segunda-feira, junho 29, 2015

Uma das implicações da financeirização é a despolitização da política.


"No capitalismo, as dívidas não existem para serem pagas, mas para serem compradas e vendidas"
Bancos continuam fundados sobre a moeda como reserva de valor, e não são apenas grandes demais para falir, mas muito “parasitários”. Uma das implicações da financeirização é a despolitização da política, frisa Massimo Amato
Por: Márcia Junges e João Vitor Santos | Tradução Sandra Dall Onder
Imagine um mundo sem política. Ou pior, um mundo em que o capital pode orientar, e até comandar, a política. O valor que se dá para o capital na contemporaneidade está elevando esse grau de importância numa espécie de despolitização, quando o dinheiro e as questões econômicas surgem em detrimento das questões políticas. Essa é a visão do pesquisador em História Econômica Massimo Amato. “A implicação política fundamental (do modelo econômico financeirizado e globalizado) é a despolitização da política. A ‘comunidade financeira global’, que pode deslocar seu capital de um lado a outro do planeta a qualquer momento, é quem agora decide o destino das nações”, diz em entrevista concedida por e-mail para a IHU On-Line.
Amato ainda reflete sobre a incoerência em pensar o dinheiro, o capital, a moeda, como fim e não apenas como meio. Recorda que, para Aristóteles, “moeda não é um poder, mas o sinal que lembra a dependência dos outros”. Numa perspectiva keynesiana, completa seu raciocínio considerando que possuir dinheiro é estar exposto a desejos alheios, à vontade dos outros. “Essa maneira de ver o dinheiro implica que ele não pode ser pensado como riqueza ou como ‘fim’, mas como um ‘meio’ do qual é preciso saber se liberar”, explica, ao propor um deslocamento. O que o professor evidencia é a função básica da moeda: mensurar algo na troca, e não ser o objeto da própria troca.

Ao longo da entrevista, em que Amato aprofunda seus conceitos de moeda, mercado e o mercado globalizado, também propõe reflexões que levem à saída dessa concepção equivocada do dinheiro. Sua crença é na capacidade da existência de “outro dinheiro” numa “outra economia”. “Keynes não nos deixa esquecer que a moeda não é uma simples convenção, mas uma instituição: ele não cresce como trigo nos campos, nem pode ser simplesmente produzido como um automóvel. Mesmo a moeda capitalista, que pretende impor-se como um dado da natureza, é uma instituição. Ora, o que é próprio das instituições é que elas podem mudar”, provoca.

Massimo Amato é pesquisador em História Econômica da Università Bocconi, em Milão, e também professor no curso de disciplinas filosóficas e históricas. Entre suas principais publicações estão “Milan and the Mediterranean Economy, 16th and 17th Centuries”, in AA.VV., Cities of Finance, Elsevier, 1996; I monetaristi italiani fra Cinque e Settecento (Milão, Electa, 1995); Il bivio della moneta. Problemi monetari e pensiero del denaro nell'Italia settentrionale del secondo Settecento (Milão: EGEA, 1999) e The end of Finance (Cambridge, UK: Polity Press, 2012).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Qual é a definição de ‘moeda’ para Aristóteles? O que ela significa para os economistas da Escola de Chicago, cuja preponderância teórica domina a economia de hoje?

Massimo Amato - Para Aristóteles  a moeda é “tes hypallagma chreias” (Ética a Nicômaco V, 5) , expressão que em meus livros traduzo por “porta-voz da falta”. Para Aristóteles, portanto, a moeda não é um poder, mas o sinal que lembra a dependência dos outros. Keynes  reconhece firmemente este traço fundamental quando escreve que “aqueles que possuem dinheiro estão à mercê dos outros”. Essa maneira de ver o dinheiro implica que ele não pode ser pensado como riqueza ou como “fim”, mas como um “meio” do qual é preciso saber se liberar. Instituir a moeda significa, pois, saber construí-la de tal modo que sua “nulidade”, sua insignificância, em suma, sua neutralidade, possa aparecer com clareza.
Para a economia política de derivação clássica e neoclássica, da qual a Escola de Chicago  é só um discípulo particularmente rígido, a neutralidade da moeda é, ao invés, “um dado da natureza”, totalmente compatível com sua natureza de mercadoria e de reserva de valor. O problema teórico subjacente, hoje, é exatamente de conseguir mostrar a incoerência de tal posição: como pode o dinheiro ser de fato neutro, isto é, “não valer nada”, se ele é projetado e construído para ser “tudo”, ou seja, a forma mais segura de riqueza? Aí reside a força da obra de Keynes: sublinhar a inconsistência e a irrealidade congênita da compreensão da moeda como reserva de valor e, portanto, como mercadoria.

IHU On-Line - Neste sentido, a moeda é uma instituição paradoxal?

Massimo Amato - O paradoxo atual da moeda “assim como a conhecemos” (as we know it, dizia Keynes), ou melhor, assim como acreditamos conhecê-la, está no fato de que, por um lado ela é declarada neutra, ou seja, insignificante, e por outro, pelo modo como é construída, é o objeto de preferência provavelmente sem limites. É a “preferência pela liquidez” de que fala Keynes. 
Ao contrário de qualquer outra mercadoria, para a qual a economia política admite limites, a moeda é um objeto de desejo potencialmente infinito. Este traço paradoxal mostra-se particularmente evidente durante as depressões, quando a preferência pela liquidez, ou seja, o desejo de manter o dinheiro fora de circulação, impossibilita as trocas e a produção, criando a “armadilha da liquidez”. A decisão de “gastar amanhã”, na expectativa de uma queda nos preços, determina uma efetiva queda dos preços, alimentando, por sua vez, um ulterior adiamento da decisão de gastar, formando assim o círculo vicioso, lógico e prático da depressão. Depressões econômicas, bem como as psíquicas, podem durar décadas, exatamente porque se autoalimentam dos seus próprios paradoxos.

IHU On-Line - Sob que aspectos o mecanismo da dívida, como culpa (schuld, em alemão), é fundamental para o sucesso da lógica sacrificial do capitalismo?

Massimo Amato - Formalmente vinculado à máxima pacta sunt servanda , no seu funcionamento efetivo, o capitalismo nega a “dívida” como condição comum de todo mundo, para torná-la mercadoria. Nesta operação de transformação da ‘dívida’ em mercadoria, a vítima sacrificial do capitalismo é a própria verdade do sacrifício. Uma vez transformada em mercadoria comprada e vendida, a “dívida” pode ser vista como algo que tendencialmente não implica nenhuma responsabilidade a ninguém. 
No capitalismo, as dívidas não existem para serem pagas, mas para serem compradas e vendidas. Esta é a lógica do mercado financeiro. E, enquanto eles “funcionam”, ou seja, enquanto as expectativas especulativas promovem o crescimento dos preços dos títulos financeiros, as financeiras permitem o acesso ao crédito potencialmente a todos. O lema da era subprime  foi: “emprestar dinheiro (com vantagem para todos) também para aqueles que não o merecem”. É o lado “mefistofélico” do capitalismo: ele apresenta-se como veículo de democratização da sociedade, sem mostrar os rendimentos financeiros naquilo que de fato são, ou seja, rendimentos daqueles que não trabalham. Ou ainda, em outras palavras, para retomar uma formulação de Keynes que responde diretamente à questão da lógica sacrificial evocada na pergunta: o rendimento “não é a remuneração de nenhum sacrifício genuíno”.

IHU On-Line - Quais as diferenças fundamentais do mercado na sua origem e do mercado financeiro globalizado de hoje?

Massimo Amato – O mercado começa e termina com mercadorias. A moeda, na medida em que determina a diferença entre o que é mercadoria e o que não é (entre o que é negociável e o que foge a qualquer negociação), delimita e estabelece uma economia de mercado. Por esta simples razão um mercado de dinheiro é paradoxal. Mas os mercados financeiros globalizados são a institucionalização deste paradoxo. E enquanto não vermos claramente sua impossibilidade lógica e sua inaceitabilidade prática, será difícil compreender que tipo de benefícios reais uma sã economia de mercado pode trazer.
Podemos, por enquanto, estabelecer de modo formal a distinção entre os dois termos que hoje parecem sinônimos: capitalismo e economia de mercado. O capitalismo é uma economia de mercado com um mercado a mais, aquele do dinheiro. As implicações políticas concretas desta distinção devem ser bem claras: enquanto o capitalismo, para existir, precisa apoiar-se na economia de mercado, este, no entanto, pode ser pensado sem o capitalismo.

