sexta-feira, setembro 14, 2012

Rios voadores da Amazônia


‘Rios voadores’ da Amazônia transportam água para Brasil e América do Sul
Uma bela nuvem cumulo-nimbus descarrega chuva no Alto Araguaia. Foto: Margi Moss/Rios Voadores
Enquanto a seca causa estragos no mundo e cresce a inquietação com colheitas e reservas hídricas, o piloto e aventureiro anglo-suíço naturalizado brasileiro Gérard Moss mostra os “rios voadores” da Amazônia, cursos d’água atmosféricos que têm origem na floresta e alimentam as chuvas no Brasil e na América do Sul. Por Yana Marull, da AFP, no Yahoo Notícias.
“As mudanças climáticas estão cobrando seu preço, os Estados Unidos vivem a pior seca em meio século, a Rússia sofre com a seca, na Índia há anos as monções não são regulares, e no Brasil parece que somos menos afetados porque temos a maior floresta tropical do mundo, que ajuda a regular o clima”, explica Moss, enquanto pilota seu monomotor com destino a Goiânia (centro).
Durante o voo, Moss observa um indicador que mede a umidade do ar sobre o cerrado. Ele usa o medidor para localizar os “rios voadores”, nome dado às massas de vapor d’água que a Amazônia lança na atmosfera.
“Pouca gente sabe que na Amazônia uma única árvore pode colocar na atmosfera mais de 1.000 litros d’água em um dia, e que a selva amazônica consegue colocar mais água na atmosfera em um dia do que a transportada pelo rio mais caudaloso do mundo, o Amazonas”, explica.
Em expedições em avião e balão, Moss leva cinco anos demonstrando que a floresta amazônica não só limpa o ar do planeta, como garante umidade e chuvas para o Brasil e parte da América do Sul, uma região enorme produtora e exportadora de alimentos.
Os rios voadores, conta, partem da Amazônia até os Andes, que agem como barreira natural, e redirecionam as gigantescas massas de vapor principalmente rumo ao centro-oeste, o sudeste e o sul do Brasil, mas também para o norte de Argentina, Uruguai, Paraguai, Colômbia, e ainda para Venezuela, Guiana, Guiana Francesa e Suriname.
“O Peru recebe um pouco desta água, mas se não houvesse a cordilheira, certamente receberia tudo”, explica Moss.
Nascido na Inglaterra e criado na Suíça, entre Montreux e Vevey, o apaixonado piloto de 57 anos chegou ao Brasil nos anos 1980 para trabalhar na exportação de soja, e uma década depois mudou radicalmente de trabalho para se dedicar ao meio ambiente, ao lado da esposa Margi Moss, fotógrafa nascida no Quênia.
Ele ganhou fama em 2001, quando fez a primeira volta ao mundo em planador motorizado, uma aventura que durou 100 dias, durante os quais fazia transmissões ao vivo, todos os domingos, para a televisão brasileira.
Em 2003, o casal embarcou em um pequeno hidroavião com o qual coletou durante um ano mais de mil amostras dos rios e lagos mais remotos do país, que possui 12% das reservas de água doce do planeta.
“Constatamos que 85% das águas são limpas, o que demonstra que o Brasil tem uma grande riqueza, mas também que nas regiões habitadas a qualidade é péssima, não se investe para preservar esta riqueza”, lamenta Moss.
– De Belém a São Paulo sobre um rio voador –
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A aventura aérea e ambiental prosseguiu em 2006, com o projeto Rios Voadores , no qual embarcaram importantes cientistas que já tinham advertido para o fenômeno e agora utilizam os dados para confirmá-lo.
Eles criaram equipamentos adaptados ao monomotor e a um balão aeroestático, com o qual Moss percorreu o país para condensar e analisar gotas do vapor atmosférico originadas na Amazônia.
O piloto chegou a viajar oito dias na trajetória de um rio voador, da cidde amazônica de Belém ao Pantanal (centro-oeste) e a São Paulo (sudeste). “Era uma massa enorme de vapor d’água, equivalente ao que São Paulo consome em 115 dias, foi muito bom para divulgar os nossos resultados”, explica.
Com estes estudos, o respeitado Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE) traça diariamente trajetórias das correntes de umidade amazônica por todo o Brasil, enquanto o projeto se concentra agora em divulgar os resultados para alcançar seu objetivo: ajudar a salvar a Amazônia.
“Nosso objetivo é que uma criança em São Paulo ou um produtor do sul saibam que sua agricultura e sua energia dependem muito da água que chega da Amazônia”, diz Moss.
Os cientistas calculam que quase 20% da Amazônia já tenha sido destruída e alguns indicam que se a destruição chegar a 35% ou 40%, atingirá um ponto sem volta frente ao avanço do cerrado.
O Brasil alcançou um pico de desmatamento em 2004, com 27.000 km2. Conseguiu reverter a tendência a mínimos históricos, mas ainda perde 6.400 km2 de selva amazônica por ano.
Fonte: EcoDebate, 14/09/2012

