Privatização: ontem e hoje!
por Paulo Kliass
A surpreendente decisão da Presidenta Dilma em dar
sequência à proposta de privatização da estrutura aeroportuária brasileira
reabriu o importante debate a respeito da complexa relação entre as esferas do
público e do privado em
nosso País.
Para aqueles que se recordam dos termos das
polêmicas da campanha eleitoral para presidente em 2010, um ponto de inflexão
foi justamente a postura ofensiva adotada pela então candidata do PT contra as
propostas de privatização levadas a cabo pelo candidato tucano. Ou seja, votar
no Serra era correr o risco da volta ao processo de transferência do patrimônio
público ao setor privado. Porém, nada como um dia após o outro. E um ano após a
sua posse, o governo Dilma comanda o leilão dos 3 principais aeroportos, cuja
gestão até então era de responsabilidade da Infraero – empresa pública do
governo federal.
Colocados na defensiva pelo tom inusitado do xadrez
político, muitos simpatizantes do governo ensaiaram um discurso rechaçando a
acusação e a cobrança de coerência. “De jeito nenhum! Concessão não é
privatização!”. Ou então argumentando que os valores dos aeroportos leiloados
foram bem superiores aos das empresas privatizadas no passado. Como se a questão
ideológica estivesse superada e agora tudo não passasse de se encontrar a
melhor forma para se chegar ao “preço justo” para realizar a transação entre o
Estado e o capital. O esforço do malabarismo retórico impressiona! Afinal,
realmente deve ser um pouco incômodo receber tantos elogios da parte de
personalidades que estavam à frente do processo de privatização à época de FHC.
O fato é que o termo “privatização” comporta um
conjunto enorme de definições. No entanto, considero que o mais adequado seria
abordá-lo no sentido mais amplo, como o verdadeiro “processo de privatização”,
que trata das relações entre as esferas do setor público e do setor privado.
Apesar de haver permanecido durante muito tempo na pauta da agenda
autenticamente liberal, a privatização só ganhou espaço e fôlego a partir de
meados da década de 1970, quando aquilo que viria a ser conhecido como
“Consenso de Washington” começou a realizar seus primeiros esboços. Ronald
Reagan na Presidência dos EUA e Margaret Thatcher à frente do governo britânico
foram os grandes patronos das medidas de demonização da presença do Estado na
economia. E logo em seguida receberam o providencial apoio dos partidos
socialistas recém chegados ao poder na França e na Espanha, que privatizaram
boa parte dos respectivos setores públicos. Era o início da ascensão do
neoliberalismo.
As empresas estatais e o início da crítica
Aqui por nossas terras, a realidade era um pouco diferente. Durante a fase da ditadura militar, como que por ironia da História (prefiro chamar de necessidades do capital...), a estrutura do Estado na economia se alargou e se aprofundou. Apesar da orientação direitista e conservadora do golpe de 64 e da crença liberal de seus principais formuladores de política econômica, o que se viu foi a continuidade da estruturação de setores estratégicos com forte presença do ente estatal. A energia era dominada pela Petrobrás, Nuclebrás, Eletrobrás e o sistema elétrico com empresas federais e estaduais. A siderurgia tinha como grande vetor a Siderbrás, com as principais empresas como CSN, Cosipa, Usiminas e demais. O sistema portuário era comandado pela Portobrás e suas unidades nas principais cidades do litoral. Na área de estradas de ferro, tínhamos a RFFSA federal e algumas empresas estaduais. No setor de petroquímica e de fertilizantes, o modelo dos pólos - como Camaçari e Cubatão - estimulava a formação de parcerias entre público e privado, por meio da Petroquisa e da Petrofértil. Nas telecomunicações, havia o sistema Telebrás com as operadoras estaduais e a Embratel federal.