IHU On-Line - É correto falar de uma ontologização do mercado hoje? Em que medida?

Massimo Amato - Sempre dentro de indicações formais, diria exatamente o contrário: o “mercado”, ou melhor, o capitalismo, hoje, trata onticamente o que deveria ficar no horizonte ontológico. Trata como “coisa” o que não é, pois trata o dinheiro como se fosse uma mercadoria. O que deveria ser ‘a medida’ nas trocas, torna-se um objeto, até mesmo, de certa forma, o único objeto de troca. Mas este “objeto” é simplesmente um objeto impossível, porque o dinheiro não é um objeto de troca, mas sua medida.

IHU On-Line - Até que ponto se pode pensar em “outro dinheiro” e “outra economia”?

Massimo Amato - Eu diria melhor: a partir de que ponto é possível pensar não utopicamente numa economia diferente? Este ponto de partida é exatamente a moeda. É bom lembrar, e Keynes não nos deixa esquecer, que a moeda não é uma simples convenção, mas uma instituição: ela não cresce como trigo nos campos, nem pode ser simplesmente produzido como um automóvel. Mesmo a moeda capitalista, que pretende impor-se como um dado da natureza, é uma instituição. Ora, o que é próprio das instituições é que elas podem mudar. Uma moeda não simplesmente declarada neutra, mas de fato instituída de modo a não contar nada, seria o início de uma nova e outra economia, e de um outro mercado.

IHU On-Line - Martin Wolf, editor do Financial Times, escreveu,  há alguns meses, que deveria ser retirado dos bancos privados o poder de criar dinheiro do nada. Como compreender este poder das instituições financeiras?

Massimo Amato - A criação de dinheiro bancário é, de fato, um problema, agora percebido também pelos bancos centrais, que formalmente mantêm o monopólio da emissão monetária. Mas, na verdade, são cada vez mais incapazes de controlar sua criação e controlar a transmissão dos impulsos monetários do sistema bancário e financeiro para a economia real. Concordo com Wolf, que retoma um tema bem presente em Keynes. Mais uma vez aparece o lado problemático da moeda, como sabemos. Ou seja, o fato de ela ser reserva de valor. O multiplicador bancário trabalha com mais potência quanto mais baixas forem as reservas dos bancos. Mas não podemos deixar de observar que estamos falando de “reservas”. Os bancos atuam hoje não como “intermediários”, capazes de pôr em contato poupadores e investidores reais, mas como sujeitos financeiros que compram e vendem dinheiro. Mas o dinheiro só pode ser comprado e vendido se ele funcionar como mercadoria. E funciona como mercadoria somente se for reserva de valor. 
A questão é, então, perguntar-se como poderia funcionar um banco num regime monetário em que o dinheiro não é mais reserva de valor. A estrutura da “International Clearing Union”, proposta por Keynes em Bretton Woods, em 1944, é a estrutura de um banco em que o dinheiro não é uma reserva depositada, mas uma pura unidade de medida das relações de débito e crédito. E ainda mais interessante é notar que estão aparecendo sistemas de compensação local (penso no caso italiano Sardex ) que aplicam o mesmo princípio e criam crédito sem criar acumulação monetária.

IHU On-Line - Portanto, como compreender que bancos falidos foram reabilitados na crise de 2008, enquanto populações de nações inteiras foram tragadas pelo desemprego e pela perda de suas casas?

Massimo Amato - É inútil negar. Enquanto os bancos permanecerem fundados sobre a moeda reserva de valor, serão sempre “grandes demais para falir” (too big to fail). E eu diria não só que são grandes demais, mas também demasiadamente parasitários. Os bancos privados apropriaram-se de uma função pública: a gestão do sistema de pagamentos. Portanto, o seu falimento em cadeia, único efeito resultante da decisão de não salvar mais nenhum, privaria a economia real não só da moeda como reserva de valor, mas também da moeda como medida e meio de pagamento. A eliminação do “'hóspede” prejudicaria também o corpo que o abriga. O salvamento dos bancos, moral e economicamente injustificáveis, é um sintoma do impasse teórico e institucional prevalecente no mundo de hoje.

IHU On-Line - É possível prever um cenário com os bancos reduzidos a servidores, e não mais donos da economia?

Massimo Amato - Enquanto as finanças tendem a deixar de lado a economia real, a economia real não pode deixar de lado o crédito, simplesmente porque esta se desenvolve ao longo do tempo. Remeto a algo dito acima: é possível pensar em bancos simplesmente intermediários, e neste sentido servidores, do sistema de investimento real, na medida em que se renuncie a função de reserva de valor. Com importante incidência para todos nós. 
A renúncia à função de reserva de valor implica que o ato de poupar volte a ser o que realmente é: uma condição necessária, mas não suficiente, para a realização, por meio dos investimentos, das vantagens esperadas. O dinheiro poupado deve ser de fato aplicado em investimentos reais, mas, como estes são arriscados, e são arriscados porque estruturalmente incertos, e incertos porque voltados para o futuro, então o investidor também deverá aceitar que a remuneração do seu dinheiro não aconteça prefixadamente, na forma de taxa de juros, mas sucessivamente, sob a forma de participação nos lucros. Esta ainda é a doutrina oficial da Igreja, como se pode ler na encíclica Vix pervenit  de Bento XIV no ano de 1745: toda remuneração preventiva do empréstimo é usura.

IHU On-Line - É verdade que o sistema bancário foi minado pela desregulamentação, resultando num novo sistema de usura, especulação e exploração? Por quê?

Massimo Amato - Remeto ao que foi apenas dito: se usura não significa “taxa de juros mais elevada do que o mercado”, mas simplesmente “taxa de juros”, a usura sempre existiu desde que a moeda foi introduzida como reserva de valor.

IHU On-Line - Quais são as implicações políticas fundamentais desse modelo econômico financeirizado e globalizado?

Massimo Amato - A implicação política fundamental é a despolitização da política. A “comunidade financeira global”, que pode deslocar seu capital de um lado a outro do planeta a qualquer momento, é quem agora decide o destino das nações. Mas o verdadeiro problema é que ela não é uma verdadeira comunidade, senão simplesmente uma comissão de credores irresponsáveis pelos efeitos das próprias decisões. 
“Finança” significa originalmente a conciliação amigável de uma disputa: é o nome de uma relação de cooperação entre devedores e credores. E, nesse sentido, trata-se de uma comunidade. As finanças do mercado financeiro vivem da destruição desta relação: a destruição é vantajosa para os credores, certo, que se livram dos encargos e do risco de uma relação comunitária. Mas também para os devedores, que se sentem dispensados da obrigação de honrar suas dívidas de forma responsável, ao menos enquanto as condições do mercado permitem seu refinanciamento constante. Ora, entre os devedores estruturais dos mercados financeiros encontram-se, desde o início, os Estados. O que não se quer, ou talvez já nem se consiga mais ver, é que os mercados financeiros vivem uma conivência desresponsabilizante do Estado com o mercado. 
Os Estados, chamados para supervisionar as finanças, dependem dela para o seu financiamento, e as finanças, chamadas a alocar o crédito com “eficiência”, não podem recusar aqueles devedores insolventes como os Estados. Uma finança diferente só poderia surgir se pudéssemos distinguir entre “público” e “estado”, entre “pagamento da dívida” e “adiamento indefinido do pagamento”. Esta distinção passa, necessariamente, tanto quanto eu posso ver, pela reconsideração da moeda. Enquanto não o fizermos, vamos ter de nos contentar em viver em um mundo que nega a existência e a natureza problemática dos desequilíbrios, alimentados continuamente, e onde a falta de medição é compensada com o exercício, nem sempre necessariamente violento, mas, de qualquer modo, sempre desmedido, das relações de força.

A financeirização está transformando metodicamente um dos pilares do capitalismo, a relação assalariada.

