A Capitalização da Natureza e as estratégias fatais do desenvolvimento sustentado*
por Enrique Leff
* trecho do livro Racionalidade Ambiental.
As estratégias de apropriação dos recursos naturais do Terceiro Mundo no marco da globalização econômica se reconfiguraram nas perspectivas da sustentabilidade. Ante a impossibilidade de assimilar as condições de sustentabilidade e os princípios que orientam a construção de uma nova racionalidade ambiental, a política de desenvolvimento sustentado vai desativando, diluindo o pervertendo as perspectivas abertas pelo conceito crítico do ambiente a um desenvolvimento alternativo. Se nos anos 1970 a crise ambiental tornou necessário que se colocasse um freio antes que o colapso ecológico fosse alcançado, a partir dos anos 1980 o discurso neoliberal anunciou a desaparição da contradição entre ambiente e crescimento. Os mecanismos de mercado são postulados como o meio mais correto de assimilação das condições ecológicas e dos valores culturais ao processo de crescimento econômico. Na perspectiva neoliberal, desaparecem as causas econômicas dos problemas ecológicos. A crise ambiental não é mais um efeito da acumulação de capital, mas resultado do fato de não haver outorgado direitos de propriedade (privada) e atribuído valores (de mercado) aos bens comuns. Uma vez estabelecido o anterior – afirma o discurso do desenvolvimento sustentado -, as leis clarividentes do mercado se encarregariam de ajustar os desequilíbrios ecológicos e as diferenças sociais, a equidade e a sustentabilidade.
O discurso do desenvolvimento sustentado promove o crescimento econômico negando as condições ecológicas e termodinâmicas que estabelecem os limites e possibilidades de uma economia sustentável. A natureza está sendo incorporada ao capital mediante uma dupla operação: de um lado, procura-se internalizar os custos ambientais do progresso atribuindo valores econômicos à natureza; ao mesmo tempo, instrumentaliza-se uma operação simbólica, “um cálculo de significação” (Baudrillard, 1974) que recodifica o homem, a cultura e a natureza como formas aparentes de um mesma essência: o capital. Assim, os processos ecológicos e simbólicos são reconvertidos em capital natural, humano e cultural, para serem assimilados pelo processo de reprodução e expansão da ordem econômica, reestruturando as condições da produção mediante uma gestão economicamente racional do ambiente.[1]
A ideologia do desenvolvimento sustentado libera o mercado, desencadeando um processo incontrolado e desregulado de produção, um delírio da razão econômica, uma mania de crescimento (Daly, 1991). O discurso da sustentabilidade aparece assim como um simulacro que nega os limites do crescimento para afirmar a corrida desenfreada em direção à morte entrópica do planeta. Afirma-se, assim, um processo que se aparta de toda lei de conservação ecológica e reprodução social para dar curso a um processo que desborda toda norma, referência e sentido para controlá-lo. O discurso da sustentabilidade opera uma estratégia fatal, uma inércia cega que se precipita em direção à catástrofe. O discurso de Baudrillard se reflete e encontra seu referente no discurso do desenvolvimento sustentado e em suas manifestações da crise ambiental quando afirma que:
Estamos governados não tanto pelo crescimento, mas por crescimentos. Nossa sociedade está fundada na proliferação, em um crescimento que continua apesar de não poder medir-se diante de nenhum objetivo claro. Um sociedade excrescente cujo desenvolvimento é incontrolável, que ocorre sem considerar sua autodefinição, onde a acumulação de efeitos vai de mãos dadas com a desaparição das causas. O resultado é um congestionamento sistêmico bruto e um mau funcionamento causado por um hipertelia: por um excesso de imperativos funcionais, por uma sorte de saturação [...] As próprias causas tendem a desaparecer, a se tornar indecifráveis, gerando a intensificação de processos que operam no vazio. Enquanto existir uma disfunção do sistema, um desvio das leis conhecidas que governam sua operação, sempre existirá a perspectiva de transcender o problema. Mas, quando o sistema se precipita sobre seus pressupostos básicos, desbordando seus próprios fins, de maneira que não é possível encontrar-se nenhum remédio, não estamos contemplando mais uma crise e sim uma catástrofe [...] O que chamamos de crise é de fato a antecipação de sua inércia absoluta (Baudrillard, 1993: 31-2).
