O ‘mercado’ da água no Brasil
por Afranio Campos
A capitalização da Natureza: condição e contradição do racionalismo econômico
[EcoDebate] Uma aproximação sobre a questão ambiental, mais precisamente quanto a problemática dos recursos naturais, torna-se circunstancialmente crucial face a crise financeira mundial como lados de uma mesma moeda; sobretudo com a procura da valoração desses recursos (renováveis e não-renováveis), sobremaneira quando se configura sua escassez como no caso dos recursos hídricos, com sua exploração sem critérios de sustentabilidade ou mesmo éticos.
O fato da crise atual se originar em um dos grandes centros financeiros, um grande consumidor de recursos naturais, e acontecer em uma dimensão nunca antes vista, numa dinâmica extremamente rápida, também ocorre concomitantemente ao reconhecimento do drama pelos mais renomados cientistas e economistas defensores dos fundamentos tradicionais, então vemos colocados em xeque paradigmas estruturais da economia capitalista, e isso se tornou preocupante, tanto para os grandes investidores privados como para as instituições, órgãos governamentais, representantes da sociedade organizada, todos os agentes econômicos efetivamente envolvidos na questão ambiental, abrindo uma janela, em um momento histórico singular para o silogismo multi-inter-disciplinar na procura de novos paradigmas e resgate das utopias com alternativas e soluções duradouras para a manutenção equilibrada da vida, das relações econômicas sustentáveis e das culturas sócio-ambientais.
O abalo sofrido pelo sistema financeiro mundial espraiou-se num choque sintomático avassalador, e repercutiu em impactos gradativamente abrangentes, com desemprego, quebra de grandes cadeias produtivas, com efeitos significativos no mercado real, o que diferencia a situação atual da crise de 1929, e outras do século passado; é que esta crise se configura em uma grande “dupla crise” do capitalismo na pós-modernidade, em face e alma, em seu processo histórico de conexão crescimento econômico e degradação ambiental objetivamente investido de ritmo potencializado e crescente, o “daemon ex machina”, o pródigo homem-prometeu buscando uma exploração além dos limites da natureza.
Com a globalização tudo se interliga de forma integrativa em condições e ritmo inexoravelmente universal; o processo em curso supostamente impreciso descortinou-se no século XX cristalizando-se incontrolável perpetrando em grande escala a “entropização” do meio ambiente, numa contínua gula por recursos naturais sem respeitar fronteiras para atender os mercados de commodities; a subsunção de tudo e todos ao implacável racionalismo econômico subscrito no peso ideológico do arcabouço teórico neoclássico. Essa ideologia empurrou os Estados nacionais e seus governos, instituições oficiais e privadas de pesquisa, órgãos não governamentais e empresas transnacionais a avaliarem e colaborarem entre si através de um processo de discussão global em projetos e ações em resposta das grandes questões ambientais diretamente relacionadas com a escassez dos recursos naturais; considerando os motivos ético-ambientais e interesse valorativo dos bens da natureza vimos nas últimas três décadas do século XX a disseminação e o fortalecimento da ideologia do desenvolvimento sustentável.
Seguindo a lógica da sustentabilidade se construiu um conceito no qual as diferenças se homogeneizaram, sobretudo devido às pressões das necessidades de respostas aos impactos sócio-ambientais de regiões com atividades econômicas prioritárias na hierarquia da cadeia produtiva voltadas ao mercado exportador em detrimento do mercado interno, da agroindústria com graves problemas de escassez e baixa qualidade dos seus recursos hídricos, forçando a criação de espaços de convergência nas dissensões para o conhecimento do mundo, em uma intervenção concreta através de políticas públicas ambientais com efeitos global e regional em projetos de médio e longo prazos.
A geopolítica do capital globalizado imprimiu novas combinações e arranjos de intenções das atividades produtivas e de transformação racionalista da natureza; em seu processo de “entropização” inelutável suscitou durante décadas uma rica discussão, mesmo repleta de dissensões, sobre problemas recorrentes que antes não eram apontados com rigor ou eram relegados ao segundo plano, ignorado na sua real importância por quase todos os países, a sustentabilidade ou equilíbrio ecológico.