Aqui por nossas terras, a realidade era um pouco diferente. Durante a fase da ditadura militar, como que por ironia da História (prefiro chamar de necessidades do capital...), a estrutura do Estado na economia se alargou e se aprofundou. Apesar da orientação direitista e conservadora do golpe de 64 e da crença liberal de seus principais formuladores de política econômica, o que se viu foi a continuidade da estruturação de setores estratégicos com forte presença do ente estatal. A energia era dominada pela Petrobrás, Nuclebrás, Eletrobrás e o sistema elétrico com empresas federais e estaduais. A siderurgia tinha como grande vetor a Siderbrás, com as principais empresas como CSN, Cosipa, Usiminas e demais. O sistema portuário era comandado pela Portobrás e suas unidades nas principais cidades do litoral. Na área de estradas de ferro, tínhamos a RFFSA federal e algumas empresas estaduais. No setor de petroquímica e de fertilizantes, o modelo dos pólos - como Camaçari e Cubatão - estimulava a formação de parcerias entre público e privado, por meio da Petroquisa e da Petrofértil. Nas telecomunicações, havia o sistema Telebrás com as operadoras estaduais e a Embratel federal.
No sistema financeiro, havia os bancos comerciais e
os de desenvolvimento. De um lado, Banco do Brasil (BB), Caixa Econômica
Federal (CEF) e o sistema dos bancos comerciais dos governos dos estados. De
outro, BNDES e os bancos de desenvolvimento regional – BASA e BNB. Na
mineração, o carro-chefe sempre foi a Cia. Vale do Rio Doce. Havia empresas de
navegação fluvial, como a ENASA da Amazônia e a FRANAVE para o São Francisco.
Na aeronáutica, a EMBRAER na produção de aeronaves. O sistema de água e
saneamento urbano também sempre foi montado com base em empresas estatais, seja
dos municípios seja dos estados.
Porém, apesar dessa aparente contradição, o modelo
era bastante funcional ao processo de acumulação do capital. Do ponto de vista
político, uma vez que o regime assegurava a exploração da força de trabalho e
silenciava os opositores com os instrumentos da repressão. Do ponto de vista
econômico, a fase do milagre reservava altas taxas de acumulação e de retorno
para o capital privado. As primeiras queixas mais explícitas de representantes
do empresariado começaram a surgir a partir da crise do início dos anos 80.
Afinal, quando a economia entra em recessão, ninguém quer sair perdendo. O
vilão passa, então, a ser identificado no setor público.
O Jornal da Tarde, ligado ao jornal “O Estado de
São Paulo”, passa a publicar, em 1983, uma série de reportagens que ficou
famosa. Tinha por título “República Socialista Soviética do Brasil” (sic) e
buscava confundir de maneira ardilosa a luta pela democracia com a luta contra
a presença do setor público na economia. Com comunistas, socialistas e demais
representantes das forças progressistas assassinados, torturados, presos,
exilados, a matéria tentava passar uma falsa imagem a respeito do projeto político
do regime militar.
Através da divulgação exaustiva do suposto
“gigantismo” das empresas estatais brasileiras e dos abusos cometidos pela
ditadura, o jornal sugeria que a luta democrática pressupunha a saída do Estado
na economia. Mas o termo mais utilizado naquele momento era a chamada proposta
de “desestatização”. Apesar de um outro nome diferente para reduzir a presença
do setor público, a essência da proposta era a mesma de hoje - a
“privatização”.
Diferentes modalidades de privatização
As alternativas privatizantes podem ocorrer segundo um conjunto amplo de possibilidades operacionais. A primeira delas é o estereótipo mais evidente e consiste na venda pura e simples da empresa do Estado para os interessados do setor privado. O patrimônio da empresa estatal é transferido para o novo proprietário que paga um valor por tal operação.
As alternativas privatizantes podem ocorrer segundo um conjunto amplo de possibilidades operacionais. A primeira delas é o estereótipo mais evidente e consiste na venda pura e simples da empresa do Estado para os interessados do setor privado. O patrimônio da empresa estatal é transferido para o novo proprietário que paga um valor por tal operação.
Normalmente, o preço de venda deveria refletir o
valor atual da empresa, adicionado do fluxo futuro de ganhos esperados. Na
prática, porém, quase nunca foi assim. Os preços de venda eram reduzidos e os
adquirentes recebiam mil e uma vantagens para a compra, como aceitação de
títulos públicos sem liquidez (as chamadas moedas podres), aporte de recursos
públicos (como financiamento do BNDES) e outras generosidades (como a participação
de fundos de pensão ligados a empresas estatais).