O capitalismo engoliu o mundo, mascarou-o e velou-o em sua própria imagem, levado por “essa estratégia exponencial na qual as coisas, privadas de sua finalidade ou de sua referência, se reiteram em um tipo de jogo no abismo”. A hipereconomização do mundo gerou uma
revolução nas coisas que não se dá mais em sua superação dialética, mas sim em sua potencialização, em sua elevação à potência dois, a potência n, dessa ascensão aos extremos na ausência de qualquer regra de jogo [...] Parece que as coisas, tendo perdido sua determinação crítica e dialética, só puderam se redobrar em sua forma exacerbada e transparente [que] nos leva para um êxtase que é também o da indiferença (Baudrillard, 1983: 38, 46).
O que está em ato nessa excrescência do Mundo Objeto não é a celebração do gasto, a manifestação exacerbada da pulsão à dissipação na qual Bataille via o destino governado pelo excesso, por “uma organização aventureira, eventualmente absurda, um projeto de energia devastadora, um antieconomia, um prodígio, um desafio à natureza conservacionista” (1983: 86-7). Trata-se de uma compulsão ao consumo que, contra o princípio da escassez da economia, desborda a ideologia do progresso. A questão não se apresenta como um dilema do sujeito – do controle racional diante da falta de medidas do desejo -, e sim da própria racionalidade econômica, cujo falso princípio de racionalização da escassez o conduz a todos os excessos, a que perverte a ética iluminada pelo pensamento da complexidade e da natureza ecologizada.
A retórica do desenvolvimento sustentado reconverteu o sentido crítico do conceito de ambiente em um discurso voluntarista, proclamando que as políticas neoliberais haverão de nos conduzir para os objetivos do equilíbrio ecológico e da justiça social pela via mais eficaz: a do crescimento econômico guiado pelo livre mercado. Esse discurso promete atingir seu objetivo sem uma fundamentação a respeito da capacidade do mercado em dar seu justo valor à natureza, desmaterializar a produção, reverter as leis da entropia e atualizar as preferências das gerações futuras. Isto leva a questionar a possível sustentabilidade do capitalismo (M. O’Connor, 1994), quer dizer, do irrefreável impulso em direção ao crescimento da racionalidade econômica e sua impotência para deter a degradação entrópica que gera. A racionalidade econômica resiste à sua desconstrução e arma um simulacro no discurso do desenvolvimento sustentado, uma estratégia de simulação, um jogo falaz de perspectivas – trompe l’oeil -, que burla a percepção das coisas e perverte toda razão e ação no mundo em relação a um futuro sustentável. O discurso do desenvolvimento sustentado volta como um bumerangue, decapitando o ambiente como conceito que deve orientar a construção de uma nova racionalidade social. A estratégia discursiva da globalização se converte em um tumor semiótico e gera a metástase do pensamento crítico; dissolve a contradição, a alteridade, a diferença e a alternativa, para oferecer-nos em seus excrementos retóricos uma revisão do mundo como expressão do capital. O ambiente já não apenas refuncionalizado para valorizar e reintegrar suas externalidades dentro da racionalidade econômica que o gera, ao mesmo tempo que o rechaça. O ambiente é reapropriado pela economia, fragmentando e recodificando a natureza como elementos do sistema: do capital globalizado e da ecologia generalizada.
Não faltou quem quisesse ver na origem comum de seus conceitos a via para reintegrar a economia ao sistema mais amplo da ecologia, pelo reconhecimento de sua idêntica raiz etimológica: oikos. Mas essa operação hermenêutica de sua tática semiótica não poderiam unificar os sentidos diferenciados dentro dos quais foram construídos os paradigmas da economia e da ecologia, assim como as diferentes cosmovisões e significações culturais em que se desenvolveram os saberes sobre a vida e a produção, nem dissolver as estratégias de poder da economia que dominaram a ecologia. O discurso do desenvolvimento sustentado colonizou a natureza, convertendo-a em capital natural. A força de trabalho, os valores culturais, as potencialidades do homem e sua capacidade inventiva se transmutam em capital humano. Tudo é redutível a um valor de mercado e representável pelos códigos do capital. O capital clona identidades para assimilá-las a uma lógica, a uma razão, a uma estratégia de poder para a apropriação da natureza como meio de produção e de reprodução da racionalidade econômica. Dessa maneira, as estratégias de sedução e de simulação do discurso do desenvolvimento sustentado constituem o mecanismo extra-econômico por excelência da pós-modernidade para manter o domínio sobre o homem e a natureza.