a economia não é uma ciência neutra


Uma das grandes tarefas para a mudança é desconstruir a imagem que o chamado “mainstream” ajudou a solidificar no ideário do senso comum: a economia não é uma ciência neutra, dotada de um arsenal de instrumentos e tecnicalidades que sempre pode conduzir a um único resultado certo e seguro.
Paulo Kliass
Infelizmente, algumas das previsões mais pessimistas a respeito dos desdobramentos da crise econômico-financeira, que teve início há 4 anos, parecem estar se confirmando no horizonte. De um lado, à época, ouvíamos os analistas que subestimavam os riscos de encadeamento generalizado de um problema menor, que diziam eles estar bem localizado nos desequilíbrios e nas imperfeições do mercado bancário norte-americano. De outro, havia um conjunto de especialistas que caracterizavam a crise estado-unidense como sendo apenas a ponta de um iceberg, bem mais volumoso e profundo, que poderia provocar um efeito de contágio negativo de dimensões globais.
Assim, aquilo que fora apresentado por alguns como sendo apenas o efeito de um desarranjo no sistema das hipotecas imobiliárias do sistema financeiro dos Estados Unidos, na verdade operou como um catalisador de uma crise potencial bem mais ampla, de proporções internacionais. A chamada “bolha” do mercado de imóveis havia espalhado seus efeitos para os outros setores. Para além dos bancos tradicionais, os demais agentes do sistema financeiro foram rapidamente afetados, a exemplo dos fundos de investimento, das seguradoras, dos fundos de pensão. A maior parte de tais instituições revelaram-se totalmente a descoberto em suas operações, uma vez que as crenças ultra-liberais levadas ao paroxismo permitiram ao sistema bancário alavancar suas operações e eternizar o repasse dos riscos evidentes de seus empréstimos e de suas concessões de crédito. A desregulamentação, tão apregoada como a panacéia para que fosse alcançada a suposta eficiência do mercado, passou a apresentar a sua pesada fatura.
Dado o elevado nível de internacionalização dos mercados financeiros e a grande interdependência de suas diversas praças em todos os continentes, não tardou muito para que o espaço da União Européia também passasse a sofrer os efeitos perversos do contágio epidêmico. A crise atravessou as águas atlânticas e suas conseqüências atingiram um conjunto de países, que - diga-se de passagem - já sofriam bastante com as políticas de ajuste severo patrocinadas pela troika composta pelo Banco Central Europeu (BCE), pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pela Comissão Européia (CE).
Apesar da crise, o pensamento neoliberal persiste e resiste
As dificuldades enfrentadas pelo receituário neoliberal em dar conta da conjuntura, após a deflagração da “inesperada” hecatombe, contribuiu para a criação de um certo otimismo, no que se refere à eventual possibilidade de vivermos uma oxigenação e uma renovação da hegemonia desse pensamento ortodoxo, que vem orientando o universo dos tomadores de decisão na área econômica pública e privada desde o final dos anos 1970 e início dos 1980. Tal perspectiva, um tanto imbuída de certa dose de ingenuidade e de voluntarismo, imaginava que o fato de se ter lançado mão de medidas caracterizadas por um profundo pragmatismo para sair da crise, teria sido o reflexo de uma reviravolta nas bases ideológicas do conservadorismo econômico. Mas, na verdade, a questão é bem mais complexa do que aparenta.
É verdade que o pensamento heterodoxo passou a ganhar mais espaço nos meios de comunicação e mesmo no discurso de alguns importantes dirigentes políticos. Vários economistas de renome internacional passaram a reconhecer a incapacidade da usada cartilha, pela qual haviam rezado até anteontem, em resolver os problemas da crise. Isso significava admitir que o excesso de desregulamentação e a liberalização desenfreada da economia haviam operado como elemento prejudicial para a maioria da população e para a maior parte dos países. Isso significava se render às evidências de que a ação do Estado seria essencial para atuar no sentido de atenuar os efeitos perversos da crise. Alguns dos conceitos e das proposições associadas ao economista John Maynard Keynes voltaram ao centro da cena, perdendo um pouco de força a conduta preconceituosa contra eles adotada até então pelos principais formadores de opinião. Afinal de contas, se não fosse a presença ativa do Estado, intervindo com seus fundos de salvamento generalizado, o sistema financeiro transcontinental teria sofrido perdas muito mais significativas.
Porém, esse recuo tático do pensamento conservador não foi acompanhado por nada parecido com uma eventual substituição da cultura hegemônica neoliberal. Houve sim um choque inicial, é importante reconhecer. Talvez até mesmo para os indivíduos mais sinceros, para os menos ideologizados e para os menos comprometidos com o sistema financeiro, o universo do fenômeno econômico pós crise venha realmente a ser explicado por outros conceitos e por diferentes pressupostos teóricos. 
Mas o que não se pode perder de vista é o processo de consolidação do enfoque neoliberal. Afinal, foram mais de 3 décadas de esmagamento ideológico conservador, construído e fortalecido pela implementação de políticas econômicas ensandecidas pelo mundo afora. As principais instituições multilaterais encarregaram-se da tarefa e não por acaso alguns de seus ideários eram conhecidos pela alcunha de “Consenso de Washington”, em razão das sedes de Banco Mundial (BM), do Federal Reserve (FED - Banco Central norte-americano) e do FMI. As principais faculdades de economia em todos os continentes tiveram seus currículos moldados segundo esses princípios, seja nos cursos de graduação, seja nos centros de pesquisa de mestrado e doutorado. A grande maioria dos órgãos de comunicação também foi contaminada por tal visão, reproduzindo indiscriminadamente a concepção unilateral da supremacia dos mercados, em detrimento da suposta ineficiência da ação do Estado. 
Mudança para novo paradigma é processo lento
Ora, parece razoável admitir que tal mudança hipotética na hegemonia ideológica é um processo lento e não se produz assim tão rapidamente. Daí porque o mais correto é compreendermos esse movimento como um recuo tático e não como alteração no padrão de compreensão do fenômeno econômico. Há toda uma geração que foi formada nas bases do conservadorismo liberal e que precisa de muito tempo e de muita pressão gritante da realidade objetiva para que se disponha a enxergar o mundo através de outras lentes. O tempo requerido para a consolidação efetiva de uma visão alternativa é longo, também numa perspectiva geracional.
Apesar da lenta agonia da crise, a fama dos economistas continua a ser muito negativa junto à maioria da população. Os poucos exemplos de conversão sincera, por parte de economistas mais conhecidos, a uma visão menos comprometida com os interesses do capital financeiro são o melhor retrato de tal dificuldade. A troika continua a propor suas receitas ortodoxas para os países da União Européia, recusando-se a reconhecer a dureza dos ajustes frios e que não levam em conta os aspectos sociais da crise. O saldo do primeiro mandato do Presidente Obama também funcionou como uma espécie de ducha de água fria naqueles que depositavam esperança numa possibilidade de mudança efetiva, depois do lema vitorioso do “Yes, we can!”. Até mesmo a vitória mais recente de François Hollande nas eleições francesas ainda tarda a apresentar resultados palpáveis em termos de saída da recessão em seu próprio país e de implementação de políticas econômicas alternativas à sua rival alemã, Ângela Merkel, nas instâncias da União Européia.
Como uma parte considerável dos meios de comunicação cria na população a expectativa de que os economistas sabem tudo e têm respostas para tudo, ocorre uma curiosa conjunção de interesses a esse respeito. O fenômeno econômico deixa de ser pensado como parte integrante do universo das ciências sociais. Aquilo que as diversas correntes das escolas clássicas (Adam Smith, David Ricardo, Karl Marx, entre outros) consideravam como “economia política” (“political economy”) foi sub-repticiamente convertido a simplesmente “economia” (“economics”), com a perda evidente de muito mais substância do que o simples adjetivo da política.
Economia não é técnica neutra; é integrante das ciências sociais
Uma das grandes tarefas para a mudança é desconstruir a imagem que o chamado “mainstream” ajudou a solidificar no ideário do senso comum: a economia não é uma ciência neutra, dotada de um arsenal de instrumentos e tecnicalidades que sempre pode conduzir a um único resultado certo e seguro. Exatamente em razão de suas relações com elementos da história, da sociologia, da ciência política, da antropologia, das relações internacionais, entre tantos outros, a economia tem por objeto de estudo um fenômeno ultra complexo e que responde a múltiplas causas. O que dizer então das perguntas encaminhadas aos “oráculos” das consultorias financeiras – como se fossem seres super dotados – a respeito de itens como crescimento do PIB para o ano que vem, taxa de inflação para o próximo biênio, evolução futura do mercado de “commodities”? 
Os modelos utilizados pelos “especialistas” baseiam-se em instrumental da chamada econometria para tentar chegar a tais respostas. Trata-se de uma sofisticação de elementos da estatística para explicar o comportamento de variáveis da economia. O problema é que sempre são utilizados os dados do passado para tentar fazer as projeções para o futuro. E como a dinâmica econômica responde a fatores de natureza histórica, política e social, nem sempre o futuro reproduz as linhas de comportamento do passado. Na verdade, tais modelos deveriam ser utilizados com muito mais cautela e menos certeza. 
Às vésperas da crise bancária de 2008, a absoluta maioria das empresas de consultoria econômica ignorava a possibilidade de emergência de uma crise sistêmica. As chamadas agências de risco ofereciam ótima notação para os bancos que quebraram logo a seguir, sempre na linha do AAA. No final de 2010, as previsões dos “especialistas” para o crescimento do PIB brasileiro de 2011 situavam-se na faixa de 4% - o resultado final foi de apenas 2,7%. Situação análoga ocorre para o PIB do presente ano: os “modelos” diziam que após a baixa de 2011, a economia só poderia se recuperar, com algo em torno de 4,5%. Porém os dados do setor real nos informam que dificilmente cresceremos mais de 2%. Mas então, e os modelos? Ora, os modelos...
Assim, a má fama que geralmente se atribui aos economistas é derivada desse tipo de comportamento. Mas não se trata de um problema associado à profissão em si. A questão reside na maneira como uma parcela dos responsáveis, formados de acordo com os pressupostos conservadores e defensores dos interesses do “establishment”, se apresentam para o conjunto da sociedade. Agem como se fossem portadores de um saber inquestionável e se consideram capazes de realizar todo o tipo de previsão econômica infalível para o futuro. Seus modelos são implacáveis na defesa de soluções duras, com conseqüências sociais e políticas catastróficas – e que não chegam nem mesmo a alcançar os objetivos pretendidos no início. Salários, desemprego, gastos sociais, desindustrialização? Ora, trata-se de variáveis pouco significativas, quando o importante é assegurar equilíbrio de mercado, atratividade do capital externo, concessão de fundos públicos para as empresas privadas, ajuda orçamentária para instituições financeiras com problemas de solvência.
A absoluta maioria dos órgãos de imprensa abre espaço apenas para os “especialistas” e “analistas” que compartilham essa mesma visão. A cada novo fenômeno a explicar ou a cada nova medida anunciada pelo governo, são ouvidos os profissionais de sempre e o público é contemplado com uma suposta “opinião inquestionável” dos economistas a respeito do tema, como se fosse uma espécie de consenso construído de forma artificial e casuística. Apesar das novidades trazidas pela crise, a sociedade permanece sendo informada a respeito apenas das bases da mesmice para o seu enfrentamento.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta Maior | Colunistas | Debate Aberto, 13/09/2012