Além disso, a realidade dos processos de
privatização contém outras modalidades que não podemos deixar de considerar. As
empresas estatais, por exemplo, dividem-se em empresas públicas e empresas de
economia mista. No primeiro grupo, o Estado detém 100% das ações. No segundo
grupo, há participação de acionistas privados também. A coisa fica mais
complicada ainda se levarmos em conta a diferença entre as ações que dão
direito a voto e as que não oferecem essa possibilidade. Ou ainda, as ações que
dão direito a receber dividendos anuais do lucro da empresa e as que não
permitem esse ganho. No caso do setor bancário, por exemplo, a CEF é uma
empresa pública e o BB é uma empresa de economia mista.
Para os que agora resolveram fazer uma leitura mais
“pragmática” da privatização, o governo poderia transferir até 49% do capital
da Caixa sem problemas, pois ficaria tendo maioria no controle. E poderia
vender a totalidade das ações ordinárias do BB sem direito a voto e as
nominativas no limite de sua posição de majoritário.
Concessão é uma forma de privatização
No caso das concessões, o modelo de privatização é diferente. Não se trata de uma transferência definitiva do patrimônio estatal para o setor privado. E podemos estar face a situações bastante distintas. Um caso é o leilão da concessão de um bem público já em operação por entidade estatal. Outro seria a concessão de uma atividade nova que seria posta em operação pelo setor privado. E aqui a lista de casos para a realidade brasileira recente é enorme.
No caso das concessões, o modelo de privatização é diferente. Não se trata de uma transferência definitiva do patrimônio estatal para o setor privado. E podemos estar face a situações bastante distintas. Um caso é o leilão da concessão de um bem público já em operação por entidade estatal. Outro seria a concessão de uma atividade nova que seria posta em operação pelo setor privado. E aqui a lista de casos para a realidade brasileira recente é enorme.
O governo FHC decidiu por abrir à iniciativa
privada (grupos nacionais e estrangeiros) a concessão de exploração de poços de
petróleo, o que antes era monopólio da Petrobrás. E esse modelo, antes tão criticado,
acabou sendo digerido, absorvido e mantido pelos governos do PT. Está virando
moda em todas as esferas da administração pública (federal, estadual e
municipal) submeter à concessão da iniciativa privada a exploração econômica de
diferentes tipos de serviço de saúde, como hospitais, centros de saúde, entre
outros. Os governos estão realizando leilões para concessão a consórcios
privados a administração de rodovias, mediante a cobrança de pedágios. Será que
apenas por não haver a transferência “para todo o sempre” do patrimônio público
para o privado, todos esses exemplos de transação negocial não se caracterizam
como privatização? Afinal, se levarmos em conta o tempo médio de vida das
empresas no Brasil, os 30 anos da concessão dos aeroportos é mais do que uma
eternidade! Quem sobreviver até 2042 certamente assistirá à cerimônia de
retorno do patrimônio dos aeroportos à União...
Além disso, a mercantilização dos bens públicos é
também uma forma evidente de privatização desses setores. O ensino superior virou
um grande negócio para o setor, sem que as universidades públicas tenham sido
vendidas. Bastou o governo estimular o crescimento das vagas nas faculdades
privadas, seja por programas do tipo PROUNI, seja pelo estrangulamento dos
orçamentos da rede das universidades públicas. Tanto é que há hoje grandes
grupos estrangeiros operando no ramo de vendas de diplomas de ensino superior
por aqui. Já a expansão da rede privada de saúde é estimulada pelo sucateamento
da estrutura da saúde pública, via SUS. A transformação da saúde e da educação
em mercadorias faz com que esses setores passem a ser tratados segundo a lógica
do capital e não aquela do interesse público. E isso significa também um
processo de privatização de tais atividades, sem que haja nenhuma venda de
empresa estatal.