A financeirização e as mutações do capitalismo
Para Yann Boutang, a financeirização está transformando metodicamente um dos pilares do capitalismo, a relação assalariada, que também é uma das chaves da exploração nesse sistema
Por: Márcia Junges e Leslie Chaves| Tradução Vanise Dresch
Para além do econômico, a financeirização tem ampla influência na organização social, atingindo aspectos como a biosfera, “que diz respeito à produção do meio vivo em geral”, e a noosfera, “que cobre todas as atividades mentais, espirituais, culturais”. Segundo Yann Moulier Boutang, apesar de serem menos destacados, tais impactos são profundos. “A produção de conhecimentos novos, a aprendizagem por meio de conhecimentos e aquela, mais delicada, do vivente por meio do vivente, por levantar questões éticas cruciais, ampliaram tanto a esfera pertencente ao econômico, que ela colocou em crise os principais instrumentos de avaliação a que recorriam os economistas (o valor trabalho, o valor utilidade, a medida do tempo, da produtividade, a imputação a indivíduos ou a entidades como as empresas da inovação, da eficiência)”, aponta em entrevista por e-mail à IHU On-Line.
Diante desse cenário, o sistema capitalista tem sofrido modificações significativas em comparação com a estrutura que apresentava na era industrial. De acordo com o economista, a financeirização é simultaneamente o cerne dessas transformações e do capitalismo em si. 
Ao longo da entrevista, Boutang aborda os reflexos da financeirização nos diversos campos da vida em sociedade, como a relação com as Tecnologias de Informação e Comunicação como meio para pensar alternativas para a construção de uma sociedade mais comprometida com o bem comum. “Tenho grande confiança no desenvolvimento de uma política mais sintonizada com as necessidades de nosso tempo, porque a revolução digital, ao contrário da revolução industrial, nos conduz agora a uma fase da humanidade capaz de abolir o trabalho como maldição bíblica para passar à atividade coletiva como liberação do homo oeconomicus”, frisa.
Yann Moulier Boutang participou ativamente do movimento de 1968. Em 1973, conheceu Antonio Negri, de quem permanece parceiro intelectual. Em 1974, criou a revista Camaradas, que desenvolve os temas da “Autonomia Operária”, conceito adotado então na Itália por militantes procedentes do operariado. Camaradas é um dos primeiros grupos do movimento autônomo na França. Após a autodissolução da revista, Boutang participa, de 1979 a 1981, do Centro Internacional para Novos Espaços de Liberdade - CINEL, uma iniciativa de Félix Guattari. È redator chefe da revista política, artística e filosófica Multitudes. Atualmente é professor de ciências econômicas na universidade de tecnologia de Compiègne e professor no Centro Fernand-Braudel da Universidade de Binghamton-New York, EUA.
De sua vasta produção intelectual, destacamos: De l’esclavage au salariat. Économie historique du salariat bridé (Paris: PUF, 1998), Le droit dans la mondialisation: une perspective critique (Paris: PUF, 2002), Le capitalisme cognitif. La nouvelle grande transformation (Editions Amsterdam, 2007) e L'Abeille et l'Économiste (Paris: Carnets Nord, 2010).

Confira a entrevista.

IHU On-Line - Nos dias de hoje, quais são os impactos fundamentais da financeirização em nossa vida?

Yann Moulier Boutang - Vejo três tipos de impacto segundo a natureza dos setores afetados. A financeirização de tudo diz respeito, naturalmente, às atividades que chamaríamos de mercantis (comércio, indústrias manufatureiras, produção agrícola, indústrias culturais, indústrias financeiras como os seguros), mas ela imiscui-se também, de forma crescente, naquilo que a contabilidade nacional chama de setor não mercantil (gestão do Estado, das coletividades locais, das universidades, dos serviços públicos, entre os quais o da saúde, e das empresas). Mas há também um impacto talvez mais profundo e menos destacado que diz respeito à produção do meio vivo em geral (a biosfera planetária) e ao meio mais especificamente inserido no primeiro: a noosfera, que cobre todas as atividades mentais, espirituais, culturais. A produção, como já haviam pensado, faz muito tempo, os filósofos e os teólogos, não é somente a transformação da matéria, por meio da energia, pelo homo faber; ela abarca a geração das condições dessa produção: a linguagem, o corpo em boa saúde, a cultura e todos os laços que fazem de nós seres sociais. Hoje, porém, essa evidência acabou caindo no modelo reducionista da ciência econômica. A produção de conhecimentos novos, a aprendizagem por meio de conhecimentos e aquela, mais delicada, do vivente por meio do vivente, por levantar questões éticas cruciais, ampliaram tanto a esfera pertencente ao econômico, que ela colocou em crise os principais instrumentos de avaliação a que recorriam os economistas (o valor trabalho, o valor utilidade, a medida do tempo, da produtividade, a imputação a indivíduos ou a entidades como as empresas da inovação, da eficiência).
IHU On-Line - Em que medida o neoliberalismo é o fundamento, a base da financeirização?
Yann Moulier Boutang - Eu não colocaria as coisas nessa ordem. Pelo contrário, eu inverteria a ordem. O neoliberalismo, que, do liberalismo, só mantém o aspecto econômico, logo, o pior, porque logo se desembaraça do aspecto libertador dos direitos humanos, é apenas uma consequência subalterna, historicamente transitória, do regime de financeirização. Ora, a financeirização é, ela mesma, uma consequência da transformação profunda a que me referi na primeira resposta, e que resumo em minha tese do advento de um terceiro tipo de capitalismo, o capitalismo cognitivo. É porque o capitalismo descobriu o novo continente da polinização humana (da força produtiva das interações da multidão humana em sociedade), de trezentas a mil vezes mais produtiva que o antigo modo de produção dominado pelo modelo da mecânica, da energia de carbono, que ele precisa ampliar a finança, já inventada na era do mercantilismo, em Gênova, para cobrir o risco marítimo, a essa nova economia mundial. Em outras palavras, a multiplicação do crédito pelo mercado financeiro em relação aos fundos próprios (um coeficiente de alavancagem [leverage, em inglês] monetária de 30, em vez de 5) não é uma monstruosidade vinda do céu ou do inferno, e sim um pálido reflexo da descoberta de um novo Eldorado. Os GAFA  são os conquistadores do antigo mundo da economia industrial, embora seu evangelho seja bastante frustro (Don’t be evil de Google ) ou absolutamente desmedido em sua negação da finitude (a primeira versão do transumanismo californiano). Se a nova esfera da riqueza (e, portanto, do valor possível), como a polinização, vale, no mínimo, várias centenas de vezes o valor do Produto Interno Bruto - PIB comercial planetário, os antigos índices de multiplicador de crédito se tornam totalmente insuficientes para valorizar essa nova esfera, e os aprendizes de feiticeiro das salas de trading  dos bancos arremedam essa transformação fundamental. 
A finança é o governo par defaut  das externalidades positivas de polinização, e também das temíveis externalidades negativas de destruição de nosso oikos, nosso meio ecológico. O neoliberalismo imiscui-se nessa brecha aberta da antiga economia: ele permite avaliar, estabelecer tecnicamente um preço para o futuro e a massa em falta da economia (o continente das externalidades). Enquanto os Estados e a sociedade mundial não compreenderem o potencial produtivo da polinização humana, não medirem todas as consequências em matéria de valor (portanto, de prioridades), de novos e antigos bens comuns a serem instituídos, incentivados, protegidos em comum, em matéria de impostos, de regulação, o neoliberalismo prosperará como o único programa disponível. É nesse sentido que falo de um governo neoliberal par defaut, na acepção da informática: trata-se de um modo de governança ao qual recorre o sistema global, que tem horror do risco e da incerteza radical ainda mais, por falta de algo melhor. Fazer da finança e do neoliberalismo os inimigos número um e a última ratio da desordem na terra é praticar exorcismo obscurantista, é retardar a conscientização da realidade das transformações e dos potenciais libertadores que elas contêm, e da elaboração de políticas alternativas. 

