O Gnosticismo Moderno e a Hybris Revolucionária
Michael
Oakeshott advertiu-nos contra a "política da fé", essa inclinação
moderna de submeter a complexidade da experiência histórica a esquemas
abstratos que prometem a redenção terrena[2]. O
materialismo dialético constitui precisamente uma dessas "fés
seculares", usando a terminologia de Raymond Aron[3] —
sistemas fechados de pensamento que reivindicam ter descoberto as leis
inexoráveis da história e, portanto, a chave para a emancipação definitiva da
humanidade.
O
presente capítulo propõe-se a examinar criticamente os fundamentos filosóficos
do materialismo dialético, revelando suas inconsistências lógicas, seus
pressupostos não demonstrados, e seus perigos práticos quando traduzido em
programa político. Não se trata de negar que Marx tenha oferecido insights
valiosos sobre certas dinâmicas do capitalismo industrial do século XIX, mas de
questionar radicalmente a estrutura metafísica e epistemológica que sustenta
sua pretensão de ter elaborado uma "ciência" da história.
O capitalismo, como fenômeno histórico,
econômico e social, nunca foi objeto pacífico de análise. Cada tradição
intelectual que tentou compreendê-lo o fez a partir de seus pressupostos
filosóficos mais profundos: ora o viu como fruto da liberdade individual e da
ação racional, ora como consequência de virtudes morais e religiosas, ora como
desenlace de forças culturais e históricas específicas. O materialismo
histórico marxiano — certamente o mais influente entre as abordagens
totalizantes — ofereceu uma explicação estrutural, dialética e conflitual do
desenvolvimento capitalista, resultando numa compreensão entre acadêmicos da
esquerda e seus seguidores, que estabeleceu uma Teoria Social completa sobre o
desenvolvimento e evolução do capitalismo, assim como a sua suplantação inevitável
pelo socialismo até a chegada ao comunismo. Contudo, ele está longe de ser o
único método disponível para a compreensão deste complexo fenômeno
socioeconômico e político: o sistema capitalista.
A Redução Ontológica: Contra o Materialismo Monista
O método do Materialismo Histórico deriva suas premissas fundamentais do Materialismo Dialético. E é precisamente nessa derivação que encontramos seu primeiro — e talvez mais grave — problema epistemológico: afirmar categoricamente que "a matéria precede a consciência" e que esta verdade não seria "uma proposição arbitrária ou um dogma filosófico". Paradoxalmente, é precisamente um dogma — e dos mais arbitrários. A afirmação de que existe apenas uma substância fundamental (a matéria) e que dela derivam todos os fenômenos, incluindo a consciência, não é demonstrada, mas simplesmente postulada como ponto de partida.
O filósofo brasileiro Olavo de Carvalho dedicou
parte significativa de sua obra à crítica sistemática dessas premissas,
identificando nelas vícios lógicos estruturais que comprometem todo o edifício
teórico marxista. A seguir, são apresentadas as
principais linhas dessa crítica.
A Auto-Refutação Performativa
Olavo de Carvalho desenvolveu extensamente esta
crítica em seu Curso Online de Filosofia e em Aristóteles em Nova
Perspectiva. O argumento central é que toda afirmação filosófica pressupõe
a validade da consciência como instância de conhecimento:
Se a consciência é
produto da matéria, então o próprio materialismo é apenas um reflexo de
condições materiais, não uma verdade sobre a realidade. O materialista não pode
afirmar a verdade do materialismo sem pressupor que sua consciência transcende
as determinações materiais que, segundo ele mesmo, a constituem.
Esta crítica ecoa o argumento de C.S. Lewis em Miracles,
autor que Olavo conhecia e citava: se o pensamento é inteiramente explicável
por causas não-racionais (neurológicas, econômicas, sociais), então não há
razão para confiar em nenhum pensamento — incluindo o materialismo.
A Inversão Hipotética Tomada como Fato
Em O Jardim das Aflições, Olavo analisa
as origens do pensamento revolucionário moderno e identifica um procedimento
recorrente: a hipóstase da abstração. O materialismo histórico
exemplifica este vício ao transformar uma hipótese metodológica (analisar a
sociedade a partir das relações de produção) em uma tese ontológica (a matéria
é a única realidade fundamental):
O método dialético
consiste precisamente em tomar uma perspectiva parcial, elevá-la à condição de
totalidade, e depois acusar todas as outras perspectivas de parcialidade.
Olavo destacava que Engels, em Anti-Dühring (1878) e na Dialética da Natureza (publicação póstuma), tentou fundamentar o materialismo em descobertas científicas, mas o fez mediante uma confusão categorial: tomou descrições físico-químicas de processos naturais como se fossem provas da inexistência de dimensões não-materiais da realidade.
A Petição de Princípio como Método
Nos
seminários reunidos em O Mínimo que Você Precisa Saber para Não Ser um
Idiota e em diversas aulas do COF, Olavo demonstrava que o marxismo opera
por círculo vicioso sistemático:
Marx parte do
pressuposto de que as ideias são reflexos das condições materiais. A partir
deste pressuposto, analisa a história e 'descobre' que as ideias são reflexos
das condições materiais. O que ele apresenta como conclusão científica já
estava contido na premissa inicial.
Olavo comparava este procedimento àquele
denunciado por Eric Voegelin em Ciência, Política e Gnose: o pensador
gnóstico (e o ideólogo moderno) não investiga a realidade — ele a reconstrói
segundo um esquema prévio, descartando como "falsa consciência" toda
evidência contrária.
A Confusão entre Ordem Lógica e Ordem Ontológica
Este ponto Olavo desenvolveu com particular acuidade em sua análise da teoria
dos quatro discursos (poético, retórico, dialético e analítico). Em Aristóteles
em Nova Perspectiva, ele argumenta que o materialismo confunde diferentes
planos de análise:
Que processos físicos
sejam condição sine qua non para a emergência da consciência não significa que
sejam sua causa per quam. A anterioridade cronológica ou condicional não
estabelece identidade ontológica. O papel não é a causa do poema, embora sem
papel não haja poema escrito.
Olavo frequentemente recorria à distinção aristotélica entre os quatro
tipos de causa (material, formal, eficiente e final) para mostrar que o
materialismo reduz toda causalidade à causa material, ignorando as demais — um
empobrecimento categorial que Aristóteles já havia refutado há mais de dois
milênios.
[1] VOEGELIN, Eric. A Nova Ciência da Política:
Uma Introdução. Chicago: University of Chicago
Press, 1952. Voegelin identifica
no marxismo uma forma secularizada do impulso gnóstico, caracterizado pela
promessa de imanentização do eschaton — trazer o reino da perfeição para dentro
da história.
[2] OAKESHOTT, Michael. Racionalismo na Política e Outros Ensaios. Indianapolis:
Liberty Press, 1991. Oakeshott distingue entre conhecimento técnico (explícito,
formulável em regras) e conhecimento prático (implícito, tradicional),
criticando o racionalismo que pretende reduzir toda a vida social ao primeiro
tipo.
[3] ARON, Raymond. O Ópio dos Intelectuais. Brasília: Editora UnB,
1980. Aron analisa como o marxismo funciona como religião substituta para
intelectuais modernos, oferecendo certezas absolutas em uma época de
relativismo moral.
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