Não há razões para o corte de R$55 bilhões!
por Paulo Kliass
Pouco antes do início do longo feriado do Carnaval,
mais uma vez o governo federal aproveitou esse momento estratégico propiciado
pelo calendário para anunciar outro pacote de maldades. No caso, foi a
divulgação, pelos responsáveis da área econômica, de um conjunto de cortes nas
despesas do Orçamento da União, que havia sido aprovado pelo Congresso Nacional
na virada do ano.
Os valores anunciados pelos titulares do Ministério
da Fazenda (MF) e do Ministério do Planejamento (MPOG) são expressivos e
mereceram críticas pesadas de amplos setores do movimento social. A revolta
atingiu, inclusive, entidades cujos dirigentes que não costumam esconder seu
alinhamento sistemático com o governo, como a CUT. Isso tudo porque o Palácio
do Planalto havia decidido cortar um total de R$ 55 bilhões nas despesas
previstas na Lei Orçamentária Anual (LOA), peça que fora objeto de debate e
votação pelos parlamentares.
Dado o inesperado da pressa em anunciar tais
medidas, a sociedade começa a se questionar a respeito das possíveis razões que
estariam a embasar tal decisão da Presidenta Dilma. As justificativas de
natureza retórica apresentadas pelas autoridades pouco ajudam nessa tarefa e
servem apenas para preencher mais uma lacuna no teatro da política de baixa
estatura. Os ministros argumentaram que a estimativa de arrecadação de receitas
constante na versão definitiva da LOA estava acima da previsão do governo.
Assim, seria necessário reduzir as despesas tal como votadas pelo Congresso,
uma vez que não haveria recursos disponíveis a serem arrecadados na forma de
tributos ao longo de 2012. Pura balela!
Em primeiro lugar, cabe registrar que a evolução da
receita orçamentária ao longo do exercício é passível de ajustes. Sempre foi
assim e continuará sendo enquanto os seres humanos estivermos organizados em sociedade. Nada
mais natural, pois sabemos que a dinâmica da economia não tem nada a ver com os
ciclos (nem sempre) previsíveis dos fenômenos das ciências exatas. Dessa forma,
cabe justamente aos órgãos que acompanham a evolução da política fiscal fazer
os ajustes de sintonia fina nos momentos necessários – e, principalmente, nas
rubricas mais adequadas. Essas são as funções da Secretaria do Tesouro Nacional
(MF), pelo lado da arrecadação, e a Secretaria do Orçamento Federal (MPOG),
pelo lado da despesa.
Cito apenas um exemplo para demonstrar como a
desculpa é capenga. De acordo com a justificativa apresentada pelo governo, a
receita líquida da União seria inferior à prevista no valor R$ 30 bi ao longo
do ano todo. Assim, como conclusão “lógica e óbvia”, os ministros anunciam um
corte de R$ 55 bi logo em fevereiro! Uma loucura, sem pé nem cabeça! Na
verdade, permanece absolutamente inalterado aquele espírito de “bom-mocismo”
criado ainda pelo Ministro Palocci, lá atrás em 2003, quando se tentava acalmar
os espíritos do mercado e do capital, com a garantia de que a mudança de
governo não alteraria em nada a essência da política econômica do Estado
brasileiro. Essa promessa foi cumprida à regra. E naquele momento o responsável
pela área de economia do Presidente Lula anunciava que o governo brasileiro
iria aumentar por sua própria iniciativa a meta de superávit primário. Um
verdadeiro maná a ser oferecido, assim gentil e graciosamente, para o mercado
financeiro
Pois ao longo desses 9 anos, o espetáculo seguiu o
mesmo enredo. Geração de superávits primários sucessivos, sempre em valores
superiores a 3% do PIB. E a execução orçamentária foi sistematicamente
acompanhada de cortes e de contingenciamento nas rubricas voltadas para o gasto
social e nas despesas associadas à infra-estrutura. Com o anúncio da semana
passada, a coisa não foi muito diferente. A principal preocupação do governo
foi assegurar que o sacrossanto superávit primário estaria mantido. E na exposição
de motivos, apresenta todo “orgulhoso” como ele tem sido responsável com a
evolução desses valores: eles saíram de R$ 65 bi em 2009 para atingir R$ 140 bi
em 2012. Ou seja, apenas as despesas da LOA com juros e serviços da dívida
cresceram 115% nesses 3 anos. Durante esse mesmo período, por exemplo, o
salário mínimo cresceu 34%. É nesses momentos que se percebe, com toda a
clareza, quais são as verdadeiras prioridades do governo.
Por outro lado, o governo argumenta que os projetos
considerados prioritários serão “imexíveis”. Ora, é o mínimo que se espera de
uma equipe coerente com suas metas. Mas infelizmente a lista dos setores
intocados é bastante restrita: apenas as obras do PAC e os programas “Brasil
Sem Miséria” e “Minha Casa, Minha Vida”. Assim, esse conjunto que representa a
prioridade absoluta conta com despesas de não mais que R$ 80 bi, em um total de
R$ 1,1 tri de gastos previstos na LOA. Ou seja, todo o resto está sujeito a
cortes, dos quais R$ 55 bi já foram anunciados.