IHU On-Line - Em que aspectos a pulsão de vida (e morte) do capitalismo, a acumulação, é um elemento importante para compreendermos essa financeirização?
Yann Moulier Boutang - Não gosto muito do uso do termo “pulsão de vida” ou, a fortiori, “pulsão de morte” para se referir a entidades que não sejam pessoas humanas e que não seja no plano psicanalítico. Além disso, não penso que a financeirização, outro nome do capitalismo (é seu cerne atual), seja suicida, nem dionisíaca, em relação à concepção apolínea e fria da racionalidade neoclássica. Enfim, ao contrário de certo marxismo vulgar mecanicista, a acumulação não é “a lei e os profetas” do capitalismo (o capitalismo mostrou, em sua história, ter sido capaz de destruir friamente quantidades gigantescas de capital físico e de capital intelectual quando seu poder esteve ameaçado — definido, como diz Foucault, como a capacidade de fazer com que alguém faça algo, no caso, os explorados). O capital e o capitalismo são uma relação social, uma relação, e não uma quantidade física de capital. Suas mutações, suas reações não são aquelas de um touro, nem de um patrão, tampouco somente as dos patrões coletivos. Acredito, como mostrou a escola operaísta, a meu ver, de maneira decisiva, que o capital como sistema complexo cujos agentes não passam de “trägers” (condutores) só é inteligível como reação e interação com o proletariado, a classe operária e, hoje, o mundo cognitivo ou das redes, a composição do capital intelectual vivo, e como controle dos impulsos e movimentos desse devir-classe, ele só pode ser compreendido como reação, retrocírculo, se assim podemos dizer, dentro dessa relação. Toda a história específica das relações (portanto, de força) capitalistas, as únicas que constituem o capital, o qual não é nem uma coisa nem dois atores preexistentes, só pode ser lida nessa dialética, e, além disso, com a opção metodológica, mais interessante do ponto de vista heurístico, de inverter as prioridades de ver, primeiramente, os movimentos a partir de baixo, para depois subir, em vez de partir dos níveis econômicos e técnicos do capital para deles deduzir o Estado, as classes sociais, os “subalternos”, logo, do economismo, que é um marxismo e um neoliberalismo igualmente vulgares. 
A realidade é mais simples e mais complexa ao mesmo tempo. Mais simples: o capitalismo como modo de produção, no momento em que parecia (apenas parecia) superar um antagonismo devido ao desaparecimento do “socialismo real”, deparou-se com um limite, o qual podemos chamar de morte, mas não uma pulsão de morte, e sim a morte do planeta, de nossa morada comum, a da biosfera. Essa manifestação cada vez mais nítida da consciência da finitude não dos indivíduos (ontogênese), mas do homo sapiens sapiens (filogênese), é a nova força que trabalha o par das relações de força das classes, o novo clinâmen [declinação], os antigos dominados e os sempre dominantes. Diante dessa emergência que, em economia, tem o nome de aumento do peso das externalidades negativas e positivas (estas últimas sendo pouco visíveis, ao contrário dos efeitos devastadores do crescimento capitalista), o governo da relação (a famosa governança) se expressa pela forma da finança e da financeirização, que permite incluir essas externalidades tanto para o bem como para o mal. A financeirização não é a pulsão de morte, ela é uma resposta “par defaut”, por falta (falta de alternativa), a essa finitude planetária e ao risco político que afeta a sobrevivência da relação capitalista, não mais do lado da exploração dos homens, mas do lado da exploração do planeta, que conduz à morte global. A finança em si mesma não é a pulsão de morte do capitalismo: ela representa sua forma de sobrevivência, de resiliência, portanto, é antes sua pulsão de vida, mas essa pulsão de vida está a serviço de uma relação que enfrenta agora, ela mesma, a questão da morte global da espécie na era do antropoceno. Ela pode ser qualificada de pulsão de morte somente em segundo grau, se considerarmos que a sobrevivência do capitalismo se dá em detrimento da sobrevivência global do mundo. E, por outro lado, no plano das externalidades positivas, trata-se mais de um instrumento que pode ser domesticado a serviço da vida global do planeta (financiando a transição ecológica e a despoluição dos resíduos nucleares e do lixo industrial que nos tornamos). 

IHU On-Line - Nesse cenário de financeirização, quais são os limites, desafios e possibilidades do capitalismo cognitivo?

Yann Moulier Boutang - A financeirização representa o triunfo desviado da consideração das externalidades, do invisível e do imaterial na produção pela humanidade de suas próprias condições de vida. Ela arremeda à sua revelia a força da polinização humana, única fonte verdadeira da riqueza (mas ainda não do valor), e a acuidade do risco ecológico maior no qual a hybris  capitalista mergulhou nosso planeta. Seus limites devem-se em larga medida ao seu poder de amplificação (que vemos nas bolhas financeiras infladas e rompidas) e de possibilidades de ganhos espetaculares, portanto, de acumulação de poder, que ela oferece à avidez, à cupidez humana quando se alia à inteligência. 
A financeirização é o braço armado, sinto-me tentado a dizer, da “nova grande transformação” que o capitalismo está efetuando, em detrimento do corpo do velho capitalismo industrial. Ela constitui, mais do que nunca, o cerne do capitalismo (aliás, ela sempre foi, como mostrou Braudel , o mercado sendo apenas uma consequência, uma fetichização quase religiosa de sua ordem, mas em um nível muito mais visível agora). 
Ao mesmo tempo, ela pode se tornar o melhor auxiliar para uma saída por cima, num sentido libertador, do capitalismo, o qual corresponde a um projeto historicamente datado de transformação do planeta. Ela está desgastando metodicamente um pilar, o pilar por excelência do capitalismo, a relação assalariada estável, que é também a chave do mecanismo da exploração.
A automação intelectual, com a robotização de múltiplos serviços graças à acumulação de big data  produzido pelos objetos conectados e às learning machines , está polarizando, reduzindo drasticamente o emprego (e até mesmo as relações convergentes na Europa e nos Estados Unidos, a tal ponto que já se prevê um aniquilamento dos empregos das classes médias nas próximas décadas) e, além disso, polarizando ao extremo o emprego entre, de um lado, tarefas pouco qualificadas, automatizáveis, ou tarefas de care  impossíveis de automatizar, e, de outro lado, tarefas muito qualificadas, inovadoras, inteligentes e rebeldes ao learning machines por serem singulares. 
Foi, em suma, o que Marx descreveu no texto mítico “Fragmentos sobre as máquinas”, nos Grundisse (São Paulo: Boitempo, 2011), que constituiu a base da reflexão operaísta nos anos 1960. O capitalismo, em seu centro, está abolindo o trabalho assalariado, retornando a uma atividade mercantil precária, sem cobertura social, sem proteção e, ao mesmo tempo, explorando socialmente a atividade não mercantil de polinização da interação comunicacional, linguística, científica, cultural, e até mesmo de fabricação nas fábricas digitais, nos fab labs . Com todo o potencial de revolta, de invenção de novos modos de vida e de relações produtivas alternativas. Toda essa nova transformação só será possível através de uma domesticação da finança de mercado, que representa algo totalmente diferente do que são as invocações rasas e piedosas a uma moralização do mercado, cujos limites pudemos avaliar oito anos depois da crise dos subprimes . Os novos resíduos bourbonianos, para usar as palavras de Keynes , não são mais o lastreamento da criação de crédito no ouro, mas a limitação dos investimentos em nome de uma austeridade absurda e, afinal, criminosa.  
IHU On-Line - Acredita que há uma hegemonia da economia sobre a política? Por quê?
Yann Moulier Boutang - A economia, dizia Lênin , é o político condensado. O atual primado de uma economia sobre as decisões de política econômica e sobre a moldagem da legislação (como o eterno aumento da flexibilização do mercado de trabalho) reflete duas coisas: a) a persistência de uma ideologia muito delimitada no tempo (entre 1950 e 1980, o monetarismo em particular) que, depois de ter conquistado posições universitárias sólidas, transformou-se em ideologia gerencial mais estatal; b) a resistência feroz da parte já subalterna da classe menos produtiva do capitalismo, e certamente não aquela do capitalismo cognitivo. Este está amplamente em guerra com os velhos setores reacionários do capitalismo industrial “bleu marine” [azul marinho] (jogo de palavras, em francês, que remete ao macacão azul usado pelos operários [bleu] e ao nome de Marine Le Pen, porque, hoje, mais de um quarto dos operários da indústria votam na extrema direita) em muitas áreas, entre as quais a “uberização” , a “googlelização”  são etapas em andamento. Ao cabo dessa nova grande transformação, a economia de produção terá sido infiltrada pela economia digital. A financeirização representa a liquidação e a liquidez da velha economia. O capitalismo cognitivo ainda não dispõe de uma economia política que lhe corresponda. Chegamos apenas ao novo quadro de Quesnay  dessa nova álgebra do valor econômico, e aqueles que refletem sobre as formas modernas de exploração, de servidão, sobre os novos vícios, as novas amarguras dessa economia que partiu rumo à conquista do céu, estão longe de terem criado novos instrumentos de luta e domesticação do dragão digital. 