O capital, em sua fase ecológica, está passando das formas tradicionais de apropriação primitiva, selvagem e violenta dos recursos da comunidade – a rapina do Terceiro Mundo denunciada por Pierre Jalée (1968) -, dos mecanismos econômicos de intercâmbio desigual entre matérias-primas dos países subdesenvolvidos e produtos tecnológicos do Primeiro Mundo (Amin, 1973, 1974; Emmanuel, 1971), a uma estratégia discursiva que legitima a apropriação dos recursos naturais e ambientais que não são diretamente internalizados pelo sistema econômico. Através dessa operação simbólica, a biodiversidade é definida como patrimônio comum da humanidade, as comunidades do Terceiro Mundo como um capital humano e seus saberes como recursos patenteáveis por um regime de direitos de propriedade intelectual. O discurso da globalização aparece assim como um olhar guloso mais do que como uma visão holística; em lugar de aglutinar e dar integridade à natureza e à cultura, fragmenta-as como partes constitutivas do desenvolvimento sustentado para globalizar racionalmente o planeta e o mundo sob o princípio unitário do mercado. Essa operação simbólica submete todas as ordens do ser aos ditames de uma razão global e universal. Dessa forma, prepara as condições ideológicas para a capitalização da natureza e a redução do ambiente à razão econômica. As estratégias fatais do discurso do desenvolvimento sustentado resultam em seu pecado capital: sua gula infinita e insaciável.
As políticas de desenvolvimento sustentado procuram conciliar os lados opostos contrários da dialética do desenvolvimento: o meio ambiente e o crescimento econômico. A tecnologia seria o meio instrumental que poderia reverter os efeitos da degradação entrópica nos processos de produção, distribuição e consumo de mercadorias (o monstro devora seus próprios desejos e os reintegra às suas entranhas; a máquina anula a lei natural que a cria). O discurso do crescimento sustentado ergue uma cortina de fumaça que mascara as causas da crise ecológica. Ante o aquecimento global do planeta, é ignorada a degradação entrópica produzida pela atividade econômica – cuja forma mais degradada é o calor – e nega-se a origem antropogênica do fenômeno ao qualificar seus efeitos como desastres “naturais”. Dessa maneira, o discurso do desenvolvimento sustentado não significa apenas mais uma volta na porca da racionalidade econômica, mas um salto mortal, um vôo e um aperto na razão: seu móvel não é internalizar as condições ecológicas da produção, e sim postular o crescimento econômico como um processo “sustentável”, sustentado nos mecanismos do livre mercado e na tecnologia, que seriam meios eficazes para garantir o equilíbrio ecológico e a justiça ambiental.
O desenvolvimento sustentado chegou a proclamar seu triunfo antecipado, baseado nas possibilidades de “desmaterializar a produção”.[2] A tecnologia foi chamada para dissolver a escassez de recursos fazendo a produção repousar em um uso indiferenciado de matéria e de energia (Barnet e Morse, 1963); os demônios da morte entrópica seriam exorcizados pela eficiência tecnológica. A racionalidade tecnológica foi, por sua vez, transferida ao campo da tecnologia. A ecoeficiência e o manejo ecossistêmico se converteram em instrumentos idôneos para a gestão do desenvolvimento sustentado, ampliando o espaço biosférico para estender os limites do crescimento econômico. O sistema ecológico funciona como uma tecnologia de reciclagem e diluição de contaminantes; a biotecnologia inscreve os processos da vida no campo da produção, refuncionalizando o espaço que dá suporte à produção e ao consumo de mercadorias.