sábado, setembro 01, 2012

Aprender e ensinar – tecnologias sociais

Ciência, tecnologia e inovação são áreas em que, muitas das vezes, o gasto público deve ser encarado como investimento a fundo perdido e onde não cabe a aplicação da contabilidade restritiva de “retorno a curto prazo”. Os ganhos para o conjunto da sociedade com os resultados desse tipo de investimento são geracionais, de longo prazo.
Paulo Kliass
A proximidade das eleições municipais traz para o centro do debate alguns aspectos que são recorrentes para a grande maioria da população, em especial para aqueles que moram nas capitais e nas grandes cidades de nosso País. De acordo com o, levantamento dos órgãos especializados, alguns dos assuntos considerados prioritários pelos eleitores são os seguintes: i) saúde; ii) educação; iii) violência; iv) transportes.
Outros temas, igualmente presentes na lista dos mais importantes, não são abordados com tanta ênfase no debate eleitoral, uma vez que sua órbita de decisão escapa ao domínio de competência jurídica e institucional dos prefeitos e vereadores. Seria o caso da taxa de juros, da previdência social, de medidas de comércio exterior, entre outros. Como nossa Constituição determina que são elementos de tratamento exclusivo pela União, em anos de eleições municipais não se vislumbra possibilidade de mudança em tais domínios.
Ciência, tecnologia e inovação: pouco espaço na agenda
Porém, há um conjunto de outros assuntos de extrema relevância que não entram nem mesmo na pauta da política em tempos de voto para a Presidência da República e para os integrantes do Congresso Nacional. Um exemplo típico é o trinômio “ciência, tecnologia e inovação” (C, T & I), que tende a ser relegado a segundo ou terceiro planos, apesar de ser elemento essencial para qualquer debate a respeito de um projeto de nação. Ao que tudo indica, há uma grande resistência política em incorporar esses temas ao conjunto de políticas públicas. A lógica do resultado a curto prazo acaba prevalecendo, meio na base do ditado popular de que “vale mais a pena inaugurar ponte e estrada do que obra de saneamento”, pois os canos estão enterrados e não dão visibilidade para o governo de plantão. Uma tristeza de lógica e de racionalidade políticas, em que o bom desempenho eleitoral do candidato dependeria apenas dessa avaliação de uma boa “gestão de obras”. Mas que termina por comprometer a capacidade do País em solucionar gargalos importantes nas suas estruturas sociais e econômicas.
A lógica subjacente ao tratamento que merece ser conferido ao C, T & I é bastante específica. Por se tratar de uma área de despesa pública diferenciada, ela não pode ser submetida aos mesmos critérios de avaliação utilizados pelo setor privado e nem mesmo pelos demais setores do orçamento. Ciência, tecnologia e inovação são áreas em que, muitas das vezes, o gasto público deve ser encarado como investimento a fundo perdido e onde não cabe a aplicação da contabilidade restritiva de “retorno a curto prazo”. Os ganhos para o conjunto da sociedade com os resultados desse tipo de investimento são geracionais, de longo prazo.
Quando se menciona os temas de C, T & I, normalmente imaginamos os assuntos de elevada complexidade teórica e de alta sofisticação operacional. Somos remetidos tanto aos ramos de pesquisa científica de vanguarda, quanto às descobertas em andamento nas áreas de fronteira do conhecimento e da inovação. Obviamente, são setores de importância estratégica e o Brasil não pode ficar em posição retardatária no domínio dos mesmos. Os volumes de investimento requeridos são expressivos e os eventuais resultados positivos tendem a demorar bastante para se apresentarem. Porém, há um conjunto amplo de setores e ações a serem desenvolvidas nesse domínio que implicam outro tipo de relação entre os agentes envolvidos com a produção de conhecimento, de produtos e de serviços na área. Trata-se da chamada “tecnologia social”.
Tecnologia social: uma necessidade nacional
O assunto é sensível e polêmico, comportando diferentes tipos de abordagem e de definição. De qualquer forma, até mesmo a estrutura do Estado reconhece a particularidade do enfoque: o próprio ministério setorial mantém em sua estrutura uma secretaria que se ocupa de “Ciência e Tecnologia para Inclusão Social”. Assim, pode-se perceber uma certa elasticidade na abrangência do conceito: desde a simples preocupação com o caráter social da utilização da tecnologia gerada até uma abordagem em que o processo de produção da tecnologia tenha em si mesmo incorporado a preocupação com a dimensão social.