IHU On-Line - Em termos gerais, é adequado analisar essa preponderância da economia sobre a política como um elemento explicativo do descrédito da política e da apatia dos eleitores?

Yann Moulier Boutang - É claro que a crise política reflete essa exasperação em relação a uma submissão beata ou muito tola das políticas às “leis da economia”, como se estas nos impusessem o famoso Tina de Margaret Thatcher (there is no alternative) . Os partidos conservadores, liberais, enfrentam uma situação revolucionária da economia. Tornam-se reacionários em querer retornar à era dourada industrial (que, aliás, foi extremamente árdua para os pobres, os humilhados e os ofendidos). Os partidos de esquerda comunistas e socialistas viram sucessivamente o comunismo entrar em colapso ou acabar no pesadelo de transições desvairadas para o pior do capitalismo liberal sem a democracia. O socialismo reduziu sua ambição (do modo como ainda a formulavam Jaurès , Blum , na França, ou a grande social-democracia alemã) a uma cogestão implícita de um capitalismo neoconservador moderado por uma preocupação de redistribuição limitada às classes médias. 
Em ambos os casos, a mola transformadora que fora a locomotiva do progresso e do modelo europeu, apesar de sua arrogância colonialista, rompeu-se. Uma pesquisa de opinião realizada em junho de 2015 mostra que 89% dos franceses não gostam dos partidos políticos. Os que se saem menos mal são os partidos com função “de tribuna”, como dizia Georges Lavau , isto é, contestadores, não gestores, como o Partido Comunista e, hoje, o Front National  (versão Jean-Marie Le Pen , o pai), seguido pelo centro e pelo Partido Verde, ambos marginais. O cenário europeu, no entanto, está mudando, com o crescimento de um populismo (desta vez, com governos como Erdogan, na Turquia, Orban, na Hungria, Marine Le Pen (filha), na França, o Skip party, no Reino Unido) que se expressa num soberanismo sem futuro, porque repousa em uma visão da economia que se mantém nacional num conjunto europeu cada vez mais federal de fato, mesmo que isso ainda não seja reconhecido. Felizmente, essa perspectiva pouco encorajadora é contrabalanceada pela saída institucional à esquerda, de Syriza , na Grécia, e de Podemos , cinco anos depois do movimento dos Indignados . Haverá uma conjunção, nos próximos anos, entre essas buscas de alternativas políticas reais para enfrentar o imobilismo das velhas receitas e para a renovação profunda da economia (via revolução digital) e, por fim, em último lugar, da economia que se encontra, hoje, na posição “ancilar”  da teologia na Idade Média e num papel extremamente conservador, para não dizer reacionário, que acabou assumindo no Renascimento.
IHU On-Line - Qual é o espaço e os limites da democracia nesse cenário?
Yann Moulier Boutang - A economia não pode mais limitar-se à economia mercantil e a um setor não mercantil público que repete todos os limites da economia mercantil. Ela tem de incluir as externalidades no cálculo econômico, isto é, aquilo que podemos usar como recursos, e em que condições. Isso, para salvar o planeta (a biosfera), que temos de transmitir aos nossos filhos e netos em um estado equivalente, no mínimo, àquele que recebemos (essa é a melhor definição do desenvolvimento sustentável). Para cumprir esse programa urgente e de uma complexidade temível, a economia deve apoiar-se na noosfera (toda a esfera da mente, da língua, da cultura) e cultivar a polinização das abelhas humanas e não os adubos químicos e os pesticidas (é fácil estabelecer uma comparação com a biosfera, os diversos psicotrópicos sendo os adubos químicos do cérebro humano, os pesticidas sendo o tratamento da loucura gerada por essa corrida em busca da produtividade, da exploração dos humanos). 
A revolução digital combinada com os saberes humanos, e não somente com a ciência, pode tornar-se o instrumento, o órgão de uma retomada pelas comunidades humanas de seu destino responsável. Ela pode ser não simplesmente a enésima oportunidade de “turbinar” os lucros, mas levar as sociedades complexas, históricas, globais a um aprofundamento radical da democracia. Desde que, obviamente, a horizontalidade das redes digitais não se feche em um novo poder aristocrático de especialistas, para depois se juntar ao poder oligárquico dos ricos. Desde que, também, se dote de novas instituições ou contrainstituições que redefinam a autoridade, dando-lhe um rosto humano (isso passará, certamente, por uma feminização maciça de um poder masculino demais e próximo demais dos chipanzés, em vez de prestar atenção no que acontece entre os bonobos !!), limitando-a por contrapoderes, descentralizando-a. 
Isso significa, por exemplo, não considerar qualquer recurso comum como sendo uma terra nullius, um domínio público do qual os interesses privados podem tirar proveito de forma inesgotável. Portanto, uma economia de partilha, um direito jurídico de sucessão sobre o status dos bens, uma preocupação com a reprodução do que é bem comum. Em suma, rever e reconstruir o interesse geral (Aristóteles), o que é o fundamento da política a partir do copyleft, de R.M. Stallman , das regras comunitárias de uso do meio de equilíbrio frágil, de Elinor Ostrom , da força produtiva das multidões (o pinguim do Linux, lembrado por Yoshai Benkler em The wealth of Networks (Londres: Yale University Press, 2007) ou por mim mesmo em L’abeille et l’économiste (Paris: Carnets Nord, 2010)). 

IHU On-Line - Que novas formas políticas surgem enquanto resistência e enfrentamento? Nessa lógica, como podemos compreender manifestações como o 15-M , o Occupy Wall Street , o Podemos, o Syriza e até mesmo os protestos de julho de 2013  no Brasil?

Yann Moulier Boutang - Tenho grande confiança no desenvolvimento de uma política mais sintonizada com as necessidades de nosso tempo, porque a revolução digital, ao contrário da revolução industrial, nos conduz agora àquele estágio descrito por Marx em “Fragmentos sobre as máquinas”, dos Grundisse (1857-58), que ia além, mas mantinha e destacava o Marx dos Manuscritos de 1844: o de uma fase da humanidade capaz de abolir o trabalho como maldição bíblica (segundo a interpretação agostiniana e puritana de uma consequência da saída do Paraíso) para passar à atividade coletiva como liberação do homo oeconomicus, governado apenas pelas duas libidos sentiendi e dominandi em detrimento da libido sciendi ou ludendi, bem menos funestas. 
Sou otimista, porque a conjunção de um estágio de desenvolvimento econômico com a ferramenta digital, a globalização cultural e, last but not least , o surgimento de uma necessidade e de uma urgência de trabalhar para a salvação da tribo humana, ligada à salvação da terra em geral, que pode unir “aqueles que acreditavam no céu e os que não acreditavam”, não nos coloca na situação muito mais difícil do Renascimento colonial, em que se mantinha “sua face sombria”, como ilustrou Walter Mignolo , ou então naquela dos “tenants” irlandeses que lutavam contra os landlords que os expulsavam das terras e os Parliamentary enclosures . Lembremo-nos do esforço dos jesuítas, quando criaram as Reduções, para salvar os ameríndios da escravidão, da servidão ao trabalho rural e, depois, industrial a que os colonos ávidos do Eldorado os destinavam. Esse esforço foi limitado pelo fato de que a economia mutualista, comunitária (a qual o movimento operário também voltou, diante da grande indústria manchesteriana), era muito menos eficaz e produtiva do que o acúmulo capitalista muito primitivo. Mas, desta vez, na era do Spätkapitalismus , o desenvolvimento, a produtividade e, além disso, a salvação comum do planeta estão do lado da desenclausuração, do modo e do código de produção peer to peer, seja mercantil ou não. 