Com o surgimento de grandes alterações climáticas e a escassez de alimentos abriu-se em largura e profundidade a “caixa de pandora” da questão ambiental, expondo a retórica do discurso do desenvolvimento sustentável – “as leis clarividentes do mercado” não se encarregam de “ajustar os desequilíbrios ecológicos e as diferenças sociais, a equidade e a sustentabilidade” – a crise ambiental é mais um efeito da acumulação de capital, ainda que haja a “outorga de direitos de propriedade (privada) e a atribuição de valores (de mercado) aos bens comuns”.1
Esse momento traz um novo significado para os interesses das existências e dos saberes no mundo, a dos capitais e da vida imersos na “entropização” da natureza, um fato que propõe a urgência do resgate das utopias e o despertar da busca de novos paradigmas e alternativas que se contraponham aos processos produtivos que se apropriam da natureza, causadores dos impactos sócio-ambientais, que potencializam a escassez dos recursos naturais em ritmo acelerado e induzem a degradação dos ecossistemas.
A busca de nichos para investimentos proveitosos pelos capitais transnacionais que procuraram escapulir da crise financeira definindo suas prioridades de lucro, já denota interesses específicos pelos recursos ambientais aonde estes são abundantes, que ofereçam segurança e permanência de retornos num horizonte de longo prazo, que tragam a satisfação dos seus interesses de retornos lucrativos, sobretudo, que estejam fora da malfadada área de abrangência dos mercados de valores fictícios (ativos podres, derivativos), bastante abalados em seus fundamentos teóricos, mas, resiliente não têm fronteiras em sua amplitude sistêmica de apropriação dos recursos naturais.
Os recursos hídricos, que há algum tempo, já faz parte da agenda dos governos e das políticas ambientais, enquanto bem econômico, além de um direito fundamental humano, um bem de uso comum, no Fórum Mundial da Água realizado em Istambul foi conceituado como uma necessidade humana – há quem diga que “temos direitos que não funcionam” sabemos, mas esse ponto de vista parece apontar a necessidade humana com significado conceitual mais acima de um direito; o recurso ambiental está no centro das discussões, mais ainda neste momento quando a leitura da sua escassez está relacionada ao econômico, e é de certa forma generalizada.
As questões sobre dominialidade e valoração dos recursos hídricos exigiu a tutela por parte do Estado, o que se configurou como essencial para a metodologia erigida sob o arcabouço teórico neoclássico de “criação” do mercado da água. A definição de instrumentos de precificação e de gestão dos recursos hídricos passou a sustentar-se sobre as bases teóricas da econômica tradicional, e a sua modelagem como sistema a partir da caracterização dos tipos de uso, consumo, captação, poluição e definição dos agentes econômicos existentes, objetivando cada vez mais uma gestão eficiente da estrutura e dos recursos, das formas de uso a partir da valoração econômica, para que se estabeleça um “ótimo” do valor e do emprego dos recursos hídricos, objetivando a preservação das bacias como “mercado” e sua relação com seu entorno.
O quadro que se firma atualmente torna-se cada vez mais favorável à consolidação do processo de precificação, ainda que efetivamente, a água, não se enquadre exatamente nos padrões tradicionais conhecidos dos princípios do livre mercado. A apropriação dos recursos naturais, a capitalização da natureza se mantém na mira da racionalidade econômica como premissa da sua própria continuidade exploratória, como condição e contradição de uma máquina sem freios em movimento.
A busca de mercados rentáveis e seguros em horizonte de médio-longo prazos despertam o interesse dos investidores especulativos, em tempos de crise, farinha e pirão ainda é para poucos, e o que não parece óbvio, fica patente aos olhos dos “capitais à deriva” numa crise que se espraia dentro do sistema e no meio ambiente; assim, partem em busca de um outro tesouro, do prêmio material no fim do arco-íris, os recursos hídricos, ou melhor, o bem ambiental valioso por sua essencialidade, vital e escasso: a água.
Nos países em que os recursos ambientais são abundantes naturalmente, como no caso da América Latina, e, particularmente do Brasil, verificou-se nas duas últimas décadas a necessidade de esforços na regulamentação das atividades econômicas exploratórias do meio ambiente e dos recursos hídricos, através da criação de leis, da implementação de mecanismos de comando/controle, da criação das agências reguladoras e aportes significativos de capital em investimentos necessários, embora ainda não suficientes, para a criação de condições de formação do mercado da água.
Os olhos dos cifrões estão abertos e voltados para o ensaio do mercado da água brasileiro, um bem que por sua escassez (em quantidade, disposição geográfica e qualidade) na maioria dos paises sofre uma degradação fenomenal, em conseqüência do modelo de desenvolvimento e consumo excessivo adotados com a extração descontrolada dos recursos naturais, utilizados sob uma racionalidade econômica individualista, inadequadamente na maioria dos casos, até sua completa exaustão em determinadas regiões.