Em termos concretos, temos uma série de exemplos em que o conceito de tecnologia social proporciona ganhos expressivos para a sociedade brasileira. E isso vai desde a mera recuperação de saberes tradicionais até a apropriação de conhecimento popular em grau de maior elaboração científica. Assim, priorizar a tecnologia social como política pública pode significar a opção por um processo científico que seja gerador de maior nível de emprego do que outro eventualmente mais sofisticado e de vanguarda na pesquisa. Ou ainda, adotar um determinado procedimento de tecnologia social como política de Estado pode representar a opção por um modelo de respeito a determinados padrões de incentivo à política regional e a não aceitação passiva de modelos universais destruidores de raízes sociais e culturais significativas.
Em termos gerais, a tecnologia social tende a propiciar um melhor nível de articulação com a base da sociedade organizada, por meio de estímulo ao associativismo e ao cooperativismo. Os recursos tecnológicos estão ali presentes e a própria organização da comunidade gera resultados de maior eficiência no nível local e de sua repercussão para ser apropriado pelo conjunto da sociedade.
Exemplos de benefícios da tecnologia social
A questão da escassez da água na região do semi-árido nordestino encontra na construção de cisternas uma das formas paliativas de solução a médio prazo. Assim, foi adotado um modelo genuinamente brasileiro e regional: o projeto espalhado por praticamente toda a região e que encontrou na organização Articulação no Semi Árido (ASA) a responsabilidade por sua ampla disseminação. A proposta embutida na meta de “um milhão de cisternas” é bem representativa de um caso conhecido e de sucesso do conceito de tecnologia social. Trata-se de um projeto que pressupõe o envolvimento da comunidade local na construção do reservatório, com efeitos multiplicadores em termos de renda, emprego e elevação da qualidade de vida e da produtividade agropecuária. Sua adoção implica uma opção política e alternativa: não generalizar a compra de grandes reservatórios pré-fabricados de material sintético ou de plástico.
O modelo da produção na escala da agricultura familiar e da pequena propriedade rural também permite a utilização do conceito de tecnologia social. É o caso de processos importantes de produção de alimentos que estão incorporados no saber tradicional e que correm sérios riscos de desaparecer, caso sejam engolidos pela onda devastadora das tecnologias que dependem de transgênicos, agrotóxicos e fertilizantes. A opção pela tecnologia social proporciona um conjunto amplo de ganhos: i) a fixação da população no campo, com condições de remuneração adequada; ii) o consumo de bens derivados da produção agrícola de qualidade; iii) a redução do impacto negativo em termos ambientais e ecológicos; iv) a parceria com os centros de pesquisa das universidades, com a possibilidade de ampliar e aprofundar as inovações a partir dos saberes tradicionais; entre tantos outros fatores positivos.
Em termos do elevadíssimo déficit habitacional e de programas como o “Minha Casa, Minha Vida”, poder-se-ia aproveitar uma série de experiências exitosas de autoconstrução e de práticas de construção civil que se desenvolvem nas diversas regiões do País, evitando a pasteurização e a generalização dos modelos padronizados e inflexíveis, ditados pelas grandes empreiteiras. O uso de tecnologias alternativas, com conteúdo social, poderia contribuir na busca de soluções efetivas e adequadas a cada região, cidade ou comunidade. O uso de técnicas construtivas e de materiais específicos., com participação dos próprios interessados, certamente elevariam a qualidade das moradias a serem construídas, evitando o triste fenômeno das “casas de parede de farinha”, que se desfazem literalmente pouco tempo após sua entrega aos beneficiários.
O desenvolvimento científico e tecnológico em regiões estratégicas para o desenvolvimento nacional, como a Amazônia, deve também contar com a colaboração do conhecimento secular dos povos autóctones. A combinação das pesquisas de ponta dos diversos campos da ciência e as práticas dos moradores da região permite a alavancagem de novas oportunidades e a incorporação de processos já conhecidos no plano local. O potencial de avanços na área de biotecnologia e fitoterapia, por exemplo, pode ser melhor aproveitado a partir de uma articulação com os atores sociais que são detentores de práticas e conhecimento nesse domínio. Essa é uma das evidências de viabilização de um modelo efetivo de sustentabilidade. Existe uma série de iniciativas nesse campo, inclusive nas próprias universidades brasileiras. A divulgação dos projetos e o chamamento à participação da comunidade permitem lançar as bases para a generalização desse tipo de conhecimento, como bem atesta o concurso “Aprender e ensinar – tecnologias sociais”.
Dessa forma, a internalização das diretrizes da Rio + 20 e a elaboração de um projeto de desenvolvimento sustentável deveriam incorporar a preocupação com um maior espaço a ser conferido à tecnologia social. Se a introdução de práticas da chamada “economia verde” estiver mesmo associada à erradicação da miséria, então a sustentabilidade não pode ser imaginada sem o tripé das dimensões ambiental, social e econômica. Mais do que nunca, o incentivo do Estado ao desenvolvimento das tecnologias sociais viria a cumprir com esse mesmo objetivo articulado de preservação do planeta e de melhoria da qualidade de vida de seus habitantes.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta Maior | Colunistas | Debate Aberto, 30/08/2012

sábado, agosto 25, 2012

qual a diferença entre esses dois processos?

Agora, a bola da vez são as rodovias e as ferrovias. Em seguida virão portos, hidrovias e os aeroportos, que já estão na fila de espera. Parece evidente que conceder a exploração de um aeroporto ao capital privado por 25 anos é uma forma de privatização.
Paulo Kliass
Parece que tudo começou com a postura defensiva adotada pela Presidenta Dilma, quando da apresentação de seu novo pacote de benesses ao capital privado - o Plano Nacional de Logística (PNL). No dia 15 de agosto, durante a cerimônia no Palácio do Planalto, o discurso já iniciava com o rebatimento antecipado das críticas que eram esperadas. De acordo com seu entendimento, não se tratava ali de privatização alguma, mas tão somente de concessão. Mas, afinal, qual a diferença entre esses dois processos? Tentemos, pois, entender um pouco melhor esse “imbroglio”.
A exemplo do ocorrido em outras circunstâncias posteriores a 2003, o anúncio do plano evidenciava uma espécie de ruptura com as propostas que sempre foram defendidas pela maioria dos integrantes do PT, antes de chegarem ao poder no plano federal. O próprio tema da privatização havia sido um ponto sensível do debate eleitoral no final de 2010, com a ofensiva cristalina da candidata contra o adversário tucano. Assim, imaginava-se que não haveria risco de o governo recuperar tal assunto e colocá-lo de novo no centro da agenda política.
Privatização inclui outras modalidades além da venda de estatais
O argumento apresentado por Dilma e por todos aqueles que tentam, desesperadamente, escapar da acusação de “privatista” é bastante frágil. Até tento compreender a necessidade política dos governistas defenderem seus representantes a todo custo, inclusive em momentos difíceis como este. Mas a tarefa é inglória, além de complicada. Na verdade, tentam se apegar a uma definição restritiva e meramente juridicista do conceito de privatização. Aí, até que fica fácil, numa abordagem de simples aparência, sem que se chegue à essência do problema. De acordo com tal interpretação, só caberia qualificar de privatização ao processo de venda de uma empresa estatal ao setor privado. E ponto final! Tudo o mais que escape a essa definição esquemática e casuística deixa de pertencer ao universo da privatização. Simples assim!
A estratégia pretende cotejar o PNL com os processos privatizantes ocorridos durante os anos em que o PSDB esteve à frente do governo federal. Assim, vale todo o tipo de força expressiva do simbolismo comparativo: “nós não praticamos a privataria tucana”; “nós não dilapidamos o patrimônio público”, “nós não vendemos empresa estatal a preço de banana”; “alguém aí viu a Dilma batendo martelo em leilão na Bolsa de Valores?”; e por aí vai. Ora, se a hipótese inicial fosse mesmo verdadeira, então não haveria realmente nada mais a acrescentar. Os danos provocados pela política de privatização nos tempos de FHC foram realmente muito maiores para o País e para a maioria da população.
No entanto, o problema é muito mais complexo do que uma mera tentativa de simplificação oportunista e rasteira do conceito de privatização. A venda de uma empresa estatal para o setor privado é apenas uma das inúmeras modalidades de privatização que a história recente do capitalismo nos proporciona. Colocar a discussão nesses termos assemelha-se muito ao debate acerca do valor “justo” de venda de uma empresa privatizada. Ora, se por acaso o resultado do leilão da Vale do Rio Doce tivesse sido superior ao preço de banana obtido, então a sua privatização deixaria de ter sido um equívoco?
Neoliberalismo e privatização
A tendência da moda privatizante pelos continentes afora remonta ao início do período chamado de neoliberalismo. A crise vivida pelo mundo capitalista no final dos anos 1970 culminou com importantes mudanças políticas em alguns de seus países, a maioria delas com viés conservador. As transformações mais significativas foram, com certeza, a chegada de Ronald Reagan, do Partido Republicano, à Presidência dos EUA e a indicação de Margaret Thatcher como Primeira-Ministra da Inglaterra, à frente de um gabinete bastante conservador. Uma das conseqüências mais negativas de tal período foi a consolidação hegemônica de um discurso liberal radicalizado, em que toda e qualquer menção a Estado ou à interferência da ação pública era considerado como herético e ineficiente.