IHU On-Line - Até que ponto é possível haver um “outro dinheiro”? Qual deveria ser seu real papel em nossas sociedades?

Yann Moulier Boutang - A preocupação dos homens ávidos por uma sociedade de justiça e esperança, portanto, utópica, no sentido definido por Arrigo Colombo , em seus belíssimos livros, de que ela ainda está por ser construída, sempre foi controlar o poder considerável do dinheiro. O dinheiro manda fazer. É a própria definição do poder sobre outrem; neste sentido, ele corrompe tudo, inclusive a si mesmo. A hostilidade das igrejas cristãs, muçulmanas e budistas à taxa de juros, ao desbridamento de sua área de extensão, não se deve a um capricho infantil. Mas o dinheiro também libera da dívida, do presente sufocante, quando toma a forma do crédito. Ora, esse crédito é a essência da moeda, que possibilita que uma sociedade se apoie numa antecipação do futuro de uma construção mais sólida. É um poder tão potente que, assim como a fé partilhada por uma comunidade pode mover montanhas, ele logo conheceu a apropriação por pessoas privadas ou pelos Estados, que regulamentam o direito de conceder crédito, o índice de juros praticado (definindo o que é usurário), as obrigações das partes contratantes. 
O monopólio da emissão de crédito ou do instrumento técnico de pagamento que vai traduzi-lo (a moeda metálica e, depois, fiduciária), do qual o comércio é apenas um aspecto, concentra um imenso poder. De maneira lógica, os homens, principalmente aqueles que tinham por que se queixar da distribuição das riquezas, procuraram libertar-se da coerção do poder por excelência, aquela que obriga os homens a fazerem um trabalho que gostariam de evitar, sobretudo, em detrimento de atividades que não rendem dinheiro. 
A organização das moedas alternativas contesta esse poder global do dinheiro, quebrando muitas vezes, de forma muito modesta, o monopólio de emissão de moeda e crédito. As diversas tentativas de moedas locais enfrentaram, em geral, uma repressão feroz das autoridades, que viam nessas tentativas um risco de contestação do Estado e da organização da sociedade e da produção determinadas sobre as quais ele se alicerçava. Mais uma vez aqui, o desenvolvimento do caráter de interdependência global da produção das condições de existência pelas sociedades, a possibilidade, graças à ferramenta digital, de organizar uma contabilidade das atividades humanas complexas, a ferramenta das comunicações em tempo real pelos telefones móveis conectados à internet mudam consideravelmente o alcance das moedas locais. 
Quando o Banco Central do governo equatoriano (apesar de muito vigiado pelo FED  americano, uma vez que a moeda deste país é dolarizada) implementou um sistema de pagamento por telefone móvel entre os pequenos agentes econômicos, essencialmente na zona rural, sem que estes tivessem de passar pelos bancos (o governo precisou resolver problemas técnicos de segurança informática, apoiar-se numa rede de vendedores ambulantes nas cidades), ele mostrou que os bancos não são uma instituição eterna e que poderiam ter um papel consideravelmente reduzido. Em outro registro, o surgimento e o sucesso fulgurante do crowdfunding  e do crowdlending  — estes, em economias desenvolvidas — mostram que uma economia mais eficiente, menos devoradora de recursos, menos produtora de renda é possível. Em suma, que moedas locais articuladas com a economia pilotada em seu conjunto, inclusive nos agregados da liquidez ou da quase liquidez do crédito, não conduzem absolutamente ao rompimento do laço social.

IHU On-Line - Em que sentido é possível falarmos em outra economia num contexto marcado pela hegemonia do dinheiro e do mercado financeirizado?

Yann Moulier Boutang - Se a financeirização da economia expressa o fato de que a finança de mercado atual é o governo “par défaut” do crescimento cada vez mais efetivo e esmagador das externalidades tanto positivas como negativas, isso não quer dizer que outra economia além da mercantil e traduzida em moeda sonante não seja possível. Isso quer dizer, ao contrário, que enquanto a esfera não financeira da economia e a economia política não levarem em conta essas externalidades, na medida de seu crescimento na riqueza real e no potencial de valor, a finança será cada vez mais solicitada e terá muito com o que se ocupar. 
Quando formos capazes de criar outro programa de pilotagem dessa economia global, a programação “par defaut” se imporá, com seu cortejo de defeitos evidentes. A finança, com seus vícios — que são consideráveis —, tem hoje, infelizmente, a virtude (e é a única, considerando-se a pusilanimidade dos Estados) de criar liquidez para financiar o futuro (principalmente, na área da transição energética, que é uma urgência estratégica). Somente ela tem o poder de gerar 32 bilhões de dólares de crédito disponibilizados imediatamente a partir de um pequeno bilhão de fundos próprios. Cabe aos Estados e, sobretudo, às grandes comunidades internacionais (Impérios, Organização das Nações Unidas - ONU, Fundo Monetário Internacional - FMI) agir mais, e o poder da finança (que não é somente um estado de fato, mas também, nas cabeças dos políticos, insuperável) voltará a proporções mais razoáveis e menos perigosas.

IHU On-Line - Qual é o cenário que se vislumbra para os próximos anos nas economias emergentes, como a do Brasil e de outros países da América Latina?

Yann Moulier Boutang - Não sou especialista em economia da América Latina em geral, tampouco do Brasil em particular. Então, tome a minha resposta com cuidado. Os BRICS , com exceção da Rússia, emperrada ainda numa descolonização que levará trinta anos para se completar, deparam-se todos com a questão do futuro da China, que é determinante para eles, tanto no sudeste asiático e na África, como na América Latina. Esses países compartilham com a China alguns dos problemas estruturais que condicionam a consolidação de sua saída do subdesenvolvimento ou, melhor dizendo, do mau desenvolvimento, sem disporem das vantagens estratégicas que a China adquiriu em trinta anos. Brasil, Índia, China e África do Sul (acrescentemos a Nigéria, o México, a Indonésia) devem simultaneamente ampliar a base de suas classes médias, portanto, ampliar a renda destas, seja aumentando os salários, seja redistribuindo pela criação de um Estado de bem-estar social efetivo, e não no papel, para terem um nível de consumo interno que torne seu PIB menos dependente das exportações de produtos de baixo ou médio custo, de recursos energéticos poluentes e, ao mesmo tempo, para continuarem a obter excedentes de sua balança de pagamentos e de sua balança comercial, investirem em equipamentos de futuro em indústrias e serviços de alta tecnologia, se não quiserem permanecer enredados na armadilha de uma perda de competitividade de suas exportações devido à má qualidade ou baixa integração de conhecimento, à concorrência de países onde os salários são ainda mais baixos, à corrupção que encarece o preço e não estimula os assalariados nem o setor público de infraestrutura a fazerem um esforço de produtividade. Uma das soluções para esses dilemas seria a ampliação maciça da base e da solidez das classes médias, erradicando de maneira muito mais voluntarista os fatores de desigualdades, portanto, estendendo o equivalente de uma renda de cidadania ou de educação (no modelo do Bolsa Família, que teve, no Brasil, um efeito notável sobre o índice de Gini  em um período muito curto), dotando suas economias de um sólido Welfare state  (especialmente, nas áreas da educação superior, da saúde, dos equipamentos urbanos) e focando no desenvolvimento das classes criativas precárias (não a camada superior delas). Mas essa estratégia passaria por um aumento das despesas públicas que não aprofundaria necessariamente, de maneira insuportável, o endividamento se medidas drásticas de economia fossem tomadas em relação às despesas suntuosas com mínimos efeitos de mudança duradoura (como, por exemplo, os esportes e outros eventos dignos da Roma antiga com seu “pão e seus jogos”), acompanhadas também por despesas com aparato militar. Também seria preciso levar a sério a transição ecológica, apostar na construção de uma indústria verde, em vez de obstinar-se em projetos que desembocarão num prazo de dez anos em ruínas siderúrgicas ou mineiras com consequências catastróficas para o meio ambiente, em particular, no caso brasileiro, para a Amazônia e também para o Mato Grosso do Sul. 
O desenvolvimentismo agrícola ou industrial pesado, que, na era digital, parece de outra era, sempre custou muito caro para o Brasil, que não soube capitalizar fases de desenvolvimento rápido, o ciclo madeireiro do pau-brasil no século XVI, o ciclo abortado do trigo paulista no século XVII, o ciclo das pedras preciosas no século XVIII, o ciclo abortado do algodão no início século XIX, o ciclo da cana de açúcar do século XVIII ao XX, o ciclo do café, o ciclo abortado da borracha do fim do século XIX à década de 1930. Os ciclos da soja transgênica, da carne de búfalo, da floresta amazônica, do petróleo do pré-sal não são uma garantia do desenvolvimento. Não criam nenhum efeito mágico. As verdadeiras questões do bem viver da maioria da população, da inclusão dos pobres, amontoados nas cidades, em condições precárias de transporte, moradia, higiene e segurança são cruciais. Em outras palavras, a questão da redução das desigualdades, as quais ainda atingem os níveis característicos dos países em desenvolvimento, como programa econômico, junta-se à questão de um desenvolvimento menos dependente das exportações, ecologicamente mais sustentável e mais apto a tornar o Brasil, e os BRICS em geral, mais armado na concorrência internacional, na economia do conhecimento. 
A China e a Rússia, diferentemente do Brasil, enfrentam dificuldades muito semelhantes. Se esses dois países não têm as desvantagens de uma real democracia, que traz incerteza para os investidores e para a possibilidade de conduzir políticas de longo prazo, eles também não têm as vantagens dela, o que constitui uma séria deficiência na corrida ao capitalismo cognitivo que se inicia no mundo. A cultura digital (que nada tem a ver com uma experiência e competências em eletrônica e em informática) está estreitamente ligada à democracia. Desse ponto de vista, o Brasil pode inspirar-se mais proveitosamente em Bangalore, na Índia, do que em Shenzen, na China. 

