A verdade como linguagem da realidade
Há uma frase que parece nascer da razão, mas que toca as fronteiras do mistério: a verdade não existe senão através da matemática.
A afirmação soa como um dogma da racionalidade, mas esconde uma intuição muito mais profunda. Ela não diz apenas que a matemática descreve o mundo — diz que sem ela, o mundo não seria inteligível. A verdade, nesse sentido, não é algo que encontramos nas coisas, mas algo que emerge da estrutura lógica que nos permite pensá-las.
Para Pitágoras, tudo é número. Não como metáfora, mas como fundamento ontológico: a harmonia do cosmos está escrita em proporções, medidas e relações. O número é o verbo do universo — aquilo que dá ordem ao caos.
Platão herdou esse espírito e o elevou ao reino das Ideias: o sensível é instável e mutável; o inteligível, por sua vez, é geométrico, eterno, matemático. Assim, o conhecimento verdadeiro não se dá pela experiência, mas pela contemplação das formas perfeitas. Nessa linhagem, a matemática não é apenas um instrumento do pensamento, mas a própria forma da verdade. Tudo o que escapa ao número, escapa também à necessidade e, portanto, à pureza daquilo que é verdadeiro.
Séculos depois, Galileu Galilei reafirmaria esse princípio sob uma nova luz — a da ciência.
Disse ele em Il Saggiatore (1623):
“A filosofia está escrita neste grandíssimo livro que continuamente se abre diante de nossos olhos (isto é, o universo), mas não se pode compreender se não se aprende antes a compreender a língua em que está escrito. Ele está escrito em língua matemática.”
Já Galileu transformou a matemática na gramática do real. O que não pode ser medido, não pode ser conhecido; o que não pode ser traduzido em equações, permanece no território da crença. A verdade, então, deixa de ser um atributo da fé ou da tradição — passa a ser um resultado de demonstração.
Em Leibniz, Spinoza e Descartes, essa confiança na matemática torna-se princípio metafísico. Leibniz sonhou com um cálculo universal capaz de resolver toda disputa pela razão pura. Spinoza escreveu sua Ética “demonstrada à maneira dos geômetras”, como se o bem e o mal pudessem ser deduzidos com a mesma certeza que um teorema.
A verdade, nesse horizonte racionalista, é sinônimo de coerência. O verdadeiro é o que se demonstra — e o que não pode ser demonstrado, não é falso, mas simplesmente sem sentido lógico. Mas é em Wittgenstein, já no século XX, que essa tradição atinge seu ponto mais filosófico. Em seu Tractatus Logico-Philosophicus, ele escreve: “O mundo é a totalidade dos fatos, não das coisas.” “A figura lógica dos fatos é o pensamento.” Com isso, Wittgenstein desloca o conceito de verdade: ela não é uma propriedade das coisas, mas uma relação de forma entre o pensamento e o mundo. O que faz uma proposição ser verdadeira não é o que ela diz, mas como ela o diz — sua estrutura lógica, sua correspondência formal com a realidade.
Ora, essa estrutura é essencialmente matemática. A matemática, para Wittgenstein, não descreve o mundo: ela define o campo do que pode ser dito com sentido. Sem ela, não haveria distinção entre o verdadeiro e o absurdo. Assim, não existiria a tal verdade sem a matemática, porque é a matemática — como forma lógica — que sustenta a própria possibilidade do sentido.
Com Wittgenstein a verdade não é reduzida à aritmética, mas à lógica que a aritmética encarna. A matemática é, em seu pensamento, a gramática do mundo: aquilo que não pertence a ela é silêncio, não erro. Contudo, mesmo essa confiança encontra seus limites.
Gödel, contemporâneo de Wittgenstein, demonstrou que nenhum sistema matemático é completo: sempre haverá verdades que não podem ser provadas dentro do próprio sistema.
Assim, a matemática — o mais perfeito instrumento da razão — repousa sobre axiomas indemonstráveis, sobre um núcleo de fé lógica.
A verdade matemática, portanto, é ao mesmo tempo absoluta e frágil: absoluta em seu domínio, frágil em seu fundamento. Aquilo que garante a verdade é, paradoxalmente, o reconhecimento de que há sempre algo que escapa à prova.
Entre o rigor e o indizível, o homem constrói seu pensamento. O número é o espelho da razão, mas o reflexo nunca abarca o todo. Talvez a verdade não esteja apenas na equação, mas também no silêncio que ela deixa em volta — o silêncio onde a lógica toca o inefável. A matemática nos dá o alfabeto da realidade; a verdade, a leitura que o transforma em sentido. Quem ousar entender e decifrar o que parece complexo, indizível, estude a linguagem que parece estar em tudo: a verdade. Ela nos possibilita ler o alfabeto da realidade transformado em sentido pela matemática intrínseca.
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