Outra importante herança dessa verdadeira era das trevas no pensamento econômico e social foi a desconstrução das estruturas erguidas no cenário posterior à Segunda Guerra, em particular no espaço europeu. Uma verdadeira batalha ideológica e no terreno contra o Estado do Bem Estar Social, em busca da construção de um novo paradigma para o processo de acumulação de capital em escala global.
Assim, cada vez mais foram ganhando espaço na agenda dos organismos multilaterais (Fundo Monetário Internacional - FMI, Banco Mundial – BM, União Européia – UE, entre outros) os programas de redução da presença do Estado e os incentivos para a ocupação crescente dos espaços públicos pelo capital privado. Alguns anos depois, o simbolismo da queda do Muro de Berlim e a reconversão dos países do chamado socialismo real ao credo do capitalismo liberal contribuíram também para reforçar a idéia de que a redução ao chamado Estado-mínimo era uma necessidade inescapável. Esta era a grande linha diretriz do processo de privatização: menos setor público e mais setor privado; menos Estado e mais mercado.
Foram anos de um verdadeiro esmagamento político e ideológico, onde os meios de comunicação, os centros de pesquisa e as próprias universidades foram submetidos a uma espécie de lavagem cerebral generalizada. Os espaços institucionais para o pensamento crítico e a reflexão questionadora eram relegados ao mínimo possível. Até mesmo os autores que se alinhavam com a ordem capitalista, mas numa vertente moderadamente social-democrata (como os keynesianos), eram identificados como inimigos a serem detonados a todo custo.
Estado mínimo, mercado máximo
Essa ampla onda de desconstrução da ordem existente foi a característica central do processo de privatização. As formas de promover a ampliação da presença do setor privado e da aniquilação do espaço do Estado foram variadas. A mais evidente e simbólica, sem dúvida alguma, era a venda pura e simples de uma empresa estatal ao novo proprietário – o empresário privado. Mas mesmo a simples transferência do patrimônio público para o capital contemplava múltiplas modalidades: venda direta por licitação; venda por leilão de melhor preço; venda da maioria de ações com direito a voto; venda da totalidade de ações, com manutenção das chamadas “golden shares” - quando o Estado ainda ficava com direito a veto em questões estratégicas; estímulo à formação de parcerias entre o setor público e o setor privado (PPPs) depois da venda; etc.
No entanto, para além dessas inúmeras formas de transferência da propriedade da empresa estatal, o processo de privatização previa, e ainda prevê, outras modalidades de redução da presença do setor público e de ampliação do espaço de atuação para o capital privado. E aqui entra um conjunto amplo de medidas, tais como: i) quebra do monopólio estatal de setores considerados estratégicos; ii) a desregulamentação de setores monopolizados; iii) a ampliação da concessão de setores e atividades para o setor privado; iv) a liberalização de certas áreas à concorrência para grandes grupos internacionais; v) a abertura de setores de bens e serviços públicos à gestão pelo capital privado; entre outros.
Assim percebe-se que a concessão de determinadas empresas, áreas ou setores ao capital privado é apenas um das múltiplas modalidades de se promover o processo de privatização de uma economia. Trata-se de uma opção estratégica que os governos adotam por razões que podem ser de natureza variada: falta de recursos, excesso de dívida pública a ser honrada, promoção de concorrência ou ainda o conhecido discurso a respeito da suposta superioridade privada face ao setor público em termos de eficiência.
Ampliar o uso da concessão é, sim, promover a privatização.
No caso brasileiro e no debate atual, é evidente que a venda da propriedade de uma empresa estatal provoca conseqüências mais agudas e mais difíceis de reversão. Mas nem por isso o modelo da concessão deixa de ser perverso para a maioria da sociedade. Se alguém se der ao trabalho de estudar os casos concretos, verá que são raríssimos aqueles em que uma concessão, cujo prazo esteja por vencer, não seja renovada para os concessionários de plantão. Todo o sistema de transporte público nos municípios, estados e União é estruturado na base de empresas concessionárias e permissionárias. O modelo das empresas de energia elétrica é também montado na base de contratos de concessão. O modelo das operadoras de telefonia e telecomunicações segue a mesma estrutura.

A exploração do subsolo e dos minérios também exige a forma contratual da concessão. O sistema de rádio e televisão prevê a concessão de exploração pelo setor privado, como os conglomerados Globo, Record, Bandeirantes e demais. E esse detalhe contratual - concessão - não implica que as empresas operando nesse conjunto de áreas obedeçam a um comportamento público ou proporcionem eficiência elevada em seu ramo de atuação. Alguma dúvida sobre o real poder de tais corporações privadas?
Aqueles que hoje executam um verdadeiro exercício de contorcionismo retórico para justificar o injustificável, há poucos anos atrás criticavam a proposta de FHC de autorizar a exploração de poços de petróleo pelas petroleiras privadas por meio do sistema de concessão. E criticavam a medida corretamente, pois tratava-se de uma forma travestida de privatização da atividade de exploração do combustível – sob a roupagem da concessão abria-se o espaço para o setor privado entrar no ramo tão rentável quanto estratégico. O mesmo ocorre na área da saúde, um serviço público essencial, quando os governos oferecem a concessão da exploração de um hospital ou outro tipo de equipamento para os grupos privados, sob a forma da chamada organização social (OS). E a analogia vale também para a área do ensino superior: não é necessário que o governo venda o patrimônio das universidades federais para que se verifique um processo paulatino de privatização do sistema. Basta que continue a estimular o setor do “unibusiness” por meio de programas como o PROUNI para os grupos privados e a estrangular as universidades públicas por meio de medidas como o REUNI e o achatamento salarial de professores e funcionários.
Agora, a bola da vez são as rodovias e as ferrovias. Em seguida virão portos, hidrovias e os aeroportos, que já estão na fila de espera. Parece evidente que conceder a exploração de um aeroporto ao capital privado por 25 anos é uma forma de privatização. Permitir o usufruto econômico de uma ferrovia pública por um grupo privado por 30 anos é também um jeito sutil de privatizar. Conceder a exploração econômica de uma rodovia pública a um conglomerado privado não deixa de ser uma modalidade de privatização. E o mais grave é que a maior parte desses projetos ainda nem existem. Os investimentos serão financiados de forma bastante generosa, com recursos subsidiados pelo BNDES e pelo Tesouro Nacional. A política tarifária será dimensionada de forma a dar a maior rentabilidade ao empreendedor privado. E a empresa constituída pelo governo federal (Empresa de Planejamento e Logística - EPL) não terá poder algum de regulação sobre esse tipo de atividade, pois nem é mesmo é de sua competência legal. Ela deverá ser apenas a referência de gerenciamento e acompanhamento dos projetos, podendo estabelecer também alguma ordem de prioridade.
O anúncio do plano escancarou o que todos sabiam: os recursos públicos da União existem. Sistematicamente negados para as áreas sociais, agora foram garantidos na ordem de R$133 bilhões. Mas mesmo assim o governo optou pelo modelo da concessão ao capital privado para estruturar e operar a rede da logística de transportes. E assim conseguiu realizar uma verdadeira mágica: sem ter vendido uma única empresa do setor, conseguiu privatizá-lo quase que completamente. A partir do PNL, o sistema federal das principais rodovias e ferrovias será todo operado por empresas privadas, com contratos de concessão cuja duração deverá variar entre 20 e 30 anos. As próximas gerações poderão fazer um balanço e avaliar melhor as sutilezas da diferença entre concessão e privatização.
Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Fonte: Carta Maior | Colunistas | Debate Aberto, 23/08/2012

terça-feira, agosto 21, 2012

um grão de poesia

Paralelo 30

Em uma fração do tempo nos conhecemos
O amor adolescente tão incontrolável
Instalou-se nas fibras com enorme força

Um sorriso desigualou as linhas da boca
Vivemos no tempo dos impulsos paralelos
Coração de terra bebendo água de tão distante