IHU On-Line - Dentro da lógica neoliberal e da financeirização, como podemos compreender acordos comerciais do tipo feito entre os governos do Brasil e China há pouco tempo?

Yann Moulier Boutang - Faz muito tempo que a China desenvolve uma estratégia, em relação ao antigo bloco, hoje bem desconjuntado, do Terceiro Mundo, tanto na África quanto na América Latina, de abastecer-se nesses países em produtos semimanufaturados, principalmente agrícolas, em energia e em recursos minerais, em troca do fornecimento de contratos turn key  de bens de equipamento, a exemplo do que fazia a Alemanha oriental comunista. Em outras palavras, a América Latina corre o risco de trocar sua antiga dependência do gigante americano por uma nova dependência da China. O fenômeno é ainda mais gritante na África subsaariana. Se tais projetos de equipamento em infraestrutura acompanham uma política de desenvolvimento endógeno de aumentar a qualidade da população sul-americana, por que não? No entanto, há de se temer que, limitando-se a construir autoestradas, pontes, ferrovias transamazônicas, depois de ter construído estádios para diversas copas de futebol, a América Latina inteira tenha crescimento sem desenvolvimento social e com uma fatura ecológica cara, como se tivesse o recheio, mas não o peru para rechear. 
Se a China consegue incluir o Brasil em acordos comerciais importantes, isso acontece por duas razões: a) ela assume o lugar deixado vago tanto pelos Estados Unidos quanto pela Europa, que não garantiram aos argentinos nem aos brasileiros uma colocação segura na alimentação de seu gado para uma soja não transgênica; b) a China acumulou uma força financeira colossal (3,7 trilhões de dólares de reservas em divisas estrangeiras em 2015), o que lhe permite emprestar sob forma de crédito-arrendamento (créditos ligados a importações de produtos chineses industriais) aos outros BRICS. Ela conseguiu criar recentemente seu próprio FMI, sob a forma do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura, dotando-o de 500 bilhões de dólares e convidando os outros membros participantes a aportarem mais 500 bilhões. Esse programa deseja criar uma rota da seda do Sul, paralela àquela do Norte, que se concretizará com um trem-bala (ou TGV) de 11.000 km entre Pequim e Moscou. 
A China carrega a Índia, levada a substituí-la como “fábrica do mundo”. Ela venderá, nesse tipo de imperialismo soft, sua tecnologia de construção, sua mão de obra qualificada, seus bens de equipamento, entre os quais o trem-bala, o que lhe permitirá ultrapassar o delicado patamar em que agora se encontra: dotar-se de um welfare state, acolher 400 milhões de camponeses em 200 cidades de 2 milhões de habitantes, responder aos desafios ecológicos gigantescos que o país enfrenta (seca, erosão do solo cultivável, poluição química), requalificar sua indústria para o alto padrão, investir nas indústrias de ponta para poder continuar aumentando os salários, mantendo ao mesmo tempo um excedente de sua balança comercial, mesmo que este seja reduzido. O acordo sino-brasileiro insere-se perfeitamente nesse contexto de uma estratégia chinesa, de cujas deficiências não trataremos aqui. Em compensação, podemos nos perguntar se o Brasil tem uma estratégia tão coerente e, sobretudo, compatível com seu parceiro chinês. Por certo, trata-se de um acordo apresentado como win/win (os dois lados ganham). Porém, duas questões surgem: a) os ganhos para a China são incomparáveis com os ganhos brasileiros; b) se acrescentarmos os custos sociais, ambientais e de coerência industrial no desenvolvimento, não se tem certeza de que os ganhos comerciais sejam realmente ganhos. No entanto, mais uma vez, a China procura seu lugar de grande potência nas relações mundiais e o encontra, em grande parte, por causa do vazio europeu e americano.

Leia mais...
A bioprodução. “O capitalismo cognitivo produz conhecimentos por meio de conhecimento e vida por meio de vida”. Entrevista com Yann Moulier Boutang publicada na revista IHU On-Line nº 216, de 23-04-2007;
“O sistema financeiro de mercado é como o sismógrafo desta crise”. Entrevista com Yann Moulier Boutang publicada na revista IHU On-Line nº 301, de 20-07-2009.

"as elites políticas da Europa não podem continuar se escondendo de seus eleitores"


O governo dos banqueiros
Jürgen Habermas

"São os cidadãos, não os banqueiros, que têm de dizer a última palavra sobre as questões que afetam o destino europeu".

