De Eliane Brum.
Globo, 422 págs., 2008
Se você procurar na grande imprensa quem está praticando a arte narrativa do real com regularidade, consistência e alta qualidade, no Brasil de hoje, será quase impossível não se deparar com o nome de Eliane Brum, repórter especial da revista “Época”. Há um bom tempo, Eliane vem escrevendo matérias com forte marca de trabalho autoral, num modo de olhar o mundo todo seu e num estilo narrativo muito próprio, optando na maioria das vezes por pautas que passam ao largo do interesse da mídia.
Este seu terceiro livro é uma excelente antologia da sua produção, reunindo dez dessas matérias. Dar-lhes o benefício de alcançar existência atemporal, superando a efemeridade do periódico, condição que o livro-reportagem oferece, já seria um grande mérito da autora. Mas, criteriosa e exigente consigo mesma, Eliane não se contenta apenas em reproduzir os textos originais. Pensando especialmente em estudantes de jornalismo – futuros praticantes da arte da qual ela é expoente, espero –, acrescenta um alentado making of a cada reportagem, comentando os bastidores de sua feitura, dissecando seus procedimentos, desnudando a alma, diante do leitor, quanto aos erros e acertos de percurso.
Todos os textos constroem-se em torno de personagens anônimos, numa tradição do Jornalismo Literário ao qual a autora chegou intuitivamente, preferindo colocar em primeiro plano as pessoas que quase nunca ocupam as páginas dos jornais, vivendo na marginalidade social de uma civilização profundamente injusta. Esquecidas pelo resto do mundo, ganham um tratamento exemplar de dignidade humana nas histórias que revelam a grandiosidade compassiva das parteiras do Amapá, a honrável luta contra o tempo dos idosos do asilo carioca, a batalha por uma vida cotidianamente normal dos habitantes da favela paulistana, as oscilações entre o céu e o inferno de um dono de garimpo no Norte, a coragem silenciosa da aposentada que está condenada pela doença a viver seus últimos dias sabendo que vai morrer.
Um dos segredos dessa arte é unir os conteúdos da realidade apurada com precisão à forma narrativa de requinte literário que diz muito à mente do leitor, mas particularmente transmite mais ainda ao seu coração. O uso de representação simbólica que condensa numa frase a essência de uma história, a alma de uma vida, é um dos instrumentos utilizados com maestria por Eliane. Assim, as parteiras “nasceram do ventre úmido da Amazônia”; o desempregado Hustene Alves Pereira, apenas um número nas estatísticas oficiais, está “debruçado sobre o abismo metropolitano”; e dona Noêmia é resgatada da velhice solitária pela filha que a faz atravessar o portão de ferro para fora do asilo, “a vida inteira espremida numa mala de mão”.
Ouvir, ver, cheirar, apalpar e sentir realidades, intensamente imersos no mundo dos outros, é um atributo dos praticantes da arte. Mas é também virtude, em ocasiões especiais, voltar-se para dentro, sem preconceitos, buscando com lâmpada de explorador de cavernas os próprios demônios dos subterrâneos escuros. Essa preciosidade absolutamente sincera a autora nos dá, em um de seus textos.
E confessa: “Sou alguém que tenta viver duvidando o tempo todo das certezas, das minhas e das alheias. E por isso estou sempre em carne viva. Neste livro, como na vida, tudo o que tenho a oferecer sou eu mesma. Espero que seja suficiente”. (EPL)
* texto publicado no site da ABJL – Associação Brasileira de Jornalismo Literário na seção Olho Vivo, resenha de livros.
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