), seja do um, seja do múltiplo.
A dinâmica distorcida do um se expressa como uma “globalização” que se dá com o esmagamento das singularidades de cada povo em nome de um projeto que pretende nivelar e homogeneizar as diferenças, tendo como critério a toda-poderosa funcionalidade das coisas dentro da economia de mercado. A própria dinâmica de realização da técnica impulsiona a vida humana no sentido do desenraizamento e da perda de referências. O sistema impõe uma homogeneização em todos os pontos do planeta. O desenraizamento do homem contemporâneo vê seu mundo destituído de caráter simbólico, que não se constitui como alteridade nem permite o diálogo.
Obs.: Sob o comando da vontade de poder, da recusa do sagrado, da necessidade compulsiva de reduzir a natureza e os outros homens à condição de objetos de sua ganância, ele perde simultaneamente a noção de seu lugar no universo e o contato com potencialidades constitutivas de sua humanidade. Torna-se o sem-terra.
“A revolução reverente: uma experiência sertaneja”. A metáfora do deserto expressa a realidade de um tempo destituído, mas também podemos descobrir um outro sentido, a do deserto como lugar que contêm em si múltiplas possibilidades de renovação e virtualidades da criação.
Pensar a crise é pensar também as possibilidades de sua superação. As forças de renovação e regeneração do tecido social se expressam de múltiplas maneiras e em níveis diversos, no plano individual, no plano dos movimentos sociais e correntes de pensamento.
Obs.: O questionamento ao modelo desenvolvimentista representado pela construção de barragens, surge a partir de fatos fundamentais para a população, mas irrelevante para a lógica do “desenvolvimentismo”, como espaços que guardam significados culturais e espirituais profundos: a ligação com os antepassados, com a própria história, com a terra natal. A lógica instrumental de dominação e exploração da natureza se contrapõe uma outra lógica.
Outro exemplo desse movimento de destruição: as embarcações paradas na companhia de navegação. O rio São Francisco sempre foi um caminho líquido a ligar as populações, acessível a todos, mantendo os laços afetivos, e a unidade cultural do povo barranqueiro, mas as manobras de interesses das grandes empresas de ônibus modificaram a forma de vida tradicional do povo são-franciscano. O desmatamento das matas ciliares, a implantação de projetos de irrigação salinizando e desertificando os solos do vale, a poluição do rio por dejetos industriais, lixo e esgotos urbanos; a construção de grandes barragens expulsaram populações inteiras de seu lugar, desequilibrando o meio ambiente e modificando completamente o ritmo do rio. A organização tradicional de “fundo de pasto” que era de uso comunitário, para criação de caprinos, foi limitada pela grande propriedade que se apoderou de todas as terras em volta. Apesar do incomensurável sofrimento, apesar da desagregação ética e social, ainda há lugares no Brasil nos quais o povo consegue preservar uma tessitura de símbolos, mitos e rituais, que, ainda que fragilizada e fragmentária, expressa uma relação com a vida que se dá para além dos marcos da racionalidade instrumental e da dicotomia sujeito-objeto. A sensibilidade poética, o sentimento do sagrado, a capacidade de colocar-se à escuta da natureza, correspondem às dimensões do ser humano que não dependem do saber acadêmico e não se expressam de um modo único, podendo eclodir tanto na palavra erudita quanto na linguagem do povo simples. Trata-se uma postura diante da vida que é, em si mesma, uma via de conhecimento, uma atitude de pensar, uma dimensão do pensar.
Obs.: A capacidade humana de espantar-se, de maravilhar-se, como princípio originário e constitutivo de todo filosofar, origem de algo, é a fonte de sua natureza.
Nesta dimensão do pensar, o ato de conhecer não é somente uma operação lógica, um ato do intelecto. Não se reduz a uma experiência empírica. Acolhe a presença dos seres e das coisas, o conhecimento é afinidade e correspondência. É dessa correspondência que provém a possibilidade de reconhecer a alegria do outro através da própria alegria. Tal experiência transcende a dicotomia sujeito-objeto, há um denominador comum do qual partilham, ou compartilham, todas as coisas, e que não se revela como uma coisa, mas como uma força de reunião e de tensão entre diferenças. Este reconhecimento do que é “comum a todos” constitui uma das principais vertebrações do pensamento pré-socrático. A sabedoria, ou “o sábio”, to sophon, reside em reconhecer esse comum-a-todos. Na medida em que acolhe a presença dos seres e das coisas, o ato de pensar é philia, afinidade e amizade. A amizade, entendida como inserção do homem no mundo, postura existencial, passa por uma abertura fundamental ao dinamismo do real, do qual somos também expressão. Essa abertura é solidária da capacidade humana de maravilhar-se, de encantar-se, de acolher a presença do extraordinário no ordinário; afirma uma outra ordem através da qual os diversos níveis de realidade podem ser compreendidos. O ser que se coloca em estado de afinidade e de consonância com os demais seres pode ouvir a sua voz e conhecer os seus mistérios.