Não sei mais quem sou estranho sol paralelo
Sintomas arrancam meus parentes internos
Por encontrar tuas loucuras em meu sonho

segunda-feira, agosto 20, 2012

uma desonrosa posição de destaque

Nenhum problema é mais revelador da esquizofrenia das elites brasileiras do que a questão da terra. Nós, brasileiros, que tanto prezamos campeonatos de todos os tipos, podemos nos constranger com uma desonrosa posição de destaque: somos um dos líderes mundiais em concentração fundiária.
Gilson Caroni Filho
"Eu defendo o direito de manifestação, esse direito é sagrado. Mas há momentos em que se abusa demais dele. O que eu vi hoje foi um desrespeito sem limites" Com essas palavras o deputado Benedito de Lira (PP-AL) definiu a ação de integrantes do Movimento Sem Terra (MST) que bloquearam a BR-314, em protesto contra a proibição de se manifestarem em Marechal Deodoro, município alagoano onde a presidente Dilma inaugurou uma nova fábrica da Braskem.
O que denotam as palavras do parlamentar? Nenhum problema é mais revelador da esquizofrenia das elites brasileiras do que a questão da terra, particularmente o da Reforma Agrária. Convém lembrar que as grandes inteligências nacionais, desde os anos 1930, têm insistido que, enquanto o cerne do país for constituído pela lógica das grandes propriedades, a democracia como forma de governo será, entre nós, uma simples fantasia.
Nós, brasileiros, que tanto prezamos campeonatos de todos os tipos, podemos nos constranger com uma desonrosa posição de destaque: somos um dos líderes mundiais em concentração fundiária. Cerca de 1% dos proprietários rurais detêm 46% das terras cadastradas. O toque de ironia é que são os pequenos produtores sem terra (ou com muito pouca terra) que abastecem o mercado interno, enquanto os créditos, subsídios e financiamentos do Estado continuam, mesmo depois de quase 10 anos de governo progressista, sendo monopolizados pelo agronegócio.
O contingenciamento de 70% das verbas de custeio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) somado à acentuada redução do número de assentamentos são indicadores preocupantes nos dois primeiros anos do governo Dilma. Não há "Brasil Sem Miséria” sem reforma agrária efetiva. É preciso romper com o tempo em que "Planos Nacionais", tantas vezes remendados, na verdade significavam uma política de compromisso com os latifundiários para tornar inexequível qualquer avanço.
A solução perversa para resolver o problema consistia simplesmente em reduzir dramaticamente a população rural, empurrada para as grandes metrópoles em ritmos sem precedentes. O resultado era a proliferação de favelas, de periferias desassistidas e um exército de semi-cidadãos entregues à própria sorte em cidades carentes de recursos e equipamentos urbanos, um terreno fértil para proliferação de clientelismos que entravaram gravemente o desenvolvimento da democracia.
Até a chegada de Lula à presidência, os governos que o precederam optaram por não aceitar a reforma agrária. Preferiram aceitar a imposição dos que gritam mais forte e que há mais de 500 anos dominam o Brasil. Abandonaram o país moderno, do operário urbano e rural, dos pequenos e médios proprietários, das classes médias e do empresariado progressista. Escolheram o passado, no que ele tem de mais retrógado, no que ele preserva de práticas oligárquicas e excludentes.
Ignoram uma lição histórica de grande valia: não há país capitalista que tenha deixado de intervir decisivamente nesta questão. A Áustria dos canaviais e a França dos bons vinhos são os exemplos mais aparentes onde o interesse social predominou sobre o individualismo egoísta.
Se realmente pretendemos uma sociedade inserida em moldes mais equilibrados, necessitamos ter presente que não a alcançaremos sem uma reforma agrária que enterre seu bisturi diretamente nessas desigualdades. Inglaterra, Holanda, Suécia, Estados Unidos e França já o fizeram há séculos. Japão, Itália, México e outros países, mais recentemente. Isto sem pensar nos países socialistas, que intervieram na propriedade de terra no bojo de revoluções socialistas. E nós, quando o faremos? Ou vamos continuar ostentando os maiores latifúndios do mundo?
Nunca é demais lembrar que para um partido que nasceu dos impulsos dos movimentos de massa, das greves e das lutas populares, certas soluções de compromisso têm prazo de validade definido. Dar ouvidos às ponderações de João Pedro Stédile, mantendo o diálogo permanente com os setores organizados da sociedade, é reafirmar a crença na política como atividade própria dos setores excluídos que querem participar, legal e legitimamente, de todas as decisões da sociedade.
A burguesia não quer hoje a reforma agrária, porque o Brasil, ao contrário do que ocorreu nos países citados, está tentando se desenvolver mantendo intactas as estruturas do latifúndio. Mas todas as classes e suas frações, não; pois sabem que sua sobrevivência e dignidade dependem de um país igualitário, humano, solidário, dependendo isto da intervenção decidida na questão da terra.
Como dizia oportunamente Tocqueville a propósito da jovem democracia americana: "a arte de se associar se desenvolve na exata medida em que as condições de igualdade crescem". Certamente, a presidente conhece esse trecho, mas nunca é demais uma releitura em momentos de turbulência.
Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Jornal do Brasil.

quinta-feira, agosto 16, 2012

Uma loucura!

A pressa de Dilma e os riscos de mais privatização

Paulo Kliass*

Há uma verdade na dinâmica da política que parece inquestionável. Sempre que a economia começa a apresentar sinais de dificuldade ou de debilidade, os dirigentes governamentais passam a se sentir incomodados e ameaçados. É claro que isso deve ser analisado com todas as nuances segundo o tipo de crise, a especificidade da conjuntura, a formação social considerada, etc. Mas o fato é que o receio de amplificação dos efeitos proporcionados pelo simples anúncio de números indesejados na economia deixa o núcleo do poder em situação de alerta. É a síndrome da perda da popularidade.

E aqui, agora, estamos tratando da divulgação em série de indicadores não muito alentadores a respeito da atividade econômica em nosso País. A primeira surpresa já veio lá do ano passado, quando o PIB cresceu apenas 2,7% - um desempenho muito fraco, principalmente quando comparado à performance apresentada por países vizinhos, pelos demais da América Latina e pelos similares dos BRICS. Primeiro ano de governo, herança de decisões adotadas pela equipe precedente, efeitos da crise financeira internacional. Enfim, muitos foram os argumentos apresentados pela Presidenta, em sua tentativa de se justificar perante a sociedade a respeito do ocorrido ao longo de 2011.

Baixa da SELIC e a oportunidade perdida
No entanto, quando a maioria esperava justamente uma mudança de rota a partir de tais resultados colhidos ao longo do primeiro ano de seu mandato em termos da economia, eis que Dilma inicia 2012 com a mesma lenga-lenga da ortodoxia conservadora: esforço fiscal para geração de superávit primário e contenção de despesas orçamentárias essenciais.

Apesar de ela ter revelado uma atuação importante no sentido de provocar a reversão da taxa oficial de juros (SELIC), isso só começou a ocorrer muito tarde, a partir de 1 de setembro de 2011. Os efeitos recessivos da continuidade da mais alta taxa de juros de mundo continuaram a se fazer presentes. E eram ainda mais potencializados pela conjuntura de crise financeira internacional, que mantinha um fluxo expressivo de recursos externos na direção de nossas praias, em busca da rentabilidade segura e elevada proporcionada pelo governo brasileiro.

Ao invés de aproveitar a oportunidade que se abriu com a redução da taxa SELIC e com o conseqüente impacto positivo provocado sobre as despesas financeiras da dívida pública, a opção do governo foi na linha de recuperar o espírito do “bom mocismo” frente ao capital, como nos tristes tempos de Lula, Palocci e Meirelles. Logo no início desse ano, apresentou um plano de cortes orçamentários de R$ 50 bi e reforçou o discurso de austeridade fiscal a todo custo. Com isso dissipou-se a visão otimista daqueles que achavam que os eventos negativos de 2011 eram passageiros e que em 2012 a economia iria mesmo se recuperar. Afinal, imaginava-se que Dilma e sua equipe econômica compunham o campo das correntes mais alinhadas com a perspectiva do desenvolvimentismo.

Frente a esse cenário de indefinição da crise internacional, da continuidade da recessão nos países mais industrializados e da política de contenção de gastos públicos no Brasil, ficaram seriamente comprometidas as possibilidades de se observar um crescimento econômico de maior envergadura em nosso País. As projeções para o crescimento do PIB deste ano foram sendo reduzidas a cada mês. Saíram do patamar de 4,5% anuais e foram baixando até os atuais 1,9%. Realmente muito pouco para as nossas necessidades e para o que seria se possível, caso a opção da Presidenta fosse realmente pelo desenvolvimento e não pela retração das atividades econômicas.