Destarte, justamente esse tipo de mercado parece contrariar os pressupostos teóricos neoclássicos, mesmo o Estado proporcionando legal e financeiramente as condições, estruturas e regulamentos para a seu funcionamento, seja como gestor de políticas públicas na implantação dos projetos e tecnologias no setor, seja através de outorgas (concessões, permissões etc), na escolha de delegatários (parceiros e usuários, representantes da comunidade das bacias), um “Parlamento das Águas”. Embora isso, os conflitos sócio-ambientais se apresentam como o prenúncio de um longo, previsível e contínuo desequilíbrio de forças. Se responsabilizar e imputar os custos ambientais, tornou-se uma busca obrigatoriamente permanente de definição dos agentes principais de uma crise anunciada.
Entretanto, o preço, que no livre mercado, se constitui como o termômetro das preferências dos consumidores, e o fator importante na equação da valoração econômica, como fruto de uma “escolha racional”, pilar teórico das utilidades2 individuais, no caso da água, se constitui mais uma variável “imputada” no modelo, que se intenta internalizar assim como os espinhos conceituais das externalidades3; no entanto, é necessário reforçar através de técnicas de precificação baseadas nos fundamentos econômicos neoclássicos que analisam os preços das demais mercadorias. Mas, de fato, reconhecendo-se a falta anterior de qualquer experiência de um mercado da água.
A valoração do bem ambiental se coloca sob a ordem do “equilíbrio” dos fatores de produção e do principio da escassez, indo construir uma racionalidade econômica que revela, o princípio, “da desnaturalização da natureza e a mesma insustentabilidade do processo de produção” 4 semelhante ao de qualquer outra mercadoria.
“Está fora do interesse dos investidores assumir diretamente a responsabilidade por entregar a água e taxar o consumidor final. Isso porque, em geral, os governos subsidiam as tarifas, já que a água é um bem vital. ‘O governo precisa da água, então pagará qualquer valor para quem a tornar disponível’, avalia Tara5. ‘Porém, a água em si continuará sob controle do governo. Então, o preço da água em si não é o melhor investimento’.
O Estado ao criar as agências de água balizadas em regras pré-estabelecidas dos critérios da economia de mercado, tem buscado há mais de uma década (Política de Meio Ambiente e Política dos Recursos Hídricos) a obtenção de resultados que assegurem seu papel na estruturação da racionalização do uso dos recursos hídricos, em um mercado singular, de evidente assimetria entre a letra da lei e a sua aplicação num mundo representado por conflitos e degradação dos recursos ambientais.
Até então, as Agências de Água não tem demonstrado a eficiência esperada na consecução de seus objetivos, apresentam-se deficitárias, e diante da necessidade de vultosos investimentos e tecnologias para a gestão das estruturas montadas, cumpre experienciar efetivamente o acompanhamento e controle dos conflitos sócio-ambientais entre os diferentes interesses de usuários e os múltiplos usos dos recursos hídricos.
“As novas tecnologias devem oferecer ainda bons ganhos para tecnologia que ajudem a reduzir o consumo excessivo de algumas áreas da economia. É o caso da agricultura, o campeão setorial, que usa grandes volumes para irrigação. Um exemplo ilustra o desafio: para a produção de um bife de um quilo de carne bovina são necessários 16.000 litros de água, segundo dados do Instituto para Educação sobre a Água, da Unesco” 6.
Ressaltamos, nesse caso, corre-se o grande risco desse empenho social e das políticas públicas (o Estado) caírem na desmoralização ou em grande perda dos frutos do enorme esforço empregado no processo de criação do mercado da água, sabidamente sobre fundamentos e estratégias fatais, representados por uma possível corrupção dos princípios originais ou mesmo com a captura de toda uma estrutura por parte do lobby “privatista” dos grandes capitais transnacionais, sobretudo, porque todo o modelo está sustentado na confiabilidade dos conhecidos fundamentos das leis econômicas do mercado de produtos e serviços.