Até o presente momento, as principais áreas que
terão suas verbas reduzidas são as seguintes:
Previdência e assistência social - R$ 9,3 bi
Saúde - R$ 5,5 bi
Subsídios em geral - R$ 5,2 bi
Desenvolvimento regional - R$ 3,9 bi
Cidades - R$ 3,3 bi
Agricultura - R$ 3,3 bi
FGTS - R$ 3,0 bi
Justiça - R$ 2,3 bi
Educação - R$ 2,0 bi
Turismo - R$ 2,0 bi
Transportes - R$ 2,0 bi
Esportes - R$ 1,8 bi
Ciência e Tecnologia - R$ 1,5 bi
Outros - R$ 9,8 bi
TOTAL - R$ 55,0 bi
Saúde - R$ 5,5 bi
Subsídios em geral - R$ 5,2 bi
Desenvolvimento regional - R$ 3,9 bi
Cidades - R$ 3,3 bi
Agricultura - R$ 3,3 bi
FGTS - R$ 3,0 bi
Justiça - R$ 2,3 bi
Educação - R$ 2,0 bi
Turismo - R$ 2,0 bi
Transportes - R$ 2,0 bi
Esportes - R$ 1,8 bi
Ciência e Tecnologia - R$ 1,5 bi
Outros - R$ 9,8 bi
TOTAL - R$ 55,0 bi
O que mais impressiona é que para o governo os
setores acima não sejam considerados tão importantes quanto o repasse de
recursos para o setor financeiro, a título de pagamento de juros da dívida
pública. Despesas com previdência, saúde, educação, agricultura familiar e
outras não parecem ter efeitos multiplicadores significativos, sem contar a
natureza emergencial das mesmas. Já o gasto com a atividade parasita do
rentismo acomodado é considerado prioridade na agenda de alocação do dispêndio
do recurso público.
Diante do exposto, é compreensível que o leitor e a
leitora continuem a se indagar a respeito de quais seriam as verdadeiras razões
que estariam por trás de um anúncio de um corte tão nefasto quanto
desnecessário. Talvez não valha a pena tamanho esforço intelectual. A história
é conhecida: repetir a antiga estratégia de cortar no social e no essencial,
para então privilegiar o capital financeiro e a enganosa credibilidade junto às
chamadas “forças de mercado”. Essa é a única razão que pode conferir alguma
coerência interna ao quadro da medida desastrada.
Pelo mundo afora, boa parte dos governos dos países
em crise se vêem obrigados pelos organismos internacionais a adotar medidas
fiscais duras. E são justamente criticados pela natureza ortodoxa de seus
ajustes orçamentários, pois é amplamente sabido que as conseqüências desse tipo
de corte burro nos gastos públicos são bem negativas para a maioria da
população. Salvem-se os bancos; danem-se o povo e os trabalhadores. E por aqui
parece que nossas autoridades resolveram optar mais uma vez - por conta própria
e sem nenhuma pressão externa visível – por seguir o mesmo caminho do prejuízo
social, com o intuito de preservar os ganhos do setor financeiro.
De outra parte, a continuidade dessa política de
redução dos gastos públicos provoca a diminuição da capacidade do Estado em dar
cabo de suas funções essenciais. Com menos verbas alocadas, as conseqüências
são várias: i) a capacidade de investimento é diminuída, as instalações ficam
obsoletas e os novos equipamentos não são oferecidos ao público; ii) as
despesas correntes para manutenção da rede existente tornam-se insuficientes e
a face aparente é de um setor público ineficiente e incapaz de oferecer seus
serviços de forma adequada; iii) os salários do setor são reduzidos ou não
conseguem acompanhar a evolução do setor privado, com prejuízos para a
manutenção de um padrão adequado na qualidade da gestão pública.
Diante de tais condições, vê-se reforçado o
discurso pró privatização dos serviços públicos. É a base objetiva para os
argumentos favoráveis ao aumento das concessões oferecidas ao setor privado,
como nos casos dos aeroportos, da saúde, das rodovias ou do ensino superior
(vagas nas instituições privadas estimuladas pelo PROUNI). E o raciocínio se
encerra, com a falsa sensação de ter sido o vencedor no campo da retórica:
“Ora, se o Estado não faz ou realiza mal, não existe alternativa que não seja a
privatização.”
Na verdade, trata-se de um movimento de extrema
perversidade, ainda que não se consiga visualizar um maquiavelismo explícito em
sua operação. Por um lado, as condições básicas de funcionamento da rede do
Estado passam por um processo contínuo de sucateamento. Por outro lado,
assegura-se a continuidade do repasse de recursos do orçamento público para os
setores mais vinculados ao sistema financeiro. E serão esses, justamente, os
principais beneficiados no futuro com os leilões da privatização, como ocorrido
recentemente com a rede aeroportuária.
A Presidente Dilma, ao ter dado carta branca para o
anúncio de tais medidas, parece estar de acordo com a estratégia adotada pelos
principais responsáveis pela área econômica de seu governo. O mínimo que se
espera é a sensibilidade para ouvir as críticas e demandas das entidades e
profissionais contrários à decisão. Pois os cortes nada mais representam senão
um tiro no pé na possibilidade de recuperação de nossa economia, um passo atrás
no aprofundamento do caminho do desenvolvimento e da redução do nível de
desigualdades em nosso
País.
Paulo Kliass é Especialista
em Políticas
Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal
e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Fonte:
Carta Maior | Colunistas Debate Aberto, 23/02/2012
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