A pressa em reverter o baixo PIB de 2012
Esse quadro apresenta um alto risco do governo apresentar um conjunto de medidas impelido exclusivamente pela pressa. Com a aceleração do calendário político e o desgaste provocado pela passividade registrada até então, compreende-se a vontade de reverter a conjuntura pessimista e sair com a chamada “agenda positiva”. Porém, como diz a sabedoria popular, a pressa é inimiga da perfeição. O governo não tem como alegar que não sabia das dificuldades na esfera da economia e que foi pego de surpresa – oh! azar - pelas más notícias. Não, de modo algum! O que se fez foi uma opção política pelo imobilismo, uma decisão de não tomar nenhuma atitude mais incisiva e deixar a bola rolando, na esperança de as coisas entrassem nos trilhos lá na frente. Triste e equivocada ilusão.

Aliás, é no mínimo curioso constatar a mudança de postura da Presidenta no equacionamento desse tipo de questão. Ela sempre foi apresentada como a “gerontona” e com um perfil mais técnico e voltado para a obtenção de resultados para as políticas públicas. Porém, em vários quesitos ela não tem correspondido a tal figurino, deixando importantes decisões serem empurradas para debaixo do tapete. Assim foi com a greve e com as justas reivindicações salariais dos professores das universidades federais e demais carreiras dos funcionários públicos. O governo foi enrolando a negociação, recusando-se a reconhecer a legitimidade das reivindicações e das entidades. E, agora, quase três meses depois do início do movimento encontra-se com um enorme abacaxi para descascar. Entre o elogio de FHC e a crítica das centrais sindicais, seus apoiadores não sabem muito por onde caminhar.

O mesmo ocorreu com as obras previstas para Copa do Mundo em 2014. Era público e notório o atraso de boa parte dos projetos em execução – desde os estádios até os empreendimentos paralelos previstos para as cidades-sede, a exemplo dos sistemas de transporte urbano e dos aeroportos. Quando começaram a pipocar artigos e estudos sobre a inviabilidade de serem concluídos nos prazos previstos, a reação do governo foi imediata e insensata: privatizar os aeroportos de Brasília, Guarulhos e Viracopos. Uma loucura! O modelo de concessão desse serviço público à iniciativa privada foi considerado bastante polêmico e pouco eficiente. A empresa pública federal encarregada da gestão dos aeroportos – a Infraero – foi incorporada como sócia minoritária nas empresas constituídas na linha da famosa fórmula da “parceria público-privada”. Ou seja, a continuidade de nossa prática tupiniquim de assegurar o máximo retorno para o setor privado, cabendo ao Estado o ônus e todos os riscos da empreitada.

O ritmo de andamento das obras do PAC vai, também, na mesma toada. Lentidão, pouca cobrança de metas executadas e as conseqüências previsíveis das contenções de recursos orçamentários. A ponto de muitos se permitirem questionar se seriam efetivamente considerados como projetos prioritários pelo governo. Afinal, que prioridade é essa em que os projetos demoram a sair do papel e os canteiros de execução não avançam de acordo com as exigências do País?

Rodovias e ferrovias: R$ 133 bi para o setor privado
Agora, a realidade parece confirmar aquilo que os assessores econômicos de Dilma talvez não quisessem considerar há meses. A economia vai mal, muito abaixo do possível e pode comprometer mais uma vez a janela de oportunidade que se abria para o Brasil com a crise financeira internacional. E de repente surge a “óbvia idéia milagrosa”: atrair o setor privado para retomar os níveis de investimento, oferecendo a ele - mais uma vez - o filé mignon dos serviços públicos. Depois da recusa em receber os representantes sindicais, Dilma abre a pompa do cerimonial para acolher em Palácio “la crème de la crème” dos representantes do grande capital.

O mote do convescote foi o anúncio de mais um pacotaço de benesses dirigido às grandes corporações empresariais. Nada mais, nada menos do que a bagatela de R$ 133 bi a serem distribuídos generosamente, a juros subsidiados e facilidades diversas, para os investimentos em setores estratégicos de nossa infra-estrutura. E vejam que se trata apenas de uma parte de um conjunto mais amplo de bondades para o setor privado e de maldades para a maioria do povo brasileiro. Essa primeira etapa do anúncio refere-se apenas a rodovias e ferrovias. Mais à frente virão os portos, hidrovias e outros aeroportos.

As palavras do mega-empresário Eike Batista - especialista em abocanhar áreas públicas para apropriação e acumulação privadas - não poderiam ser mais eloqüentes. No entender do bilionário, encantado com a novidade, o pacote anunciado por Dilma revela-se como um verdadeiro “kit felicidade”.

Ora, aqui resta pouco a acrescentar. A Presidenta optou, mais uma vez, pela privatização dos serviços públicos. Sempre haverá quem, no afã de justificar o injustificável, venha com a surrada desculpa da “diferença essencial” entre concessão e privatização. Conversa prá boi dormir.

Quando o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) estabeleceu a concessão de exploração de poços de petróleo para as empresas privadas, ele foi – corretamente, aliás! – acusado de promover a privatização do setor. Agora, quando Dilma pretende conceder a exploração de ferrovias, rodovias e portos ao capital privado – eh, bem, nesse caso - trata-se tão somente de concessão. Nada como um dia após o outro!

É sabido que os processos de privatização comportam diferentes modalidades de transferências entre o setor público e o setor privado. A mais evidente de todas é a alienação do patrimônio do Estado para o setor privado, em geral a venda de uma empresa estatal. Mas outras medidas fazem parte da mesma essência, tais como: i) a transferência de gestão sem transferência de propriedade; ii) as inúmeras formas de parceria público-privada; iii) as concessões de exploração de serviços públicos; iv) a concessão de exploração de minérios e do subsolo; entre tantas outras formas dessa complexa relação entre o público e o privado. O destino oferecido pelo governo para a operacionalização do transporte ferroviário e rodoviário encaixa-se perfeitamente nessa moldura.

Privatização com recursos públicos
Porém, o anúncio da Presidenta não veio acompanhado do mais importante: os detalhes das modalidades operacionais. E é justamente aí que reside o pulo do gato, onde mora o perigo. Alguns elementos já vieram a público: os contratos de concessão poderão chegar a 30 anos, os juros serão francamente subsidiados pelo Tesouro Nacional, as empresas serão majoritariamente controladas pelo capital privado. No entanto, quase nada foi dito acerca das políticas de tarifas a serem cobradas, das penalidades em caso de ruptura das obrigações por parte das empresas, das contrapartidas exigidas do setor privado, do destino do patrimônio construído, das obrigações de investimento ao longo do período, etc. Imagine-se o cenário de uma ferrovia em 2042, quando deverá ser renovado o contrato de concessão de exploração do serviço. Uma loucura!

Ou esse tipo de transporte não será mais usado daqui a 3 décadas ou então ninguém duvide da capacidade do grupo privado obter a renovação do contrato. E o que dizer da renovação da eventual concessão de um importante porto exportador em 2037?

O receio da perda de popularidade pela economia em baixa e o desejo de parecer confiável aos olhos do grande capital levaram Dilma a cometer mais esse equívoco profundo em sua política de governo. Nesses momentos de agradar ao empresariado, o discurso da falta de recursos some de cena. Aquilo que sempre é negado aos setores mais necessitados (saúde, educação, previdência social, salários do funcionalismo, entre outros) agora aparece em abundância extrema para os representantes das elites, sob a forma de mais de uma centena de bilhões de reais. Os investimentos em infra-estrutura são essenciais para o desenvolvimento do Brasil - isso é inegável. No entanto, a opção por privatizar esse tipo de serviço público só faz aprofundar ainda mais o ciclo iniciado por FHC com telefonia, eletricidade, petróleo, sistema financeiro, saneamento e outras áreas estratégicas. Em troca de alguns míseros pontos percentuais de crescimento no PIB de 2012, o governo arrisca o comprometimento estratégico e o futuro do País, retirando a capacidade do poder público de influenciar setores essenciais da atividade econômica.

