A geografia da violência
por Saul Leblon
Quando escreveu 'Geografia da Fome', em 1946, Josué
de Castro, sofreu pressões para eliminar a palavra incômoda do título de sua
maior obra. Contrariando a elite melindrada e gelatinosa, deixou um clássico
que desnaturalizou a fome brasileira, isentando 'jeca tatus' e 'nortistas' de
serem os responsáveis pela própria desnutrição. A partir daí o tema ganhou
fórum de desafio político, decorrente de estruturas de poder que aboliram a
escravidão, mas mantiveram direitos e riquezas concentrados na casa-grande.
De certa forma, a palavra violência substitui hoje
o espaço que um dia foi ocupado pela fome como a ligadura dos desafios que
enfeixam a grande questão da política brasileira: a realização plena da
cidadania na vida das grandes massas do seu povo.
Como a fome, a violência é uma palavra incômoda.
Muitos prefeririam não anexá-la à agenda do país, menos ainda reconhecê-la como
estuário das pendências e desafios dessa década. Policiais inaceitavelmente
armados reivindicando direitos - justos, diga-se - são parte desse mosaico
desordenado e urgente, que inclui a macabra colheita de 100 cadáveres em cinco
dias de recuo parcial do policiamento nas ruas de Salvador.
A exemplo da fome, a violência não responde a um
cardápio único. Superá-la requer uma verdadeira revolução no acesso e na
qualidade de bens que formam (hoje deformam) a subjetividade brasileira.
Uma escola efetivamente republicana que nivele por
cima, oferecendo um mesmo ponto de partida igual para todos, por exemplo (para
isso o orçamento do MEC não pode secundar a massa de recursos fiscais
transferidos aos rentistas da dívida pública). Ou uma mídia pluralista capaz de
democratizar a informação e a cultura, aguçando em vez de entorpecer o
discernimento crítico e a subjetividade livre e independente. Serviços públicos
de saúde, segurança e acessos a bens culturais que afrontem - a palavra é
justamente essa, afrontar - abismos seculares escavados pela desigualdade,
alinham-se como requisitos à restauração de portas da civilização corroídas
pelo cupim do elitismo excludente e parasitário.
Nada se fará sem democracia e bons empregos e
tampouco basta ter orçamento se o aparelho público for desastroso - colocando,
como agora, no caso dos aeroportos, o governo no desgastante dilema de
privatizar ou caminhar para o colapso aéreo em plena Copa de 2014.
Tudo isso é relevante, mas o grande salto para o futuro consiste justamente em
admitir que a mobilidade incremental azeitada pelo sistema econômico disponível
não é suficiente.
Não é que seja apenas insuficiente: é quase um
suicídio social depositar a formação da subjetividade nas mãos do mercado.
A nova geografia da violência parece desmentir
avanços quase épicos alcançados na redução da pobreza, da fome e do desemprego,
mas não é verdade. Eles são reais. Foram e serão decisivos na reformulação do
desenvolvimento brasileiro. Infelizmente, porém, não há paradoxo: o rastro da
violência avança em linha com a interiorização do crescimento, do consumo e do
investimento.
O fato de uma greve policial, como a de Salvador,
ter gerado - se com 'ajuda' de setores grevistas pior ainda - mais de 100
homicídios em menos de uma semana confirma as dimensões da emergência política
embutida nessas linhas paralelas.
A ruptura de equilíbrios precários, substituídos
por impulsos mórbidos de consumo --e a indução a comportamentos anti-sociais,
inoculados pelo canhão midiático-- gera confusão e endosso cego ao que o
mercado difunde como sendo o novo, o desejável e o indispensável, ao preço do
'custe o que custar'. Geram, ademais, uma percepção desesperadora da
desigualdade medida por paradigmas de riqueza e ócio nefastos e inviáveis.
A reiteração da sexualidade como uma dimensão
utilitária, exibicionista e descartável do relacionamento humano faz parte
desse desterro ético. Seu apelo lubrifica a emergência de padrões de
comportamento incensados por novelas e animadores psicopatas de Big Brothers,
que precipitam a baldeação de valores tradicionais para zonas cinzentas em que
semi-cultura, semi-informação, mercado e barbárie se marmorizam e se alimentam
em perfeita metástase social.
Se um factóide de estupro induzido e capitalizado,
rende prestígio, dinheiro e admiradores aos seus protagonistas, como impedir
efeitos em cascata numa subjetividade desprovida de filtros para rejeitar a fraude,
a falta de ética, a corrosão do caráter e dos laços da convivência
compartilhada?
O "Mapa da Violência-2012", coordenado por
Julio Jacobo Waiselfisz, dimensiona essa espiral pela fita métrica da
uniformização dos padrões de violência homicida no território nacional.
"Seria altamente desejável se essa transformação atuasse no sentido de
homogeneizar as taxas por baixo', pondera o relatório. " Contudo",
constata, "se isso realmente acontece em algumas regiões do país, na maior
parte dos casos, presenciamos o efeito inverso: o crescimento vertiginoso da
violência em locais considerados pacíficos e tranquilos". Em 2010, o
conjunto daquelas que eram até então as 17 menores taxas de homicídio da
federação, superou em 25,7%, a soma das que detinham antes os índices recordes.
Um exemplo ilustrativo e atual: nessa baldeação, a Bahia saltou do 23º lugar
para o 3º no ranking nacional de homicídios.
A juventude fragilizada pela mistura de
semi-formação e semi-maturidade é a principal vítima desse 'ajuste' pelo pior.
A taxa média de homicídios na sociedade brasileira encontra-se estabilizada há
alguns anos na faixa de 26 mortes por 100 mil (nada a comemorar: em 2010 foram
50 mil assassinatos; média de 137 homicídios por dia). Mas na faixa etária
entre 20 a
24 anos, as coisas assumem contornos de chacina geracional: a taxa salta para
60,4 homicídios por cem mil. A violência homicida já é responsável por 38,6% de
todas as mortes de jovens no país, enquanto entre os não jovens a taxa cai para
2%.
Os avanços propiciados nos últimos anos na esfera
da educação, com o acesso ampliado ao ensino superior através do Prouni, bem
como a disseminação das escolas técnicas, são antídotos encorajadores. A
exemplo da multiplicação de vagas de trabalho, eles alargam os trilhos da
mobilidade e da esperança dos que nasceram à margem deles e estavam condenados
assim a viver e a morrer . Algo se move e não é pouco diante da calcificação de
interditos estruturais agravados pela contração da economia internacional. Em
crises anteriores, de gravidade e duração muito aquém da atual, o país
despencou, a economia regrediu, a miséria aumentou. Mas os dados da violência
parecem dizer que ainda não atingimos o nervo da iniquidade. Ainda carecemos de
um desassombro político e programático. Um novo marco divisor que não pode ser
apenas a boa gestão do ciclo anterior. Que busque inspiração no exemplo de
Josué de Castro e não retire o desafio da violência do lugar que ele ocupa,
queiramos ou não admitir: o incômodo corolário de estruturas e interesses que,
ao incorporar ao mercado, cobram o pedágio da servidão ao consumo, magnificam o
sentimento da desigualdade e selam o cativeiro de uma subjetividade
desumanizada desprovida da compreensão crítica da sociedade e do seu lugar na
história.
Fonte: Carta Maior | Blog das Frases, 08/02/2012
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