O comentário é de Jürgen Habermas, filósofo e escritor alemão em artigo publicado no jornal no El País, 28-06-2015. Habermas lembra que "a Alemanha deve o impulso inicial para sua decolagem econômica, do qual ainda se alimenta hoje, à generosidade dos países credores que no Tratado de Londres, de 1954, perdoaram mais ou menos a metade de suas dívidas".
Segundo ele, "o acordo não está fracassando por causa de alguns bilhões a mais ou a menos, nem por causa de um ou outro imposto, mas unicamente porque os gregos exigem que a economia e a população explorada pelas elites corruptas tenham a possibilidade de voltar a funcionar através da quitação da dívida ou uma medida equivalente, como, por exemplo, uma moratória dos pagamentos vinculada ao crescimento".
Eis o artigo.
A última sentença do Tribunal de Justiça Europeu [que permite ao Banco Central Europeu (BCE) comprar dívida soberana para combater a crise do euro] lança uma luz prejudicial sobre a falida construção de uma união monetária sem união política. No verão de 2012, todos os cidadãos tiveram que agradecer a Mario Draghi, presidente do BCE, que com uma só frase [“farei o necessário para sustentar o euro”] salvou a moeda das desastrosas consequências de um colapso que parecia iminente. Ele tirou do sufoco o Eurogrupo ao anunciar que, caso fosse preciso, compraria dívida pública em quantidade ilimitada. Draghi teve que dar um passo à frente porque os chefes de Governo eram incapazes de agir pelo interesse comum da Europa; todos estavam hipnotizados, prisioneiros de seus respectivos interesses nacionais.
Naquele momento, os mercados financeiros reagiram – diminuindo a tensão – diante de uma única frase, a frase com a qual o presidente do BCE simulou uma soberania fiscal que absolutamente não possuía. Porque agora, assim como antes, são os bancos centrais dos países-membros os que aprovam os créditos, em última instância. O Tribunal Europeu não pode referendar essa competição contrária ao texto literal dos tratados europeus; mas as consequências de sua sentença deixam implícito que o BCE, com escassas limitações, pode cumprir o papel de credor de última instância.
O tribunal abençoou um ato salvador que não obedece em nada à Constituição, e o Tribunal Constitucional alemão apoiará essa sentença acrescentando as sutilezas às quais estamos acostumados. Alguém poderia estar tentado a afirmar que os guardiões do direito dos tratados europeus se veem obrigados a aplicá-lo, ainda que indiretamente, para mitigar, caso a caso, as consequências indesejadas das falhas de construção da união monetária. Defeitos que só podem ser corrigidos mediante uma reforma das instituições, conforme juristas, cientistas políticos e economistas vêm demonstrando há anos. A união monetária continuará sendo instável enquanto não for complementada pela união bancária, fiscal e econômica. Mas isso significa – se não quisermos declarar abertamente que a democracia é um mero objeto decorativo – que a união monetária deve se desenvolver para se transformar em uma união política. Aqueles acontecimentos dramáticos de 2012 explicam por que Draghi nada contra a corrente de uma política míope – até mesmo insensata, eu diria.
Estamos outra vez em crise com Atenas porque, já em maio de 2010, a chanceler alemã se importava mais com os interesses dos investidores do que com quitar a dívida para sanar a economia grega. Neste momento, evidencia-se outro déficit institucional. O resultado das eleições gregas representa o voto de uma nação que se defende com uma maioria clara contra a tão humilhante e deprimente miséria social da política de austeridade imposta ao país. O próprio sentido do voto não se presta a especulações: a população rejeita a continuação de uma política cujo fracasso as pessoas já sentiram de forma drástica em suas próprias peles. De posse dessa legitimação democrática, o Governo grego tentou induzir uma mudança de políticas na zona do euro. E tropeçou em Bruxelas com os representantes de outros 18 Governos, que justificam sua recusa remetendo friamente a seu próprio mandato democrático.
Recordemos os primeiros encontros, quando os novatos – que se apresentavam de maneira prepotente motivados por sua vitória arrebatadora – ofereciam um grotesco espetáculo de troca de golpes com os residentes, que reagiam em parte de forma paternalista, em parte de forma desdenhosa e rotineira. Ambas as partes insistiam como papagaios que tinham sido autorizadas cada uma por seu respectivo “povo”. A comicidade involuntária desse estreito pensamento nacional-estatal expôs com grande eloquência, diante da opinião pública europeia, aquilo que realmente é necessário: formar uma vontade política comum entre os cidadãos em relação com as transcendentais fraquezas políticas no núcleo europeu.
As negociações para se chegar a um acordo em Bruxelas travam porque ambas as partes culpam a esterilidade de suas conversas não às falhas de construção de procedimentos e instituições, mas sim à má conduta de seus membros. O acordo não está fracassando por causa de alguns bilhões a mais ou a menos, nem por causa de um ou outro imposto, mas unicamente porque os gregos exigem que a economia e a população explorada pelas elites corruptas tenham a possibilidade de voltar a funcionar através da quitação da dívida ou uma medida equivalente, como, por exemplo, uma moratória dos pagamentos vinculada ao crescimento.
Os credores, por outro lado, não cedem no empenho para que se reconheça uma montanha de dívidas que a economia grega jamais poderá saldar. É indiscutível que a quitação da dívida será irremediável, a curto ou a longo prazo. No entanto, os credores insistem no reconhecimento formal de uma carga que, de fato, é impossível de ser paga. Até pouco tempo atrás, eles mantinham inclusive a exigência, literalmente fantástica, de um superávit primário superior a 4%. É verdade que essa demanda foi baixada para 1%, que tampouco é realista. Mas, até o momento, a tentativa de se chegar a um acordo, do qual depende o destino da União Europeia, fracassou por causa da exigência dos credores de sustentar uma ficção.
Naturalmente, os países doadores têm razões políticas para sustentá-la, já que no curto prazo isso permite adiar uma decisão desagradável. Temem, por exemplo, um efeito dominó em outros países devedores. E Angela Merkeltambém não está segura de sua própria maioria no Bundestag. Mas não há nenhuma dúvida quanto à necessidade de rever uma política equivocada à luz de suas consequências contraproducentes. Por outro lado, também não se pode culpar apenas uma das partes pelo desastre. Não posso julgar se há uma estratégia meditada por trás das manobras táticas do Governo grego, nem o que deve ser atribuído a imposições políticas, à inexperiência ou à incompetência dos negociadores. Essas circunstâncias difíceis não permitem explicar por que o Governo grego faz com que seja difícil até mesmo para seus simpatizantes discernir um rumo em seu comportamento errático.
Não se vê nenhuma tentativa razoável de construir coalizões; não se sabe se os nacionalistas de esquerda têm uma ideia um tanto etnocêntrica da solidariedade e impulsionam a permanência na zona do euro apenas por razões de astúcia, ou se sua perspectiva vai além do Estado-nação. A exigência de quitação da dívida não basta para despertar na parte contrária a confiança de que o novo Governo vá ser diferente, de que atuará com mais energia e responsabilidade do que os Executivos clientelistas aos quais substituiu. Tsipras e o Syriza poderiam ter desenvolvido o programa reformista de um Governo de esquerda e apresentá-lo a seus parceiros de negociação em Bruxelas e Berlim.
A discutível atuação do Governo grego não ameniza nem um pouco o escândalo de que os políticos de Bruxelas eBerlim se negam a tratar seus colegas de Atenas como políticos. Embora tenham a aparência de políticos, eles só falam em sua condição econômica de credores. Essa transformação em zumbis visa a apresentar a prolongada situação de insolvência de um Estado como um caso apolítico próprio do direito civil, algo que poderia levar à apresentação de ações ante um tribunal. Dessa forma, é muito mais fácil negar uma corresponsabilidade política.

Merkel fez o Fundo Monetário Internacional (FMI) embarcar desde o início em suas duvidosas manobras de resgate. O FMI não tem competência sobre as disfunções do sistema financeiro internacional; como terapeuta, vela por sua estabilidade e, portanto, atua no interesse conjunto dos investidores, principalmente dos investidores institucionais. Como integrantes da troika, as instituições europeias também se fundem com esse ator, de tal forma que os políticos, na medida em que atuem nessa função, podem se restringir ao papel de agentes que se regem estritamente por normas e dos quais não se podem exigir responsabilidades.

Essa dissolução da política na conformidade com os mercados pode explicar a falta de vergonha com a qual os representantes do Governo federal alemão, todos eles pessoas sem mácula moral, negam sua corresponsabilidade política nas devastadoras consequências sociais que aceitaram, como líderes de opinião no Conselho Europeu, por causa da imposição de um programa neoliberal de austeridade. O escândalo dentro do escândalo é a cegueira com que o Governo alemão percebe seu papel de liderança. A Alemanha deve o impulso inicial para sua decolagem econômica, do qual ainda se alimenta hoje, à generosidade dos países credores que no Tratado de Londres, de 1954, perdoaram mais ou menos a metade de suas dívidas.
Mas não se trata de um escrúpulo moral, e sim do núcleo político: as elites políticas da Europa não podem continuar se escondendo de seus eleitores, ocultando até mesmo as alternativas ante as quais nos coloca uma união monetária politicamente incompleta. São os cidadãos, não os banqueiros, que têm de dizer a última palavra sobre as questões que afetam o destino europeu.

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  • A Prostituta e a Baleia
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  • A Rainha
  • A Razão de Meu Afeto
  • A Ressaca
  • A Revelação
  • A Sombra e a Escuridão
  • A Suprema Felicidade
  • A Tempestade
  • A Trilha
  • A Troca
  • A Última Ceia
  • A Vantagem de Ser Invisível
  • A Vida de Gale
  • A Vida dos Outros
  • A Vida em uma Noite
  • A Vida Que Segue
  • Adaptation
  • Africa dos Meus Sonhos
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  • Alice Não Mora Mais Aqui
  • Amarcord
  • Amargo Pesadelo
  • Amigas com Dinheiro
  • Amor e outras drogas
  • Amores Possíveis
  • Ano Bissexto
  • Antes do Anoitecer
  • Antes que o Diabo Saiba que Voce está Morto
  • Apenas uma vez
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  • As Idades de Lulu
  • As Invasões Bárbaras
  • Às Segundas ao Sol
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  • Como Enlouquecer Seu Chefe
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