As políticas de desenvolvimento sustentado se inscrevem nas vias de ajuste que a economia neoliberal aportaria à solução dos processos de degradação ambiental e ao uso racional dos recursos ambientais; ao mesmo tempo, responde à necessidade de legitimação da economia de mercado, que em seu movimento inercial resiste ao estampido que lhe foi determinado pela sua inércia mecanicista. Como se fosse uma bola de neve, na queda verifica-se a adesão de uma capa discursiva com a qual se tenta deter seu colapso, sem horizontes nem perspectivas, que fecha as vias para a desconstrução da ordem econômica antiecológica e impede o trânsito no sentido da nova ordem social, guiada pelos princípios da sustentabilidade ecológica, da democracia participativa e da racionalidade ambiental.
As estratégias fatais de capitalização da natureza penetraram o discurso oficial das políticas ambientais e seus instrumentos legais e normativos. Com base nos objetivos comuns do desenvolvimento sustentado, convocam-se todos os setores sociais (governo, empresários, acadêmicos, cidadãos, camponeses, indígenas) para uma operação de concertamento e participação na qual se integram as diferentes visões e mascaram-se os interesses contrapostos em um olhar especular, convergente na representatividade universal de todo ente no reflexo do capital argentário. Assim, dissolve-se a possibilidade de dissentir diante do propósito de um futuro comum, uma vez que o desenvolvimento sustentado é definido, em boa linguagem neoclássica, como uma contribuição igualitária do valor que os diferentes fatores da produção adquirem no mercado.[3]
Essa estratégia discursiva procura codificar e reconverter a cultura e a natureza dentro da lógica do capital. Do mesmo modo, tenta levar as disputas sobre os sentidos da sustentabilidade e da expropriação dos recursos naturais e culturais das populações para um esquema combinado, em que seja possível dirimir os conflitos em um campo neutro. Através desse olhar especular (especulativo), pretende-se que as populações indígenas se reconheçam como capital humano, que ressignifiquem seu patrimônio de recursos naturais e culturais (sua biodiversidade) como um capital natural, que aceitem uma compensação econômica negociada pelo dano ou pela cessão de seu patrimônio de recursos naturais e genéticos às empresas transnacionais de biotecnologia. Esta seriam as instâncias encarregadas de administrar racionalmente os “bens comuns da humanidade” em benefício do equilíbrio ecológico e de garantir a distribuição eqüitativa de seus benefícios, de lograr o bem-estar da sociedade atual e o das gerações futuras. Da valorização dos custos ambientais se passa à legitimação da capitalização do mundo como forma abstrata e norma generalizada das relações sociais. Esse simulacro da ordem econômica, que levita sobre as relações ecológicas e sociais de produção, pretende libertar o homem das cadeias da produção para reintegrar seu corpo exausto à metástase da ordem simbólica em que se configuram os desígnios do desenvolvimento sustentado.
Assim, as estratégias do capital para reapropriar-se da natureza vão degradando o ambiente em um mundo sem referentes nem sentidos, sem relação entre valor de troca e a utilidade do valor de uso. A economia do desenvolvimento sustentado funciona dentro de um jogo de poder que outorga legitimidade à ficção do mercado, conservando os pilares da racionalidade do lucro e do poder de apropriação da natureza fundado na propriedade privada do conhecimento científico-tecnológico. As estratégias fatais da globalização econômica conduzem a uma nova geopolítica da biodiversidade, da mudança climática e do desenvolvimento sustentado.
[1] “As condições da produção não são apenas transformadas pelo capital. Devem, também, ser transformadas através do discurso [...] Uma vez completada a conquista semiótica da natureza, torna-se imperativo o uso racional e sustentável do ambiente. Ali está radicada a lógica subjacente dos discursos do desenvolvimento sustentável e da biodiversidade” (Escobar, 1995: 202-3).
[2] Este foi o projeto prometéico empreendido pelo Wuppertal Institute e pelo World Resources Institute com o propósito de reduzir o uso de recursos naturais por unidade de produto graças ao aumento da eficiência tecnológica e à mudança na estrutura da demanda.
[3] Esse discurso conciliador pretende reunir todos os grupos de interesse para alcançar consensos e dirimir conflitos socioambientais, sem perceber, que embora existam interesses e posições negociáveis, existem outros fatores que não poderão harmonizar-se no “concerto” dos protagonistas do drama atual da desigualdade social e da insustentabilidade.
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