Não há razão para privatizar
O ponto mais intrigante é a busca das razões que teriam levado o governo da Presidenta Dilma a tal mudança de postura. Afinal, os argumentos favoráveis à privatização podem ser resumidos a 5 tipos:
O ponto mais intrigante é a busca das razões que teriam levado o governo da Presidenta Dilma a tal mudança de postura. Afinal, os argumentos favoráveis à privatização podem ser resumidos a 5 tipos:
i) “ideológico puro”: sou contra o Estado na
economia, isso é função de empresa privada e ponto final;
ii) ineficiência do Estado: a ação econômica do
Estado é sempre ineficiente, em relação ao setor privado. Assim, para que o
conjunto dos atores sociais saia sempre ganhando, a solução é privatizar;
iii) necessidade de promover a concorrência: boa
parte das empresas estatais opera em setores onde não há concorrência. Abrir à
privatização seria uma forma de estimular a eficiência, melhorar os serviços e
reduzir as tarifas cobradas do consumidor;
iv) a presença do Estado só se justifica em setores
considerados estratégicos e essenciais;
v) necessidade de recursos: o Estado estaria com
dívidas elevadas e sem recursos financeiros para cumprir suas missões essenciais.
A solução é vender o patrimônio público para o setor privado e usar esses
recursos para tais fins.
Assim, vejamos o caso do Brasil de hoje, de acordo
com os postulados acima:
i) poucos liberais radicais arriscariam tal opção
hoje em dia;
ii) o argumento da ineficiência quase sempre é
utilizado de forma oportunista e casuísta. Assim, o esforço deve ser no sentido
de aperfeiçoar a gestão da coisa pública e não transferi-la para o setor
privado. Caso contrário, a lista das empresas e setores a serem privatizados só
deveria aumentar. Na verdade, muitos temem que a Infraero seja um balaio de
ensaio para outros experimentos mais “ousados”;
iii) a realidade pós-privatização de teles, energia
elétrica, estradas, entre outros, mostra a falácia do argumento. Os serviços
são de péssima qualidade, as tarifas elevadas e os setores não permitem uma
concorrência do tipo do “mercado da batatinha”. Não gostou dos serviços da
companhia de eletricidade? Ótimo, vá então procurar aquele fio no poste lá do
outro lado da calçada. O pedágio da estrada está muito elevado? Pode pegar a
via esburacada ali ao lado, que ela é de graça. Isso para não mencionar o nível
absurdo das tarifas, inclusive na comparação com outros países;
iv) realmente entre os extremos das barracas de
frutas na feira e a promoção da segurança pública, há um conjunto amplo de
setores que podem ser considerados estratégicos ou não, de acordo com o momento
histórico, a realidade de cada país e a opinião de cada indivíduo. Mas, com
certeza, a gestão aeroportuária desempenha uma função relevante aqui no Brasil.
Afinal, se não fosse assim tão estratégica, por que tanta preocupação com o
chamado “caos” aéreo? Por que tanta energia despendida com a busca de uma
solução a toque de caixa, a partir de uma simples exigência da FIFA? Além de
elementos de segurança nacional (espaço aéreo entre os oceanos Atlântico e
Pacífico, espaço de dimensão continental, conexão do território nacional, etc),
os aeroportos proporcionam cada vez mais um importante meio de comunicação e
transporte em nosso País.
É realmente um setor essencial.
v) o Estado brasileiro tem recursos financeiros
sobrando. O problema é que quase 50% do Orçamento vão para pagamento de juros e
serviços da dívida pública. Apenas a título de comparação: o governo comemorou
os R$ 35 bilhões que serão desembolsados em lentas e suaves prestações ao longo
de 30 anos pelos consórcios dos aeroportos. Pois a Presidenta, de uma só
canetada, cortou R$ 60 bi dos gastos da União em 2012 para gerar o famigerado
superávit primário.
Afinal, então, por que privatizar?
Paulo Kliass é Especialista
em Políticas
Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal
e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.
Fonte:
Carta Maior | Colunistas | Debate Aberto, 09/02/2012
Nenhum comentário:
Postar um comentário