A economia não é aritmética
"Todos, e insisto nisto, todos os Estados membros estão obrigados a cumprir as normas do Pacto de Estabilidade e Crescimento" - Angela Merkel.
Como em todo campo disciplinar, a economia tem uma autonomia relativa, ou seja, conta com uma série de regras que lhe são próprias, assim como na política. Mas chegar a pensar que uma destas esferas é totalmente autossuficiente e não interage com o resto é um erro. As posturas que reduzem a economia à mera aritmética, a uma discussão de números, a uma simples matemática, desprendem uma grande carga ideológica. E o fazem quanto mais estão convencidos de que a economia não tem nada a ver com a política. Claro que não ela é massa de modelar, mas não é somente aritmética.
Na atualidade, a economia é uma forma de poder que não está submetida à decisão democrática, isto significa que independentemente do que a cidadania decida com seu voto, há certas regras e lógicas econômicas que funcionam por cima da democracia. Uma forma de poder que, por um lado, pede que a política não interfira em seus assuntos, mas ao mesmo tempo participa politicamente 365 dias ao ano, avisa, amedronta e ameaça a população sobre as consequências de manter suas opções políticas.
Todos somos juridicamente iguais e, nas eleições, o voto de um vagabundo vale o mesmo que o do milionário, mas na vida cotidiana em que dependemos da nossa capacidade de decidir e exercer a democracia, somos materialmente desiguais.
Pode haver democracia sem serviços públicos, com altas taxas de pobreza, sem acesso aos meios de vida? Para a tradição liberal, a política começa e termina com o voto, depois deve se restringir ao âmbito privado, das portas de casa para dentro, até as eleições seguintes. Questionar este mecanismo limitado da democracia, em que a liberdade econômica é muitas vezes sinônimo de liberdade de poucos para decidir sobre a vida de muitos, alguns percebem como ataque à democracia.
Agora, paradoxalmente, as teses liberais sobre a economia jamais funcionaram à margem do apoio do poder político e estatal especialmente. Não existe algo que seja laissez-faire por um lado, e por outro o Estado intervencionista, ambos crescem juntos na história. A União Europeia é um grande exemplo disso; primeiro foram os ordoliberais alemães do pós-guerra que assentaram suas bases, depois vieram os neoliberais, com os quais finalmente o mercado assalta as instituições políticas.
A UE funciona sem coordenação política econômica, isto é o que sempre definiram e defendem as elites alemãs como uma comunidade de estabilidade orçamentária: um mesmo marco monetário em que cada Estado deve garantir de forma individual o equilíbrio do orçamento, sem políticas fiscais e econômicas comuns, agravando uma divisão europeia do trabalho. A UE somente coordena para que o déficit não supere os 3% e a dívida os 60% do PIB. E o BCE, independente da democracia, fixa seu objetivo de que a inflação não supere 2%. Os arquitetos do neoliberalismo acreditam que colocando esta série de limites, a economia pode funcionar com base em automatismos que por si só disciplinam os Estados membros.
Mas ao não existir programas comuns fiscais, este modelo aplicado como regra moral geral, independentemente da realidade produtiva de cada país e de seu lugar na divisão europeia do trabalho, era apenas questão de tempo observar seus limites. Em 2007, os países do coração da UE tinham superávit comercial, exportando mais do que importavam: Alemanha (7,9% do PIB), Holanda (8,1%), Bélgica (3,5%). Em contrapartida, países do sul tinham déficit comercial, Portugal (8,5% do PIB), Espanha (9,6%) e Grécia (12,5%). Os primeiros aplicaram medidas que congelavam os salários para ganhar em competitividade e a redução da demanda interna, suprida com exportações. Os segundos tinham um tipo de interesse real muito baixo que propiciava bolhas (imobiliária) e o financiamento que recebiam vinha dos créditos que alimentavam os milhões de excedente dos primeiros para que os segundos comprassem suas exportações. Eu te empresto dinheiro para que você compre de mim.
Quando este mecanismo encontrar seus limites, a opção final passará por acertar as políticas de retrocesso social que dificultam, ainda mais, a saída da crise. Mecanismos como o TECG (Tratado de Estabilidade, Coordenação e Governança, 2012) e do MEDE (Mecanismo Europeu de Estabilidade) funcionam assim: o primeiro para impor mais regras de disciplina orçamentária, enquanto o segundo aporta dinheiro para restaurar a coerção dos mercados financeiros sobre os Estados.
O dinheiro somente circula pelos mercados financeiros e toda essa liquidez injetada serve somente para gerar novas bolhas especulativas. As regras da austeridade são, definitivamente, as regras da deflação em uma economia do saque pela vida da dívida, que sempre aposta na redução das condições de trabalho, na privatização de serviços públicas e no arrocho salarial. Em que os Estados possam desvalorizar a moeda e na ausência de políticas fiscais expansivas europeias, nos resta pressionar para fazer valer que somos a quarta economia da Europa e nos somarmos a outros países do sul para modificar os tratados da UE. Na medida do possível, em aliança com os alemães. O BCE é, para dizer em termos modernos, o novo Palácio de Inverno.
