Leituras de memórias
É espantoso o colorido da diversidade dos dizeres populares, do vocabulário presente no dia-a-dia das pessoas simples, as interpretações, as leituras feitas da realidade, muitas delas tem um significado impar. Na real, algumas frases e construções de idéias chegam à memória nesse momento de escrever, são revelaçoes emblemáticas de nossa “cultura” popular pela expressividade nos sentimentos existentes nas palavras.
Do orgulho: “Se tivesse dois bicos de asas nem pisaria no chão sairia voando”.
O menino tem um irmão que teimosamente mantém um carro, mesmo sem renda regular. Um carro é como uma família, dá despesa. Mas sua mãe o ajuda, quando precisa de uma carona para ir ao médico ela paga a gasolina, é o preço "necessário" da corrida. Sua irmã vive presa a uma cadeira de rodas desde a adolescência, e sua a mãe só a vê quando ela encosta na frente de sua casa carregada pelo marido "dono" de um jipe rústico e de suspensão dura, que não faz bem nenhum as feridas da bunda dela. Elas tem entre si uma antiga mágoa que não cicatrizou, feridas no coração nunca perdoadas.
A diarista que trabalha para a velha mãe deles fala com indignação sobre o bem vestido filho que "aluga" o carro, e acha graça irônica da senhora mãe deles, que tem de pagar pelos favores do filho, mas a "senhora" mãe tem uma grande paixão por ele. O sol da sua praia. Que orgulho tem asa, tem, mas só um bico de asa, o vício da acomodação também. Para muitos deixar ficar como está é muito confortável, as aparências sustentam as ilusões.
Da ignorância: “Quem não nasce pra sela serve pra cangalha”.
Por volta de abril 1964, o menino estudante ouviu o discurso do Golpe, na voz com sotaque claro nordestino do general Castello Branco; o pequeno "de cara de tamanca ralada" parou na passagem da porta do armazém, que ao mesmo tempo funcionava como padaria, bodega, tabacaria, armarinho, latrina de cachorro vira-latas e bêbados etc., pensou nas palavras do “cabeça chata” sem compreender o significado do verbo no futuro, e continuou olhando para seus tamancos, pouco suspeitando da gravidade daquele movimento de reação autoritária aos ventos das mudanças que começaram a se formar desde antes do governo Goulart.
A radicalização dos fatos falaria por si. Nenhuma publicação sobre as perseguições aos críticos do “modelo” imposto, comentários sobre as leis arbitrárias decorrentes da mentira chamada “revolução”, nada poderia ser ventilado da nova geopolítica ditada pelos interesses estadunidenses, o “projeto nacional” baixado pelo peso dos decretos das estrelas generais para o "país do futuro". O que sobreveio disso tudo caiu como chumbo grosso sobre a cabeça dos atores armados pelas idéias e também dos inocentes... Quem deve ter admirado o fato foi o pai do menino de cabeça raspada em cuia, um pai-militar, soldado de carreira sem muito estudo. Seus superiores o mandaram para por ordem em uma delegacia da pequena cidade do sertão alagoano, Colônia de Leopoldina. Lá chegou a presenciar umas seções de uso da palmatória de madeira, utilizada na tortura de presos, culpados humildes, ladrões de galinha.
O menino de calção caque e tamancos queria trancar os sentimentos, seus olhos, mas via tudo apertando as suas mãos que pareciam arder, juntas, trêmulas e avermelhadas, como se estivessem experimentando as mesmas dores do castigado pela perversidade do delegado. Um borra-botas, segundo sua avó.
Da curiosidade: “Pedra que rola não junta limo”.
A “secretária” da avó do menino pegava a vassoura de cabo comprido envernizado para limpar algumas pucumãs, que pairavam na cumeeira da casa de praia onde o "calça curta" junto com seus irmãos passavam as férias. Uma casa bonita, com um santo de azulejo na fachada, construída bem no meio de um loteamento na orla do Trapiche da Barra em Maceió. Tempos de alegria, das tardes de jogos e brincadeiras após a lição de casa feita com o mesmo interesse que tanto tinha pelos divertidos momentos de construir caminhões de lata de óleo e rodas de carretéis de madeira.
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