Se os recursos existem e estão disponíveis, não há razão para oferecê-los graciosamente ao setor privado. O Estado brasileiro teria todas as condições de iniciar os projetos necessários, bastando para isso a sinalização da vontade política por parte da Presidenta. Se os representantes do capital privado estiverem interessados em investir, eles serão muito bem vindos a acompanhar a iniciativa pública com seus próprios recursos. É necessário ter muita cautela com toda e qualquer forma de privatização. Afinal, os sucessivos escândalos nas áreas de telecomunicações e energia elétrica demonstram que os critérios de eficiência da gestão privada de serviços públicos nem sempre redundam em melhoria da qualidade e tarifas mais reduzidas. E que as agências reguladoras tendem a defender os interesses das empresas reguladas, em detrimento dos usuários. A prioridade, nesse caso, é sempre o retorno máximo sob a ótica do lucro privado. Você aí perguntou algo a respeito do atendimento às necessidades da população? Ora, mas isso é apenas um detalhe secundário da operação...

Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

quarta-feira, agosto 15, 2012

"Not Alright By Me"

"É a educação, Carvalho!"

Sobre a greve das federais
Muniz Sodré*
Greve de professor é mesmo greve? A quem se dispuser a refletir sobre a questão, é aconselhável pesquisar o pragmatismo americano, que atribui grande importância à terminologia como vetor de consolidação ou de mudança ideológica na vida social. Veja-se greve: no contexto semântico do neoliberalismo e na mentalidade seduzida pelo "capitalismo cognitivo", registra-se uma tendência nada sutil para expurgar da História contemporânea essa palavra.
Primeiro, argumenta-se que, para determinadas atividades, como a educação, não "existe" greve porque a interrupção do trabalho não prejudicaria realmente o empregador. Segundo, no caso do operariado, a greve prejudica a produção, sim, mas seria um instrumento típico do regime fordista de trabalho, logo, anacrônico. A falácia desse tipo de argumentação está em supor a universalidade de categorias hipermodernas, como o "capital humano" (a criação de valor não pela força de trabalho externa ao trabalhador, e sim pelo seu saber vivo, dito "imaterial"), fruto do capitalismo cognitivo, supostamente emergente e virtuoso em todos os rincões do planeta.
Nada disso é falso, mas tudo isso, colocado apenas dessa maneira, esconde alguns fatos importantes. Por exemplo, o capital dito humano mantém a sociedade dependente da "velha" produção material e, não raro, em regimes historicamente regressivos. Outro: a flexibilidade do contrato de trabalho, um dos aspectos emergentes desse processo, contribui para que empresa e produção de riquezas deixem de ser mediadas pelas formas clássicas de trabalho.
A greve é um mecanismo clássico de luta operária, porém, o seu sentido vem sendo reposto na História pelos movimentos sociais em prol não apenas dos direitos trabalhistas, mas também dos direitos civis e dos direitos sociais (educação, saúde). A própria legislação (Consolidação das Leis do Trabalho) reconhece que a palavra greve refere-se, por extensão, à interrupção coletiva e voluntária de qualquer atividade, remunerada ou não, para protestar contra algo. Nada impede que se faça greve até mesmo pelo direito de trabalhar, quando essa atividade estiver ameaçada em sua dignidade ou na possibilidade de sua continuação.
A greve atual dos professores das universidades federais, com quase três meses de duração, insere-se nesse quadro amplo, de muitos aspectos. Comecemos pelo aspecto macroeconômico. Um estudo da Fundação Getulio Vargas mostra que um dos fatores para a atual ascensão da baixa classe média foi a universalização do ensino fundamental a partir dos anos 1990. Estima-se que a continuidade da mobilidade social dependerá do cumprimento das metas de educação.
O problema é que a educação comparece no discurso oficial como uma reles peça orçamentária, mensurável apenas por estatísticas de matrículas, avaliações e recursos. Deixa-se de lado o essencial em todo e qualquer processo educacional, ou seja, o professor e seus históricos fronts republicanos – cultura, pedagogia e democracia. Sem a formulação de projetos político-pedagógicos em níveis nacionais, vê-se prosperar uma subcultura avaliativa, decorrência lógica da presença de tecnoburocratas, em vez de pedagogos e pensadores, na esfera clássica da educação.
É essa subcultura, aliás, que alimenta as organizações internacionais (OCDE, Banco Mundial, Comissão Europeia) empenhadas na constituição de um mercado mundial da educação. Ainda assim, o discurso globalista consegue estar à frente da parolagem governamental, onde a palavra educação circula como um fetiche economicista. Mesmo apoiado no limitado escopo empresarial do capital humano, o discurso globalista não abre mão da valorização do professor.
A valorização republicana do professor dá-se pelo reconhecimento público de sua estabilidade institucional no quadro do Estado. Este é o ponto central do movimento grevista em curso: um novo plano de carreira e um salário sem os "penduricalhos" instáveis, obtidos ao longo de anos de lutas. O reajuste salarial está atrelado a esse plano, sintomaticamente rejeitado pelo atual governo: "A reestruturação das carreiras já ocorreu no governo Lula e agora mudou a política, numa situação agravada pela crise".
Mas que mudança política? Que crise? Que agravamento? Estas palavras não aparecem nos discursos oficiais sobre os preparativos para a Copa do Mundo ou para as Olimpíadas. Num país que dispõe (neste mês de agosto) de 376 bilhões de dólares em reservas, paga em dia a dívida externa e é credor do Fundo Monetário Internacional, não se podem invocar os álibis da crise mundial e seu agravamento, mesmo com a redução do PIB.
Não se trata realmente de falta de fundos, mas de falta do bom-senso necessário a uma mudança de mentalidade em favor da ampliação das políticas sociais, com vistas à transformação da educação e da saúde públicas. O cuidado é outro, como reverbera o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Gilberto Carvalho: "Temos de nos preocupar muito com o emprego daqueles que não têm estabilidade. Então, toda a nossa sobra fiscal estamos procurando empregar para estimular a indústria, a agricultura, o comércio e os serviços, porque esses nos preocupam mais".
Em outras palavras, a iniciativa privada gera riqueza, logo, paga impostos que arcam com o custo das políticas sociais. Isto é o que a retórica chama de "paralogismo da indução defeituosa", e nós chamamos de pérola da simplificação neoliberal. Defeito: o porta-voz deixa de dizer que, quando uma empresa qualquer contrata um profissional qualificado, está incorporando um "ativo" que custou anos de "ativos" familiares ou estatais para a sua formação. Onde o neoliberal diz "custo" leia-se "investimento em infraestrutura". A terminologia proativa explica: "É a educação, Carvalho!"
"Mas temos todo o respeito pelos servidores", ressalvou o ministro. Por que então não dialogar com todos os seus órgãos de classe? Respeitar é não discriminar. O plano de carreira, por exemplo, é matéria controvertida entre os próprios professores: tem laivos corporativistas, passa ao largo do problema da padronização salarial que impede a contratação de cérebros estrangeiros. Greve é hoje demanda de diálogo público. Mas no vazio da representatividade inexiste diálogo, já que voz nenhuma se reproduz no vácuo.
Por tudo isso, no momento em que o fantasma do neoliberal Milton Friedman reaparece nos jornais, é admissível pensar que esta greve dos professores universitários tem algo de pedagógico numa sociedade de fraca participação coletiva, mobilizada apenas pela novela das 8: uma aula pública de indignação diante da hipocrisia oficial para com a educação e um apelo à mobilização da sociedade como um todo.
*Muniz Sodré é Professor emérito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e escritor.

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