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Jorge Moruno Danzi é sociólogo e escritor. Participa desde seu lançamento da iniciativa política Podemos. Colaborou nos livros “Los indignados del 15 de Mayo”, “Les raons dels indignats” e “Cuando las películas votan”. Artigo publicado no site espanhol Publico.es.
Na atualidade, a economia é uma forma de poder que não está submetida à decisão democrática, isto significa que independentemente do que a cidadania decida com seu voto, há certas regras e lógicas econômicas que funcionam por cima da democracia. Uma forma de poder que, por um lado, pede que a política não interfira em seus assuntos, mas ao mesmo tempo participa politicamente 365 dias ao ano, avisa, amedronta e ameaça a população sobre as consequências de manter suas opções políticas.
Todos somos juridicamente iguais e, nas eleições, o voto de um vagabundo vale o mesmo que o do milionário, mas na vida cotidiana em que dependemos da nossa capacidade de decidir e exercer a democracia, somos materialmente desiguais.
Pode haver democracia sem serviços públicos, com altas taxas de pobreza, sem acesso aos meios de vida? Para a tradição liberal, a política começa e termina com o voto, depois deve se restringir ao âmbito privado, das portas de casa para dentro, até as eleições seguintes. Questionar este mecanismo limitado da democracia, em que a liberdade econômica é muitas vezes sinônimo de liberdade de poucos para decidir sobre a vida de muitos, alguns percebem como ataque à democracia.
Agora, paradoxalmente, as teses liberais sobre a economia jamais funcionaram à margem do apoio do poder político e estatal especialmente. Não existe algo que seja laissez-faire por um lado, e por outro o Estado intervencionista, ambos crescem juntos na história. A União Europeia é um grande exemplo disso; primeiro foram os ordoliberais alemães do pós-guerra que assentaram suas bases, depois vieram os neoliberais, com os quais finalmente o mercado assalta as instituições políticas.
A UE funciona sem coordenação política econômica, isto é o que sempre definiram e defendem as elites alemãs como uma comunidade de estabilidade orçamentária: um mesmo marco monetário em que cada Estado deve garantir de forma individual o equilíbrio do orçamento, sem políticas fiscais e econômicas comuns, agravando uma divisão europeia do trabalho. A UE somente coordena para que o déficit não supere os 3% e a dívida os 60% do PIB. E o BCE, independente da democracia, fixa seu objetivo de que a inflação não supere 2%. Os arquitetos do neoliberalismo acreditam que colocando esta série de limites, a economia pode funcionar com base em automatismos que por si só disciplinam os Estados membros.
Mas ao não existir programas comuns fiscais, este modelo aplicado como regra moral geral, independentemente da realidade produtiva de cada país e de seu lugar na divisão europeia do trabalho, era apenas questão de tempo observar seus limites. Em 2007, os países do coração da UE tinham superávit comercial, exportando mais do que importavam: Alemanha (7,9% do PIB), Holanda (8,1%), Bélgica (3,5%). Em contrapartida, países do sul tinham déficit comercial, Portugal (8,5% do PIB), Espanha (9,6%) e Grécia (12,5%). Os primeiros aplicaram medidas que congelavam os salários para ganhar em competitividade e a redução da demanda interna, suprida com exportações. Os segundos tinham um tipo de interesse real muito baixo que propiciava bolhas (imobiliária) e o financiamento que recebiam vinha dos créditos que alimentavam os milhões de excedente dos primeiros para que os segundos comprassem suas exportações. Eu te empresto dinheiro para que você compre de mim.
Quando este mecanismo encontrar seus limites, a opção final passará por acertar as políticas de retrocesso social que dificultam, ainda mais, a saída da crise. Mecanismos como o TECG (Tratado de Estabilidade, Coordenação e Governança, 2012) e do MEDE (Mecanismo Europeu de Estabilidade) funcionam assim: o primeiro para impor mais regras de disciplina orçamentária, enquanto o segundo aporta dinheiro para restaurar a coerção dos mercados financeiros sobre os Estados.
O dinheiro somente circula pelos mercados financeiros e toda essa liquidez injetada serve somente para gerar novas bolhas especulativas. As regras da austeridade são, definitivamente, as regras da deflação em uma economia do saque pela vida da dívida, que sempre aposta na redução das condições de trabalho, na privatização de serviços públicas e no arrocho salarial. Em que os Estados possam desvalorizar a moeda e na ausência de políticas fiscais expansivas europeias, nos resta pressionar para fazer valer que somos a quarta economia da Europa e nos somarmos a outros países do sul para modificar os tratados da UE. Na medida do possível, em aliança com os alemães. O BCE é, para dizer em termos modernos, o novo Palácio de Inverno.
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Jorge Moruno Danzi é sociólogo e escritor. Participa desde seu lançamento da iniciativa política Podemos. Colaborou nos livros “Los indignados del 15 de Mayo”, “Les raons dels indignats” e “Cuando las películas votan”. Artigo publicado no site espanhol Publico.es.
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