Reconhece-se que o momento é bastante propício para os capitais se voltarem para o mercado da água, afinal, ao se criar artificialmente a experiência de um “mercado singular”, isto é, nem privado nem público, por um lado, sob a égide das leis do livre mercado e tutelado pelo Estado, leis específicas que visam dar credibilidade e segurança ao seu funcionamento, por outro, a instalação desse laboratório, ensaia um mercado “misto” do ponto de vista dos paradigmas tradicionais; legalmente operacional ele deve girar sobre os princípios do desenvolvimento econômico sustentado7, reforçado pelo intermédio da representação democrática dos agentes econômicos, atores locais nos comitês8 e nas agências reguladoras. A diferença é, ainda que possa se verificar por algum tempo essa configuração institucional e comercial adotada, alentada em seus objetivos ético-sócio-ambientais, ainda assim, os interesses do mercado privado são os dígitos concretos de retorno representados pela margem de lucro; agora, os recursos hídricos são transacionados através de preços públicos pautando-se sobre princípios constitucionais da função social da propriedade privada e da atividade econômica, contudo, esperamos primar pelas gerações futuras e pelo meio ambiente, o que será contraditório se seguir a notória lógica capitalista com o relaxamento ao inevitável “toque de Midas” privatista.
No caminho de suas contradições, o sistema econômico se distancia da integração com o sistema ambiental exigindo esforços intangíveis de governos, instituições, comunidades, cientistas e dos próprios agentes econômicos co-responsáveis, para os constrangimentos de compensar os prejuízos ambientais internalizando as externalidades negativas, inerentes a uma sociedade pautada na superexploração, no consumo abusivo e degradação indiscriminada dos recursos naturais. O ensejo do drama ambiental suscita a praxis histórica, tanto por parte dos representantes políticos como da academia, na perspectiva de uma exegese epistemológica e crítica dos paradigmas econômicos tradicionais, que respaldem instrumentos referenciais de políticas públicas e de projetos privados exequíveis quanto eficazes que atendam ao interesse social na preservação do meio ambiente.
A utilização consciente e racional dos recursos naturais em sintonia com a proposição de integração analítica transdisciplinar reclama por uma ação sistêmica de transformação sustentada, sobretudo voltada para o tripé ético-sócio-ambiental intergeracional.
1 LEFF, Enrique. Racionalidade Ambiental. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p.139.
2 “Do lado do consumo, as hipóteses-padrão sobre as funções de utilidade supõem uma equivalência geral de todos os bens: não importa qual a variação de quantidade sobre um bem; ela pode ser compensada, do ponto de vista do bem-estar, por uma variação apropriada da quantidade de um outro bem. A aplicação de um tal quadro às decisões sobre o meio ambiente conduz a procurar o nível de consumo suplementar de produtos de consumo que poderiam compensar uma degradação do meio ambiente: uma água de mar poluída, mas mais piscinas; um ar menos respirável, mas mais automóveis… Esta lógica procura maximizar as compensações comerciais para uma destruição do meio ambiente, e não assegurar que o modo de desenvolvimento se inscreva prudentemente na biosfera, o que muitos crêem ser a essência do desenvolvimento sustentável”. (TOLMASQUIM, op. cit.,1994).
3 “[...] a internalização dos valores ambientais, definidos nos termos neoclássicos (TEVs), não é o suficiente para definir-se um estado “sustentável” (nesse sentido relativo à perpetuação da humanidade). E, mais especificamente, isto porque as chamadas preferências individuais, base de tais valores ambientais, não representam um critério adequado para captar economicamente os atributos dos recursos ambientais e os direitos das gerações futuras”. NOBRE, Marcos; AMAZONAS, Maurício de Carvalho (orgs.). Desenvolvimento Sustentável: a institucionalização de um conceito. Brasília: IBAMA, 2002. p.127.
4 LEFF, Enrique. Op. cit., p.171.
5 Kimberly Tara, da empresa que gerencia investimentos FourWinds Capital Management.
6 Ciência e Saúde, Planeta. Investidores já estão de olho no mercado da água. Veja On-line. 19 de março de 2008. http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia-saude/investidores-ja-estao-olho-mercado-agua-333262.shtml
7 “A economia do desenvolvimento sustentado funciona dentro de um jogo de poder que outorga legitimidade à ficção do mercado, conservando os pilares da racionalidade do lucro e do poder de apropriação da natureza fundado na propriedade privada do conhecimento científico-tecnológico”. LEFF, E. Racionalidade Ambiental. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p.145.
8 O Comitê de Gerenciamento da Bacia Hidrográfica é um Colegiado de entidades representativas dos diferentes segmentos da sociedade e dos órgãos do Governo, criado com base nas Leis Estaduais e nas Constituições do Estados e da República Federativa do Brasil.
Colaboração de Afranio Campos, economista formado pela UFBA e atualmente pesquisador na área de economia ambiental, específicamente na questão da água e do desenvolvimento do “mercado” da água no Brasil, para o EcoDebate, 21/06/2010.
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