Obs.: O conhecimento não é o resultado de um acúmulo de informações; não é fruto exclusivo da vontade humana, é uma benção dada àquele que está em consonância com o sagrado, receptivo aos sinais da natureza e solidário à vida em suas múltiplas manifestações. O encanto permeia a dimensão do real.
A “divina radiância” (que) “extinguiu-se na história do mundo” [HEIDEGGER], é a morada, o abrigo do extraordinário, cuja irradiação o ser humano vê somente quando habita a morada que corresponde à sua natureza mais essencial. A natureza é também a ambiência do encanto, do mistério, do extraordinário. Esta sensibilidade para fazer uma leitura simbólica do cosmo, dos fenômenos da natureza e dos ritmos da vida é uma dimensão constitutiva do homem, mesmo quando é negada, como o foi e ainda é nas sociedades modernas. Seu discurso realiza um constante vai-e-vem entre o sentimento do sagrado, a amizade com os seres da natureza e a solidariedade ao outro ser humano. Neste modo de ser, a solidariedade tem um sentido não somente ético, mas cognitivo.
Obs.: Esse diálogo pressupõe a relação entre um eu e um tu; não pode acontecer entre um sujeito e um objeto. A natureza retrai-se, “ela se abusa e vai embora”, quando o ser humano projeta a sombra de sua voracidade sobre as coisas.
        "Da Foz a Nascente". O morar autêntico ou genuíno significando o preservar, que não é apenas não causar danos tem uma dimensão positiva, ativa, de deixar algo na paz de sua natureza, de sua força originária. O salvar significando o deixar-ser. É mais que o sentido de resgatar do perigo. É restituir, dar condições de se revelar naquilo que lhe é mais próprio [HEIDEGGER]. Deixa que cada ser desabroche na plenitude.
Obs.: O morar genuíno difere da dominação que está ligada a todo fazer, todo pensar, nos quais há projeção da sombra da vontade do homem sobre as coisas transformando-as em objetos de sua propriedade como espoliação, como o conhecer, na concepção moderna.
           O que não pode ser reduzido unicamente ao apreender do pensamento do cálculo são ontofanias - modos de revelação do ser que possibilitam múltiplos sentidos e levam a níveis diversos de experiência; o morar significando preservar ou salvar; o deixar-ser propicia aos mortais a condição de um novo enraizamento. “Aqueles que sabem habitar, morar no sentido pleno, sabem respeitar a terra e seus seres, acolhem e preservam, deixam o próximo ser o próximo e o distante ser distante, reconhece o sagrado, assume a morte. (...) O homem precisa ter raízes para alcançar o amplo domínio do espírito” [HEIDEGGER]. A filosofia moderna que fundamenta o desenvolvimento da tecnologia faz uma relação inteiramente nova do homem com o mundo, com seu lugar no mundo. Que aparece unicamente como objeto, computado, controlado. “o pensar que calcula” [HEIDEGGER], é indispensável, mas é uma dimensão do pensamento que só designa a prática do saber, mas “um modo de comportamento” determinante do tipo de ação e atitude do homem, que só reconhece como real a ação prevista, organizada, planificada.
Obs.: A planetarização que aboliu todas as fronteiras (espaciais e temporais) coloca um desafio, o de aprender a lidar com o poder da técnica. Para isso precisa compreender o seu sentido. Por não estar preparado para esta transformação radical o ser humano vive um desenraizamento de sua essência.
Desenraizamento não só causado por fatores externo nem como efeito da negligência humana, mas do espírito da época. Aprender a lidar com esse poder tecnológico é cuidar sempre para que essa relação seja de independência [HEIDEGGER]. Viver entre as coisas do mundo tecnológico, mas sem ser dominado por elas, e aceitar o fato de que desconhecemos o sentido profundo desse momento. Aceitar esse pensamento tecnológico como único modo de pensamento alienaria o homem de sua natureza essencial. O mundo tecnológico não é o único modo segundo o qual as coisas podem ser, objetos de um sujeito egocentrado e onipotente.
Obs.: Tal processo provém de um esquecimento do sentido do ser, um ofuscamento, empobrecimento do próprio ser humano, que é simultaneamente o esquecimento de nossa identidade autêntica. A disposição de “deixar-se” os seres e a abertura em favor do mistério dão-nos a possibilidade de um novo enraizamento, o re-encontro, morada originária, presentificada sempre ao ser que se dispõe a ser por ela acolhido.
Precisamos de um saber que conviva com o mistério, com a alteridade, com outras modalidades de relacionamento com o real. O mistério não é aquilo que não pode ser explicado. Também não é o ainda-não-conhecido, é aquilo que, podendo ser explicado, nunca pode ser exaurido, porque é fonte (arqué) no seu revelar permanente.
Obs.: O saber em consonância com este princípio sempre vigente é um saber organizado pela experiência, pelo ritmo, pela alternância, pela dialética. Organiza um modo de ser, uma ética. Um saber do mistério reside em compreender o ritmo do planeta.
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Referência
UNGER, Nancy Mangabeira. Da Foz a Nascente: O Recado do Rio. Campinas; Unicamp, 2001.

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  • 12 Horas até o Amanhecer
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